Nos últimos meses, as notícias econômicas envolvendo o Brasil têm apresentado claro contraste em relação tanto ao contexto internacional quanto à própria história econômica do país. Enquanto a economia global e a dos principais países desenvolvidos dá sinais de enfraquecimento – crescente recessão, desemprego, endividamento público e depreciação cambial –, o Brasil tem aparecido para o mundo como um país que não só precisa ser ouvido na formulação da estratégia de recuperação quanto pode indicar caminhos aos demais. Isso porque, contrariamente ao que se estabelecera como regra, desta vez a economia brasileira tem andado (virtuosamente) na contramão da débâcle mundial: crescimento anualizado do PIB na casa dos 5-6%, desemprego em queda, crescimento das reservas internacionais baseado em investimentos de longo prazo, posição líquida credora em relação ao mundo e, em particular, ao Fundo Monetário Internacional. Enquanto o resto do mundo parece ter se “abrasileirado”, ou seja, experimentado uma clara deterioração da sustentabilidade de sua gestão macroeconômica, o Brasil parece ter se “desenvolvido”.
Hoje, duas preocupações cercam os principais governantes do mundo ocidental: a definição das novas regras e estratégias de governança econômica global e a reforma do sistema institucional que aplica e monitora essas regras. As duas discussões seguem intrincadamente relacionadas, ora favorecendo um reordenamento, ora reforçando as bases de gerenciamento das transações econômicas entre os países, que se convencionaram chamar de Sistema de Bretton Woods. Nesse sentido, primeiramente o G20 financeiro foi alçado ao centro do processo de discussão e coordenação de políticas nacionais de enfrentamento da crise. Em seguida, houve um retorno das principais organizações de Bretton Woods – FMI, Banco Mundial e OMC – ao centro do palco do gerenciamento da crise financeira global. Por fim, parece ter sido iniciado o processo de reforma do Fundo Monetário Internacional, com o crescimento do poder de interferência (mas não de veto) dos novos credores, especialmente China, Índia, Rússia e Brasil.
A pergunta relevante para entender o papel do Brasil nesse processo parece ser “em nome de quê”? Ou seja, quais seriam os valores, princípios, interesses e normas que o Brasil viria a representar como parte do clube dos novos “manda-chuvas” da governança econômica global?
Crise, nova governança e emergência do Bric
O epicentro da crise financeira de 2008-09 foi a perda de confiança nos bancos de investimento, que se seguiu à quebra das instituições mais envolvidas nos empréstimos que sustentaram as bolhas imobiliárias nos Estados Unidos, no Reino Unido e na Espanha, principalmente.
A saída gestada no âmbito do G20 passou (1) pela ampliação dos pacotes de socorro aos bancos dos países mais ricos e afetados pela crise, pelos respectivos governos nacionais, e pela coordenação do afrouxo da política monetária; (2) pelo aumento da capacidade de ação financeira do principal organismo multilateral criado, em 1944, para viabilizar o aumento da interdependência econômica no pós-2ª Guerra – o FMI –, com vistas a estancar o processo de contágio de países com fundamentos macroeconômicos frágeis, porém ainda solventes – especialmente os do Leste Europeu; (3) pelo compromisso das políticas nacionais com a manutenção das linhas mestras da Organização Mundial de Comércio (OMC), outro organismo cujos princípios elementares repousam no consenso liberal do pós-Guerra; e, por fim, (4) pela discussão bastante frouxa sobre os termos da reformulação das regras nacionais e globais para evitar a repetição da crise.
Nas três reuniões de cúpula do G20 (abril, em Londres; setembro, em Pittsburgh; e novembro, em Washington), coube aos líderes dos países mais ricos (EUA, Reino Unido, Alemanha e Japão) e da China, como país com o maior volume de reservas e com as mais significativas taxas de crescimento econômico da atualidade, a preponderância nos debates e nos termos dos comunicados lançados.
Ao longo de 2009, coube ao Brasil pousar bem para as fotos, tirando proveito da boa imagem desfrutada por seu presidente na cena internacional. Sem muita criatividade, o Itamaraty tornou a repetir o erro histórico de tentar articular uma posição comum entre países percebidos como eventuais interessados em fazer frente aos Estados Unidos – Rússia, Índia e China. Esse movimento da diplomacia brasileira beneficiou-se da crescente atração da imprensa internacional pelos três países, mesmo que por diferentes razões.
A Rússia passou por longo processo de restabelecimento da capacidade de governar do Kremlin – depois do definhamento do comunismo e do caótico processo de reformas econômicas dos anos 1990 – e tem buscado recuperar prestígio internacional, drasticamente abalado tanto pelo desmembramento da antiga União Soviética em vários países independentes, quanto pela imagem negativa causada pelas guerras da Chechênia e pela recente invasão da Ossétia do Sul e da Abkházia, territórios da República da Geórgia. A Índia e a China ocupavam crescente espaço na política e na imprensa internacionais por conta das altas taxas de crescimento do PIB e da queda da pobreza, com claros sinais de modernização econômica e social, que seguiram-se às reformas pró-mercado dos anos 1980 e 1990. Também apareciam crescentemente em razão de questões envolvendo a segurança regional.
O movimento da diplomacia brasileira em favor da institucionalização do Bric como um grupo efetivo parece ter sido percebido pelos governantes desses países como iniciativa passível de ampliar ainda mais a sua visibilidade na política internacional. O Bric transformou-se, então, de um mero agregado de países com semelhante potencial para desempenhar papel relevante na economia política internacional em 2020 – exercício proposto no âmbito do banco Goldman Sachs – em aparente aliança entre países emergentes. Em nome de quê?
Altruísmo
A falta de clareza em relação ao papel a desempenhar ficou exposta na entusiasmada afirmação do ministro da Fazenda, Guido Mantega, de que o Bric tinha criado um “FMI do B” ao assumir, em seu conjunto, mais poder do que o mínimo necessário para vetar novas decisões de empréstimo. Trata-se de afirmação esquisita, pois nada nos permite imaginar que os quatro países (1) terão visão semelhante quando avaliarem cada um dos contratos de empréstimo sobre a mesa do FMI; (2) tenham interesse em bloquear a concessão de empréstimos nos termos mutuamente acordados entre autoridades dos países demandantes dos empréstimos e os técnicos do Fundo; (3) tenham capacidade de elaborar um conjunto de “novos termos” para orientar a conformação desses acordos; e (4) tenham algo de substancialmente novo e, ao mesmo tempo, testado e comprovado para colocar no lugar das chamadas “condicionalidades” exigidas normalmente pelo fundo para liberar as parcelas dos empréstimos negociados.
Apesar das enormes diferenças de suas trajetórias econômicas e de suas instituições, Brasil, Índia e China fizeram reformas liberais nas décadas de 1980 e 1990 e ainda precisam formular e implementar mais algumas dessas reformas se querem melhor e consolidar os bons fundamentos de suas respectivas economias. Internamente, portanto, devem continuar seguindo o que há muitos anos tem sido o fundamento das políticas de ajuste estrutural do fundo: melhoria da qualidade da governança da política macro-econômica nacional. E essa parece também ser uma questão recentemente aberta pelo presidente russo, Dimitri Medvedev, em seus discursos sobre as bases rudimentares do dinamismo econômico de seu país. Não faz sentido, portanto, mudar o que tem sido bem feito pelo FMI.
Por fim, não parece muito plausível esperar que os novos credores comportem-se de modo supostamente altruísta em relação aos governos que baterem às portas do FMI em busca de crédito. Isso normalmente acontece quando o mercado privado já não mais acredita na capacidade desses governos para gerar receitas suficientes em moeda estrangeira para servir à dívida, em razão das ineficiências derivadas de suas políticas e das regras que constrangem os agentes econômicos. Pois bem, Brasil, Índia e China são países que realizaram as reformas pró-mercado e que melhoraram seus ambientes de negócio nos termos hoje demandados pelo FMI dos países devedores. E justamente por isso Brasil, Índia e China colhem agora resultados econômicos tão positivos a ponto de ascenderem ao topo das estruturas de governança da economia global.
Seria perverso, para dizer o mínimo, se viessem a bloquear aos países ora em dificuldade a possibilidade de encontrar restrições tão virtuosas quanto as que lhes são hoje impostas nos acordos com o fundo.
Carlos Pio, doutor em Ciência Política pelo Iuperj, professor de Economia Política Internacional da UnB e pesquisador-visitante da Universidade de Oxford, escreveu este artigo para o Opera Mundi.
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