“É um filme que valoriza a ação política e a sociedade civil”, comenta o sociólogo e estudioso do continente africano Acácio Almeida sobre o Timbuktu, concorrente ao Oscar de Melhor Filme em Língua Estrangeira. “Talvez o filme deixe claro que a resposta [aos jihadistas] não pode depender apenas de uma intervenção militar, mas de um fortalecimento da sociedade”, completa o professor de Antropologia e de Relações Internacionais da Unilab (Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira), especialista em cooperação internacional no campo da saúde, e que já esteve em diversos países africanos, inclusive no Mali, onde se passa a película.
Em um contexto em que cresce a atenção sobre grupos fundamentalistas muçulmanos, principalmente depois do atentado à sede da revista Charlie Hebdo em Paris e do crescimento do Estado Islâmico, o filme Timbuktu traz uma discussão atual ao retratar a resistência da população de um vilarejo do Mali que é tomado por um grupo de extremistas islâmicos que impõe leis arbitrárias e severas aos habitantes.
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Divulgação
Cena do filme 'Timbuktu', de Abderrahmane Sissako, indicado ao prêmio de Melhor Filme em Língua Estrangeira
Leia abaixo a entrevista de Acácio Almeida a Opera Mundi, sobre as principais questões levantadas pelo filme de Abderrahmane Sissako:
Opera Mundi: Qual é o contexto geopolítico da região que o filme retrata?
Acácio Almeida: Estive no Mali algumas vezes, sendo a última delas em 2012, no momento em que a situação começava a se agravar, mas quando não havia ainda o envolvimento do Exército francês. Pude conversar com habitantes do local, e algo que me disseram é que o avanço dos jihadistas tem muito a ver com o esfacelamento da Líbia. Muitos grupos que atuavam ali desceram para áreas que até então tinham pouca importância geopolítica, algo que mudou hoje com esse avanço dos jihadistas. A intervenção militar tão urgente da França, que descumpriu um acordo que havia estabelecido com a União Africana, pode não estar relacionada diretamente ao Mali, mas ela tem claro interesse no país vizinho, o Níger, que produz urânio.
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OM: Uma das intenções do diretor Sissako em Timbuktu era não retratar o avanço dos jihadistas com uma olhar maniqueísta. Você acha que o filme consegue isso?
AA: Acho que sim. Para algumas pessoas pode parecer que o diretor ficou em cima do muro, mas na minha visão ele teve bastante cuidado para fazer com que o filme servisse como um pano de fundo para uma discussão maior que diz respeito à própria África. A escolha de Timbuktu como cenário para o filme é uma forma de lembrar do passado do Mali, que teve três importantes impérios. É uma forma de dizer que é possível encontrar outros caminhos que não sejam o da bestialidade.
No filme, até mesmo aqueles que estão servindo aos jihadistas discutem futebol, que é um esporte proibido pelo grupo que eles estão servindo. E existem, entre os personagens dos moradores, pessoas que não se submetem a esta bestialidade. A mulher que trabalha com peixes e se recusa a colocar luvas, o grupo que canta mesmo com a proibição da música… Talvez isso deixe claro que a resposta [aos jihadistas] não pode depender apenas de uma intervenção militar, mas de um fortalecimento da sociedade civil. É um filme que valoriza a ação política e a sociedade civil, e eu acho que a saída para essa situação passa por aí. Por mais que a intervenção francesa possa ser importante, ela não trará um resultado por si só, sem essa mobilização interna.
OM: Você enxerga alguma influência do contexto político nessa indicação de Timbuktu ao Oscar?
AA: Certamente ele foi indicado ao Oscar porque nesse momento se joga uma luz sobre essa polaridade entre Ocidente e Oriente, o “Islã e os outros”, o “perigo do Islã”… Acho que colocar esses temas na pauta é uma tendência atual alimentada por quem controla esse mercado. Se fosse em outro momento, embora eu goste muito da produção do Sissako, acredito que o filme não teria sido indicado.
[Sociólogo Acácio Almeida, professor da Unilab e especialista em cooperação internacional no campo da saúde]
Hoje em dia essas coisas precisam ser um pouco melhor explicadas, o mundo está querendo entender o que aconteceu [no caso do atentado contra o jornal satírico Charlie Hebdo], saber por que não se pode rir do islã. E o filme diz de alguma maneira que esse islã dos jihadistas é risível, pois é o islã do absurdo. Timbuktu pode ser um meio para mostrar que as pessoas não estão rindo de todo o islã, mas deste segmento dos bestializados. É uma maneira de o Ocidente dizer que respeita os outros, mas que está contra os que cometem esses atos de violência, até porque qualquer ação contra os jihadistas também depende do apoio de países islâmicos. Os franceses têm tido esse cuidado de deixar claro que os inimigos são os extremistas, mas o problema é que as pessoas ainda não sabem fazer essa separação, seja na França ou no Brasil.
Assista ao trailer de 'Timbuktu':
OM: Quando falamos de jihadistas, a atenção da mídia internacional vem sendo dada para o crescimento do Estado Islâmico. Este grupo se relaciona de alguma forma com o avanço dos extremistas na África?
AA: Acho que não tem uma relação direta, mas faz parte de um mesmo sentimento. Na década de 1980, o Jean Baudrillard dizia que quando a Guerra Fria terminasse nós precisaríamos de um novo bode expiatório, e que seria o islã. Não é de hoje que o islã representa um perigo para a chamada civilização ocidental. E o contrário também é válido. Acho que cada vez mais a criação do que é Ocidente e Oriente vem sendo alimentada nesses pequenos grupos na localização de um inimigo comum.
O que eu vejo é uma juventude que perdeu o direito de sonhar, pois tudo aquilo que foi prometido na década de 1960 não se cumpriu. A promessa de que eles estudariam e que a vida seria diferente veio por água abaixo quando todos os países africanos entraram em um processo crescente de empobrecimento. Você olha o PIB e o IDH desses países na década de 80 e pega os mesmos números hoje e percebe que todos eles pioraram muito. É agora que essa realidade vem mudando um pouco, mas isso não tem tido reflexo na situação social, na saúde na escola, nas áreas mais vitais.
É preciso ter uma ação mais concreta do outro lado, porque o discurso dos jihadistas vai ser pelas armas e pelo reestabelecimento de um suposto padrão tradicional. É um momento de ebulição, e o islã se mostra atraente para essa juventude na luta contra um inimigo real. A diferença é que hoje eles estão se insurgindo já armados, algo que não acontecia há alguns anos. Eu lembro de ter visto na Costa do Marfim alguns meninos vaiando soldados franceses. Hoje, se estes mesmo soldados desfilassem, eles seriam alvo de pedras, coquetel molotov… Temos que prestar atenção ao que aconteceu nos últimos 20 anos. Se hoje as pesquisas indicam que temos menos conflitos que há dez anos na África, por outro lado temos muito mais pequenos grupos se armando do que no passado.
* Adriano Garrett é editor do site Cine Festivais