Desde que foi tornada pública a notícia da morte de Claude Lévi-Strauss, os meios de comunicação a repercutem, como dizem. Como sempre, nessas horas em que a morte de um grande homem surpreende — porque sempre nos pega a todos de surpresa —, opiniões e declarações parecem brotar de todos os lados. No decorrer de sua longa vida, Lévi-Strauss esteve muitas vezes no centro de debates, foi muitas vezes alvo de críticas, deu margem a interpretações das mais variadas, entre as produtivas e as simplesmente apressadas, por isso equivocadas. Não é diferente agora.
Talvez fosse agora, ao contrário, momento de silêncio. A notícia, veiculada no mundo inteiro com pesar, talvez devesse ser antes ocasião de reler sua obra. Veríamos, por exemplo, a intensa beleza dos finais de seus livros, terminados em nada, no silêncio do fim dos tempos, no vislumbre de outros mundos pensáveis, na sabedoria do perfume de um lírio, no perdão recíproco do olhar de um gato. Lévi-Strauss deixa uma vasta e bela obra. De grande pensador, de grande escritor. Que tanto sugere novos modos de pensar quanto nos convida à observação encantada do mundo.
O estruturalismo já foi moda, mas não era aquele que propunha Lévi-Strauss, como ele mesmo frisava. Houve depois quem o considerasse superado, mas sua obra ainda não tinha sido (e ainda não foi) devidamente explorada. Para os especialistas em etnologia ameríndia, nunca deixou de ser referência, e nessa área, prosseguindo em pistas abertas por ele, a antropologia tem se renovado. Notadamente aquela feita no Brasil, e ele mesmo vinha chamando a atenção para sua qualidade já há muitos anos.
Há pelo menos duas décadas, Lévi-Strauss vinha afirmando que não pertencia mais a este mundo, que se sentia como se estivesse usurpando tempo de vida. Nem por isso deixou de se preocupar com o futuro dos humanos, cuja variabilidade cultural via declinar constantemente, borrando a beleza do que certa vez chamou de “arco-íris” das culturas humanas.
Dedicado às diferenças humanas, muitas vezes qualificado como o último clássico a pensar o humano para além dessas mesmas diferenças (e esse é apenas um dos inúmeros “paradoxos” apontados nele), Lévi-Strauss propõe um humanismo que se estende para além das fronteiras da espécie, deslocando o humano de seu auto-proclamado lugar central. O deslocamento, revolucionário, incluiu em sua reflexão considerações que chamaríamos hoje de pioneiramente ecológicas, lições de respeito para com tudo e todos neste pequeno planeta.
Massacre nas Américas
Numa das várias matérias veiculadas nestes últimos dias, dizia-se que Lévi-Strauss teria recentemente selecionado algumas de suas fotos, como uma espécie de testamento. A matéria mostrava as fotos, de homens, mulheres e crianças indígenas, tiradas no Brasil na década de 1930. Não surpreende, considerando-se que foi o encontro com os índios, por acaso no Brasil, que marcou sua vida e sua obra. É coerente com um sábio que declarava ter aprendido com os índios o que lhe cabia ensinar.
Tendo dado a reconhecer no pensamento ameríndio a dignidade de uma filosofia outra, capaz de renovar a nossa, tradutor de suas lições para termos compreensíveis para nós, Lévi-Strauss convidava a todos, em seu último livro dedicado aos mitos indígenas, História de Lince (1992), a um “ato de contrição e piedade” pelo massacre perpetrado nas Américas. Talvez seja agora o momento de atendermos ao chamado, num ato de contrição e piedade ampliado, pela constante destruição de humanos e não-humanos nesse mundo que ele acaba de deixar. “O mundo começou sem o homem e acabará sem ele”, diz uma de suas formulações mais conhecidas.
O mundo continua sem Lévi-Strauss, depois dele. Resta esperar que sua vasta obra nos permita também aprender a evitar que o que ele chamava de “espetáculo do mundo”, e tão bem revelava, acabe antes de nós.
Beatriz Perrone-Moisés, antropóloga da Universidade de São Paulo (USP) e tradutora de Lévi-Strauss, escreveu este artigo para o Opera Mundi.
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