Em uma época em que o controle da dívida pública se tornou a preocupação principal na União Europeia, não é nada conveniente lembrar que a invasão francesa na Argélia foi um acontecimento histórico diretamente ligado às dívidas contraídas desde 1789, no início da Revolução. Essa dívida foi tema de tensões entre a França e a Regência de Argel (território pertencente ao Império Turco Otomano), que culminou com a tomada da região em 1830.
Na obra “A Pilhagem em Argel” (Main basse sur Alger, no original), o jornalista investigativo Pierre Péan afirma que o objetivo do rei Charles X era se apropriar dos tesouros de Argel para ganhar apoio interno na França. O valor dessa fortuna estimada por Péan equivale a 4 bilhões de euros nos dias de hoje. Essa “aventura” durou 132 anos e, até hoje, persiste através de uma relação bilateral marcada por forte ligações econômicas e humanas, evidenciada por uma presença numerosa de argelinos na França.
O sistema colonial francês guardava muitas semelhanças com o apartheid na África do Sul. Enquanto cristãos e judeus locais eram considerados franceses perante a lei, os muçulmanos não tinham o mesmo status, sendo muitas vezes julgados por códigos legais destinados às populações nativas.
Bloqueios argelinos
A sociedade argelina contemporânea está paralisada há anos em razão de uma lenta transição do país africano em direção à democracia e por não ter iniciativas e visão a longo prazo no setor econômico. Além do desenvolvimento da infraestrutura local, das estradas e do setor habitacional, que já começaram a dar os primeiros passos, o país precisa urgentemente investir na agricultura, na indústria do turismo, na luta contra a corrupção massiva e, acima de tudo, na criação de polos de inovação, a fim de avançarm e diversificar a economia argelina. Só assim conseguirá finalmente se livrar da dependência das matérias-primas, que está em um período de forte demanda mundial.
A quantidade de investimentos na Argélia é prejudicada especialmente por causa de uma lei que obriga que todo o tipo de empresa instalada no país tenha um percentual de 51% de capital argelino. Apesar disso, o país progrediu em questões como saúde, urbanização e alfabetização. Na época colonial, os argelinos nativos eram excluídos maciçamente do sistema educacional. Na época da independência, os argelinos contabilizavam nove milhões. Hoje são 40 milhões. Sob o ponto de vista geoestratégico, a Argélia parece ter regredido, pois está isolada, principalmente em razão de tensões com o Marrocos – a fronteira entre os dois países está fechada –, e por causa da instabilidade política e militar na fronteira ao sul do Mali. Além disso, a guerra civil durante a década de 1990 contra os grupos islâmicos contribuiu para uma política voluntária de isolacionismo.
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Nos anos seguintes à independência, a Argélia era um lugar de contestação internacional, tendo acolhido nomes como Nelson Mandela, Malcom X, Che Guevara, além de uma série de organizações e militantes que lutavam pela independência de seus povos ou contra a ditadura – como foi o caso de vários combatentes brasileiros.
Agência Efe
Hoje ela tenta sair de seu isolamento, pois a falta de integração regional é problemática e contribui para a falta de transformações políticas – por sua vez, uma das causas da incapacidade argelina para emergir mais rapidamente. Para além dessa inércia, a Argélia tem igualmente dificuldade em valorizar alguns de seus próprios trunfos: enquanto é o segundo maior país francófono no mundo, ao mesmo tempo não figura entre os membros da organização internacional da francofonia.
Por trás dessa inércia política e esse conservadorismo aparente, ocorre na Argélia uma revolução silenciosa, especialmente na criação de serviços de lazer e no desenvolvimento do mercado de trabalho feminino, que constitui uma potencial alavanca de mudança econômica e social.
Os laços com os imigrantes argelinos, principalmente na França e no Canadá, apesar dos problemas, contribuem igualmente para o desenvolvimento do país, e só devem aumentar no futuro.
Negação e tabus franceses
Na França, todo debate com a Argélia como tema se resume, na maioria das ocasiões, em uma vontade de falar sobre as ações positivas do país na ex-colônia ou em denunciar as violências e crimes cometidos pelos europeus. Esse tratamento simplista demonstra a persistência de um conservadorismo e de tabus de uma parte das elites e da sociedade francesa que pena para reconhecer os crimes, massacres, testes nucleares no sul do país e também os episódios de tortura no passado.
A visita do presidente francês François Hollande na Argélia oferece um avanço tímido sobre a questão. Seguem alguns trecho de seu discurso realizado no dia 20 de dezembro de 2012, na frente de uma multidão composta em grande parte por um público jovem:
“Durante 132 anos, a Argélia foi submetida a um sistema profundamente injusto e brutal. Esse sistema tem um nome: a colonização. Eu reconheço aqui os sofrimentos que a colonização infringiu no povo argelino. A verdade não cria divisões, ao contrário, ela repara. Portanto, mesmo quando a história é trágica e dolorosa, ela tem de ser dita (…) Nada se constróis através da dissimulação, nem o esquecimento nem a negação”.
Ainda persistem fortes resistências sobre a questão colonial, principalmente em razão da presença de antigos colonos no sul da França, os “pied-noirs”. Por razões estratégicas e militares, mas também ideológicas, é sobretudo na direita e na extrema-direita que há mais resistência em abordar o tema. O ex-ministro da Defesa do governo Nicolas Sarkozy, Gérard Longuet, chegou a dizer sobre a colonização que “ela constituía um verdadeiro progresso em comparação do que era uma sociedade tradicionalmente otomana”. “O colonialismo foi, em grande parte, aceitável, tem um balanço positivo. Quero dizer as coisas como elas são!”; “Acredito que o colonialismo não é o causador das dificuldades pelas quais a Argélia passa atualmente, os argelinos deveriam ser honestos em reconhecer isso”. Ele chegou ao ponto de, durante a transmissão de um programa de TV, mandar uma “banana” quando perguntado sobre se a França reconheceria os crimes coloniais na Argélia.
Apesar de todo o trabalho das associações dos intelectuais e dos historiadores para tentar fazer compreender esse passado doloroso, os políticos continuam a instrumentalizar a memória colonial e associá-la à nostalgia da França colonial.
Em uma época onde se deve ser proativo face á rapidez das mudanças, a França ganharia muito se conseguisse acabar com as dores do passado através de um reconhecimento formal e institucional dos crimes coloniais. É uma questão moral para a França, que seria muito coerente com seus valores que ela diz defender.
François Hollande não foi longe o suficiente para reconhecer os horrores e as barbaridades perpetradas na Argélia. Na verdade, o medo da França se baseia em consequências jurídicas, pois os crimes na Argélia poderiam ser tipificados como crimes contra a humanidade, que são imprescritíveis! Por outro lado, o reconhecimento seria uma demonstração clara da prova de maturidade e de boa fé no futuro das relações franco-argelinas.
Esta seria outra maneira de colocar um fim definitivo à instrumentalização dessa questão entre os dois lados do Mediterrâneo. E pode forçar o governo argelino a enfrentar suas próprias responsabilidades e planejar um futuro para uma população jovem e desejosa por mudanças. François Hollande se contentou em fazer o mínimo nesse sentido.
Interesses econômicos
De um ponto de vista econômico, a França tem interesse em reforçar seus laços com a África através de outro caminho. Portanto, durante sua viagem, o presidente francês afirmou que “as relações entre França e a Argélia devem atingir um novo estágio para multiplicar as trocas, os investimentos e os objetivos em comum. Devemos combater o desafio do desemprego, especialmente entre os jovens. (…) Temos de dividir nossas tecnologias, nossa expertise, nossas experiências. Precisamos criar outras alternativas em prol do desenvolvimento”.
Ainda que outros atores, notadamente a China, os Estados Unidos, a Turquia, o Qatar ou ainda o Brasil estejam cada vez mais presentes no continente africano, a Argélia e os demais países francófonos poderiam oferecer oportunidades importantes para a economia francesa, atingida por uma crise duradoura. Se o ano de 2011 foi recorde para as exportações francesas na Argélia, ainda há um grande potencial a ser explorado.
Reciprocamente, a Argélia continuará a ser um fornecedor importante para a França, em particular no setor energético, já que 15% do gás consumido na França é originário da Argélia – a França ainda não parece preparada para explorar o gás de xisto disponível em seu próprio território. Graças aos seus importantes recursos em matérias-primas, a Argélia obtém uma acumulação de capital que poderá ser usada a favor de seu desenvolvimento econômico e social.
Dessa forma, um acordo foi assinado durante essa visita para a construção de uma montadora da Renault e uma exclusividade durante três anos em Orã, oeste do país.
A falta de clareza do presidente francês poderia prolongar o afastamento dos dois países, que partilham de uma história dolorosa.
Embora o presidente francês tenha mencionado o termo “tortura”, ele não condenou tal prática. Vale lembrar que os métodos de tortura utilizados pelas Forças Armadas francesas, especialmente pelo general Paul Aussaresses durante a Batalha de Argel, foram vendidos como expertise francesa especialmente na América Latina. O termo “esquadrão da morte” nasceu diretamente dos métodos utilizados na guerra da Argélia.
Podemos considerar essa viagem como um avanço tímido em relação ao reconhecimento dos crimes do passado. Por enquanto, a presença econômica francesa ainda permanece muito importante na Argélia, mesmo com a chegada desses novos atores. Mas por quanto tempo ainda?