Lembre-se da clássica cena de Scarface, em que o bêbado raivoso Tony Montana diz para um restaurante de Miami repleto de representantes do 1%: “Digam boa-noite ao cara mau! É a última vez que vocês verão um cara mau como este novamente!”.
Essas certamente são as palavras pelas quais o presidente mexicano Felipe Calderón gostaria de chorar a medida que ele metaforicamente cambalear para fora de seu escritório (rumores sobre seu alcoolismo são frequentes) no dia 1° de dezembro. A capa da revista mexicana de esquerda Proceso diz claramente: “O pesadelo acabou”. Nos últimos seis anos, o homem foi culpado por tudo. Merecendo ou não, ele será considerado um dos piores presidentes da história do México.
Então, digam boa-noite ao cara mau. Amigo querido por duas administrações da Casa Branca, leal defensor do FMI, extraordinário “guerreiro antidrogas”, e um homem a quem dezenas de milhares de mexicanos pediram para ser investigado no Tribunal Penal Internacional por seus crimes de guerra.
Quaisquer que sejam os outros feitos que ele tenha alcançado, a administração Calderón será lembrada, em última análise, por uma coisa: os 90 mil assassinatos sob sua responsabilidade, a maioria deles decorrente da multibilionária e totalmente carregada “Guerra às Drogas”, que tem visto tanto o exército mexicano quanto os grupos fortemente armados do crime organizado no país ruírem. Sob tais circunstâncias, a pobreza, o desemprego e os terríveis salários são apenas parte da era Nafta.
O menosprezo quanto ao “sexênio da ruína” de Calderón levou a uma nova eleição do PRI (Partido Revolucionário Institucional) em julho, pois os eleitores abandonaram em massa o seu PAN (Partido da Ação Nacional). A velha guarda – que governou o México como uma ditadura de facto por 71 anos – retornou sábado na forma do ultra-telegênico Enrique Peña Nieto, já um sucesso no YouTube por suas gafes à la Bush, seu inglês nojento e pelas aparências públicas ao lado de traficantes de drogas. O pesadelo acabou? Sem chance.
Bem ao estilo clássico do PRI, Peña Nieto ultrapassou o limite de gastos de campanha de 25 milhões de dólares em mais de 1000% e foi fortemente apoiado pela mídia corporativa no que os movimentos de protesto chamaram de uma “imposição” sobre o eleitorado. Após encobrir uma investigação sobre suposta coerção e compra de votos, o Tribunal Federal Eleitoral do país ratificou as eleições de 6 de setembro.
Agência Efe
O agora ex-presidente Felipe Calderón, durante cerimônia da posse de seu sucessor, Enrique Peña Nieto
Embora Calderón tenha dito a todo mundo em janeiro que o PRI só voltaria ao poder “sob seu cadáver”, a transição tem sido infalivelmente suave, levando muitos a suspeitarem de um pacto entre os dois para manter longe a esquerda populista (isto é, chavista). Calderón até se afastou de seu próprio partido ao se recusar a condenar o jogo sujo do PRI. Parece que os caras maus estiveram unidos, depois de tudo.
Dê uma chance à guerra
Foram seis anos de escândalos e derramamento de sangue desde o início. Em 2 de julho de 2006, Canderón derrotou o candidato da esquerda, Andrés Manuel Lopez Obrador, do PRD (Partido da Revolução Democrática ), por apenas 0,56% dos votos e enfrentou muitos protestos à la “Occupy”, na Cidade do México, por aqueles que reivindicaram que sua vitória foi uma fraude. Os protestos seguiram Canderón a todo momento até sua posse, quando ele foi conduzido ao Congresso à meia-noite, sob uma guarda fortemente armada, enquanto deputados do PAN e do PRD literalmente lutavam no chão da câmara.
Um mês depois de assumir, Calderón deu uma de “George Dubya” [apelido de George W. Bush] e apareceu em trajes militares em uma base do exército, em Michoacán. Pronto para declarar oficialmente sua guerra contra o crime organizado apoiada por Washington, ele propagandeou o poderio irrefreável das Forças Armadas mexicanas; muitos daqueles oficiais da mais alta patente administram o tráfico de drogas há anos.
Havia, de fato, uma rivalidade sangrenta entre as máfias das drogas no México, mas apenas 16% dos cidadãos acreditam que o país está mais seguro desde que Calderón enviou dezenas de milhares de tropas às ruas do país. Massacres e conflitos armados tornaram-se uma ocorrência diária; extorsão, sequestro e outros crimes foram ocorrendo à medida que os “cartéis das drogas” se diversificavam. Calderón se gaba de ter capturado ou matado 25 dos chefes do tráfico mais procurados do país (“a estratégia do chefão”), mas, às vésperas de sua partida, o crime organizado parece mais forte e profundamente arraigado do que nunca.
A “guerra” foi nada mais do que uma tentativa de unificar o bilionário (40-60 bilhões de dólares) comércio de drogas mexicano sob o guarda-chuva do cartel Sinaloa, o grupo de narcotráfico favorito de Calderón. A tomada de poder, por parte do cartel Sinaloa, de cidades fronteiriças como Tijuana, Ciudad Juarez e Nuevo Laredo, endossada pelos militares e pela polícia federal, simplesmente levou a uma violência brutal, mas o mais chocante é a impunidade. Em 2010, a Procuradoria-Geral do México admitiu que apenas 5% dos então 22 mil assassinatos relacionados a gangues haviam sido investigados, ao passo que apenas 28% das apreensões federais chegavam a julgamento.
Com um Judiciário fraco, a estratégia tem sido a pura repressão. Membros de gangues de rua são munição para canhão; os senhores da droga mais ricos não são incomodados ou lhes é entregue um confortável acordo de proteção. Qualquer um que se revelar inconveniente, em geral, acaba morto. Quanto ao papel dos militares, são milhares as queixas oficiais contra o Exército por abuso de direitos humanos.
A sujeira continua a emergir a medida em que se observa quão profundamente a administração de Calderón foi penetrada pelo cartel Sinaloa. Ao contrário do mito de que jornalistas mexicanos têm sido silenciados pela violência no país, tem havido um trabalho notável sobre até onde a corrupção vai. Entre 60% e 70% das eleições no México mostram evidências de terem sido penetradas pelo crime organizado e os três maiores partidos – incluindo a esquerda – estão envolvidos no que o ex-conselheiro de segurança da ONU Edgardo Buscaglia chama de um “pacto de impunidade” entre a classe política do país.
É a economia, estupido
Quanto à economia, ignore a falácia de que o México é o próximo dos BRIC ou o “M” do TIMBI (acrônimo para o grupo de emergentes – Turquia, Índia, México, Brasil e Indonésia) – ou qualquer uma das últimas modas entre os gurus do livre comércio. A extrema pobreza cresceu praticamente 20% em 12 anos de supostamente inclusivos e “democráticos” governos do PAN. O país é oficialmente o segundo mais desigual entre os Estados da OCDE, com programas sociais ineficientes e uma corrupção institucionalizada tão importante quanto o Nafta em relação ao crescimento lento e pesado do México.
O mandato de Calderón todo baseado em “reformas estruturais” – energia, trabalho e reformas fiscais – que foram repetidamente bloqueadas pelo esquerdista PRD e por um falso populista PRI (seu nome real, o “Partido Revolucionário Institucional”, resume o paradoxo ideológico que ele representa). O PRI, no entanto, buscará agora exatamente as mesmas reformas, operando a mando da elite mexicana. O principal nome do partido no Congresso, Manlio Fabio Beltrones, disse que tais reformas são essenciais se o país quiser emergir da “mediocridade”.
Por “mediocridade” ele quer dizer que 70% dos 115 milhões de habitantes do país vivem na pobreza; oito milhões de jovens estão sem trabalho e estudos; e praticamente metade da força de trabalho trabalha arduamente na economia informal. A resposta do governo se limita em tornar mais fácil a vida dos investidores estrangeiros e esperar que eles limpem a bagunça: o Wal-Mart é, atualmente, o maior empregador do país.
Um dos feitos de Calderón mais alardeados foi a expansão da cobertura da saúde pública para comunidades rurais isoladas por meio do programa Seguro Popular; o mínimo que o governo mexicano deve a seu povo. Mas sem nenhum investimento genuíno no futuro, tais programas nem sequer chamam a atenção para a desigualdade do país. No começo deste ano, por exemplo, os índios Raramuri estavam morrendo de fome no árido Estado de Chihuahua, no norte do país. Enquanto países como o Brasil e a Venezuela têm sido elogiados por reduzirem a extrema pobreza, os tão ostentados programas sociais mexicanos tiveram efeitos pouco significativos.
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O capital estrangeiro, é claro, tem sua própria agenda. Parte do pacto travado entre Calderón e Peña Nieto após as eleições deste ano versou claramente sobre o apoio do PRI para uma polêmica reforma trabalhista pela qual os falcões do Nafta são obcecados desde os anos 1990. Planejada para tornar a força de trabalho tão flexível e descartável quanto possível, a iniciativa nunca passaria sem um acordo por trás; o presidente faz vista grossa diante da evidência de fraude eleitoral para apressar o projeto antes que a nova legislatura de esquerda possa bloqueá-lo.
Um ponto positivo inquestionável da administração Calderón foi a tão necessária reforma da imigração (está lendo isso, sr. Obama?) planejada para proteger migrantes vulneráveis – a maioria dos quais oriundos da América Central – que usam o México como um trampolim a caminho do norte. A reforma foi aprovada por unanimidade por conta de um terrível massacre em Tamaulipas, ocorrido dois anos atrás, que deixou 72 imigrantes mortos. No entanto, ativistas e defensores dos direitos humanos permanecem céticos; Chega a 70 mil o número de imigrantes desaparecidos no México desde 2006. A mudança na lei – que garantirá um status parcialmente legal a essas pessoas – é um pequeno raio de esperança, em vez de uma vitória.
Abaixo o PAN
Uma grande questão agora é o que será do PAN; uma ardente devastação de um partido depois que levou uma surra nas eleições de 1° de julho – em grande parte, por conta do fiasco da “Guerra às Drogas”. Quando chegou o momento de selecionar o candidato para a corrida presidencial deste ano, o partido se livrou da escolha de Calderón, o Ministro das Finanças, Ernesto Cordero – provavelmente, a aposta mais segura – e se voltou à inexpressiva Josefina Vázquez Mota, cuja campanha fracassou na maior parte do tempo.
O partido está agora dividido entre os calderonistas e o atual chefe do partido, Gustavo Madero, que sabe que o PAN precisa de uma cirurgia plástica facial antes que possa novamente empreender uma batalha eleitoral com o PRI. Para tanto, Madero quer fazer uma conferência nacional para discutir o futuro do partido. Os calderonistas queriam que isso tivesse ocorrido enquanto seu chefe ainda estava no poder; a ala de Madero, de forma bem-sucedida, esperou a saída de Calderón e seus capangas se foram.
O PAN, fundado em 1939 por Católicos de direita, hoje é um partido de grandes negócios e socialmente conservador. Corre o risco de se afundar à irrelevância e ver o centro-esquerdista PRD se tornar o principal partido de oposição. De fato, o PRD e seus aliados formarão a segunda maior força no Congresso em 1° de dezembro e desfrutam de uma presença bastante significativa no Senado.
O PRD tem tudo para ganhar. Imensamente popular na Cidade do México, que vem governando desde 1997, nos próximos seis anos o partido evitará a retórica anti-imperialista de Andrés Manuel López Obrador (conhecido por todos como AMLO) e se reposicionará como uma alternativa centrista “segura” por meio da candidatura do atual prefeito (está de saída) da Cidade do México, Marcelo Ebrard. Se o afável Ebrard puder fazer o que muitos esperam e roubar uma parcela dos votos da classe média, eles poderiam engolir o PAN para o bem.
Prensa Latina – Protesto contra reformas trabalhistas em outubro
Contudo, as coisas nunca são simples na esquerda mexicana. Em 9 de setembro, o duas vezes candidato à Presidência AMLO anunciou que estava finalmente rompendo os laços com o PRD depois de 23 anos e que transformaria seu Movimento de Regeneração Nacional (MORENA) em um partido político apto a voar. Isso certamente dividirá os votos da esquerda e provavelmente resultará em uma nova vitória do PRI em 2018. AMLO ainda é um ícone para milhões de pessoas.Apenas não se surpreenda caso os veja se beijando e fazendo as pazes antes disso. O drama interpessoal da esquerda mexicana derruba qualquer novela que você já tenha visto; muito embora este seja o racha mais sério desde que o PRD foi fundado, em 1989.
Harvard espera!
Enquanto divide opiniões como nenhuma outra pessoa no México, Felipe Calderón tem sido vastamente elogiado internacionalmente. Trata-se exatamente do tipo de líder que os figurões de Washington e Bruxelas gostam de ver conduzindo o show lá embaixo, no sul. Quando o México recebeu a cúpula do G-20, em junho, ele esteve lado a lado com Obama e outros pesos pesados globais na defesa de reformas de mercado e ajudas do FMI como elementos chave de desenvolvimento e recuperação. Dado o movimento da América Latina em direção à esquerda nos últimos anos, Calderón tem aliados mais próximos nos Estados Unidos, no Canadá, na Espanha e no Reino Unido do que nos seu próprio quintal.
Seu relacionamento com as administrações de George W. Bush e de Barack Obama têm sido exemplares (em um sentido neocolonial), mesmo que, como qualquer presidente mexicano, ele tenha que, ocasionalmente, ralhar com o Big Gringo por seu consumo violento de drogas, suas leis lamentavelmente frouxas quanto às armas de fogo e seu tratamento degradante em relação aos imigrantes. Enquanto que o voto latino foi crucial nas recentes eleições norte-americanas, o próprio México se tornou notável por sua ausência nesses debates.
Não deve causar nenhuma surpresa o fato de que, aos poucos, Calderón se mudará com sua família para os Estados Unidos. Ao passo que uma petição dos cidadãos endereçada ao Tribunal Penal Internacional o acusa de crimes contra a humanidade por conta das 70 mil mortes na “Guerra às Drogas”, ele esta protegido pela notícia de que Washington garantiu imunidade ao ex-presidente (e professor de Yale) mexicano Ernesto Zedillo, que atualmente é processado em uma ação civil por seu papel no massacre de Acteal, em 1997.
Calderón foi relacionado para um cargo de professor em Austin, até que o numeroso corpo docente hispânico da Universidade do Texas protestou furiosamente contra a ideia de ele se juntar a sua faculdade. Agora, uma aposta mais segura parece ser Harvard, onde ele, sem dúvidas, proclamará as virtudes do livre comércio e da “segurança democrática” ao estilo colombiano. Tal como a maior parte dos ex-latino-americanos “guerreiros antidrogas”, ele certamente também se revelará a favor da legalização em algum momento – seis anos depois, é tarde demais.
Quanto ao México, aqueles eleitores que se afastaram do calderonismo em julho, na esperança de que o PRI vá restabelecer a segurança pública e o crescimento, têm a certeza de que serão desapontados. O PRI, uma vez desafiadoramente nacionalista, agora é apenas outro partido neoliberal e tem oferecido pouca mudança na luta contra o crime organizado. Grandes protestos de estudantes, sindicatos e outros movimentos sociais já estão planejados para a posse de Peña Nieto, no sábado, quando mais um “cara mau” assumirá o governo.
Paul Imison vive no México. Ele pode ser contactado pelo e-mail: paulimison@hotmail.com