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Miguel (centro), parte da Brigada e ativistas em manifestação em outubro de 2014 na capital mexicana
Eles surgem em todas as manifestações que passam pelas ruas da Cidade do México. Chamam a atenção por seu “uniforme”: camiseta vermelha com uma cruz branca no peito, bonés vermelhos ou capacetes. Uma mochila com material para prestar primeiros socorros, máscaras contra gás lacrimogêneo, cordas para fazer isolamentos, insígnias nos braços que os identificam como defensores dos direitos humanos, câmeras de vídeo e de fotografia para fazer registros, credenciais com nome e foto, bandeiras bem grandes que hasteiam para que as pessoas os reconheçam à distância caso precisem de sua ajuda. São a Brigada Humanitária de Paz Marabunta.
Parecem estar preparados para uma guerra em pequena escala. E talvez não estejam equivocados. Quem já participou de uma manifestação na capital do México sabe que as coisas podem seguir tranquilamente ou não. Basta um vidro quebrado, um jovem encapuzado, uma pequena fogueira com caixas de papelão para acender uma tocha.
Às vezes é preciso um pouco mais: o voo de um coquetel molotov ou uma pedra lançada no ar, insultos de um coro enfurecido. Em outras ocasiões, basta apenas a ordem de um comando superior para que centenas de policiais destruam tudo, detenham ou ataquem quem sair do passo, não importa se o alvo de sua fúria lançou um pedaço de pau no ar ou simplesmente caminha sobre a avenida em uma hora inoportuna.
É nesse momento que atua o grupo coordenado por Miguel Barrera. A brigada humanitária se interpõe entre a polícia e os manifestantes, presta socorro a feridos sem se importar se são de um ou de outro grupo, agentes ou estudantes, anarquistas ou transeuntes. A Marabunta negocia com a polícia para liberar pessoas detidas ao acaso e registra em vídeo os excessos cometidos pelos agentes, que não são poucos: desde o fim do ano passado, a Secretaria de Segurança Pública e a Procuradoria Geral de Justiça na capital já receberam duas notificações por realizar detenções arbitrárias e praticar tortura.
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Miguel é fundador da Associação Civil Marabunta, criada em 2007, cujo principal objetivo é oferecer atividades esportivas e culturais para crianças, jovens e adultos na colônia Gabriel Hernández, na delegação Gustavo A. Madero [bairro da Cidade do México], onde ele cresceu.
Em 2001, seu rosto aparecia todos os domingos à noite na tela da TV. Seu projeto social, a Casa Marabunta, foi um dos 26 escolhidos para participar do reality show “Iniciativa México”, patrocinado pela Fundação Televisa e pelo Grupo Salinas, corporação mexicana.
A Casa Marabunta ficou em quarto lugar. Com os dois milhões de pesos que recebeu de prêmio [cerca de 350 mil reais] adquiriu o imóvel onde operam.
“Se a gente não experimentar a dor na própria carne, é complicado identificar quando alguém sofre”, diz agora sentado em seu escritório na Casa Marabunta, uma construção de dois andares onde todos os cantos se mostram com um visual estridente: nas escadas, formigas vermelhas pintadas com estêncil marcham em grupo, seguindo seu caminho através dos muros e intercalando seu passo com estrelas vermelhas.
Elías Nahmías
Jovens em marcha na Cidade do México em novembro de 2014, em protesto pelo desaparecimento dos 43 estudantes de Ayotzinapa
“Fica na sua. Se o cerco policial se compactar, se ele te cercar, se faltar ar, mantenha a calma. Se alguém te puxar pela roupa. Se gritarem com você. Se sentir-se ameaçado. Cante uma música na sua cabeça, cante em silêncio. Ignore os insultos. Não responda. Fica na sua.”
Esses são os conselhos de Miguel antes de cada manifestação. Eles são uma brigada de paz; seria um absurdo se perdessem o controle.
Porém, às vezes, é bem difícil.
“Você deve falar com a polícia com respeito”, diz Andrés Yoshimoto, Yoshi, um garoto de 19 anos de ascendência nipônica, que, ao pronunciar a palavra “respeito”, o faz enfatizando cada sílaba, solenemente.
Depois do desaparecimento dos 43 estudantes da Escola Normal Rural de Ayotzinapa, no estado de Guerrero, no dia 26 de setembro passado, não houve trégua na Cidade do México. Yoshi presenciou os enfrentamentos ocorridos no dia 20 de novembro entre a polícia e os manifestantes que tentavam avançar rumo ao Aeroporto Internacional da cidade.
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No boulevard Puerto Aéreo e na calçada Ignacio Zaragoza começou o caos: manifestantes com o rosto encoberto armaram barricadas, lançaram rojões, e a tropa de choque começou a mobilização. Os coquetéis molotov explodiram no asfalto e começaram o fogo, os golpes, as detenções.
Na rua Aviación Militar, a brigada Marabunta formou um cerco em volta das pessoas para evitar que a polícia fizesse detenções arbitrárias. Yoshi ocupava uma das pontas do cordão humano, uma mão estava na de um companheiro de brigada, a outra estava presa a um caminhão. “Deixa eu passar ou eu prendo você”, advertiu um policial. Yoshi negou-se a obedecer e, em seguida, escutou a ordem: procedam. Com empurrões, o cerco em sua volta foi se fechando. As pessoas que Yoshi protegia caíram no chão, ele caiu em cima deles, virou seu corpo como se fosse um escudo e abraçou quem ele pôde. Os outros foram levados pela polícia.
Dias depois, no dia 1º de dezembro, a brigada protegeu um grupo de manifestantes nas proximidades do Senado. “Os que haviam tocado a baderna já tinham ido embora, queriam deter quem não fez nada”, explica Miguel. A brigada formou um cordão de isolamento ao redor e, em seguida, foi rodeada por uniformizados azuis com seus escudos.
Yoshi ficou sem sua bandeira da brigada, apreendida sob a alegação de que era uma arma. Um policial exigiu que ele abrisse sua mochila. “Você não tem direito de tocá-la! Ela apenas tem material de primeiros socorros”. “Ou você me dá a mochila ou eu te prendo”. Yoshi não se moveu. “Por favor, acalme-se”, foi a única coisa que ele disse. “Na verdade, eu tinha vontade de gritar: vai se foder, seu merda!”, confessa com uma risada.
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Membro da Brigada em treinamento de primeiros socorros na Casa Marabunta
Araceli Buendía, a Chelis, conhece Miguel desde a década de 1980, quando ela tinha 14 anos e Miguel estava perto dos 20. Ambos cresceram na colônia Gabriel Hernández. Ela se uniu ao grupo de estudantes que Miguel e outros garotos criaram com apoio de Sergio Román, sacerdote da paróquia María de Jesus. Segundo os cálculos de Chelis, o grupo chegou a reunir umas cem pessoas do bairro: jovens marginalizados pelo seu aspecto e pelos seus costumes, mal vistos pelos pais de família, consumidores de álcool e drogas.
“Ovelhas negras”, pontua Chelis. “Muitos de nós que fundamos o Marabunta fomos as ovelhas negras da família”. Ela, por exemplo, rebelou-se contra seu pai, quando ele a informou que nem ela nem sua irmã continuariam recebendo ajuda para prosseguir com seus estudos quando terminassem o ensino fundamental, pois apenas os homens da casa tinham esse direito. Chelis saiu de casa para andar “vagando”, consumindo drogas e álcool.
Sergio Román, agora com 71 anos, está em outra paróquia. “Você lembra como eram Chelis e Miguel há mais de 20 anos?”, pergunto. O sacerdote acende um cigarro e aproxima um cinzeiro, onde jazem mais duas bitucas. Sim, ele se lembra. Eram animados. Acreditavam que a mudança era possível. “A revolução sempre é dos mais jovens, com o apoio dos adultos”.
Além das atividades culturais, ele estimulava os jovens para fazer trabalhos em geral. E lá estavam Miguel, Chelis e seu bando, formando um grupo de ajuda e resgate. Eram os San Gabrieles Punks, como gostavam de ser chamados no começo, ou o Grupo de Resgate Anjos das Ruas, como se batizaram depois.
Quando começaram a ajudar em trabalhos que iam desde trocar um botijão de gás até ajudar a apagar incêndios, eles deixaram as drogas para trás. Não queriam que seu hálito exalasse odor de cola se as pessoas os procuravam. “De repente sentimos que éramos úteis”, diz Miguel, emocionado.
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Miguel orienta crianças em oficina na Casa Marabunta
Carla Ríos estava com o braço engessado. Mesmo assim, insistiu para que Miguel a deixasse ir com ele, Chelis e mais três pessoas para documentar as agressões e atender os feridos durante a manifestação de 1º de dezembro de 2012, no dia da posse de Enrique Peña Nieto como presidente do México.
“Ao chegar, fiquei em choque. Havia fumaça, bombas de gás, companheiros ensanguentados. Logo fiquei em desespero, com vontade de entrar e tirar de lá todos os feridos”.
Sem uniforme, sem distintivos que os identificassem como ativistas de direitos humanos e prestadores de primeiros socorros, com uma integrante com o braço quebrado. Foi assim que começou a Brigada Humanitária Marabunta. A partir dessa manifestação, eles passaram a se identificar e traçaram objetivos.
Encarregada de fazer fotografias durante as marchas, Carla juntou-se à Brigada em 2011. Sua vida é a Marabunta. Não terminou o segundo grau, e agora que tem 26 anos planeja voltar a estudar e exercer alguma profissão. Comenta que há alguns anos tinha vontade de ser design de interiores. Agora se indaga: “Para quê? A quem isso vai ajudar?”.
Nisso ela se parece a Yoshi. Em pouco mais de um ano, ele já terá concluído o ensino médio. Quer estudar engenharia biônica e desenhar próteses, encontrar uma forma de oferecê-las gratuitamente para pessoas sem recursos que tenham perdido algum membro. Até que isso seja possível, Yoshi atua como voluntário na Marabunta.
Os integrantes da Marabunta são pessoas do bairro. Alguns, como Diego, um garoto de vinte anos, com barba e boné de beisebol, são parentes de Miguel. Outros, como Laura, uma design gráfica de 26 anos, integraram-se depois de lerem sobre eles nos noticiários.
O restante são garotas e garotos que quando crianças participaram das oficinas que a Casa Marabunta oferece: parkour, acampamento, dança e até uma intitulada “habilidades para a vida”. Quando não prestam socorro para as pessoas em manifestações, são professores ou estudantes de La Roca, o centro cultural de Marabunta erguido no sopé da montanha de Guerrero, construído em 2008 na capital mexicana com a ajuda de vizinhos e do programa de Recuperação de Espaços Públicos da Secretaria de Desenvolvimento Social do México.
“Não pode haver paz sem justiça.” Isso é o que Miguel trata de incutir nos membros da brigada. Antes que eles fossem identificados com o uniforme vermelho, capacetes, caixas de primeiros socorros e cruzes brancas, Marabunta colaborou em ações de resgate após acidentes ou desastres naturais.
Tanto Chelis quanto Miguel insistem que eles não estão de nenhum lado. A polícia não é um inimigo. “Nós atuamos como uma ponte entre as autoridades e os manifestantes”. Algumas vezes chega-se a acordos que permitem sua liberação. Outras vezes, não. E se um policial é ferido, eles o ajudam. Essa é sua função. Sua missão.
“O que deixamos claro aos policiais”, diz Miguel, “é que se tivermos que escolher, nós vamos estar do lado dos indefesos”.
Tradução: Mari-Jô Zilveti
Matéria original publicada na Emeequis, revista semanal mexicana sobre cultura, política e sociedade.