Imagem do satélite Terra: camadas de gelo flutuam na costa leste da Groenlândia
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Os cerca de 80 mil turistas que visitaram o Polo Norte no último verão puderam observar as mudanças na topografia: icebergs desmoronando sobre o mar, placas de gelo soltando-se e rotas que até cinco anos atrás permaneciam congeladas, hoje perfeitamente navegáveis. O aumento da temperatura global está derretendo o gelo do oceano Ártico, tornando aquela parte do planeta acessível pela primeira vez em gerações. No percurso, os turistas com certeza encontraram grandes cargueiros em missões de exploração — cada um deles abrindo caminho para futuras rotas de exploração do polo congelado. Esses navios são os arautos da intensa competição pela abundância de recursos naturais que jaz sob o gelo que está derretendo.
Estudos científicos recentes confirmam que o Ártico está se aquecendo duas vezes mais rápido do que o resto do globo. O período entre 2005 e 2010 foi o mais quente desde que as temperaturas começaram a ser medidas, em 1840. Em setembro de 2011, no auge da redução do gelo devido ao verão, as calotas polares cobriam 4,33 milhões de quilômetros quadrados do oceano Ártico. De acordo com o Centro Nacional de Estatísticas sobre Neve e Gelo dos Estados Unidos (NSIDC, na sigla em inglês), isso representa uma queda de 50% da média de cobertura de gelo no oceano entre 1979 e 2000.
O Ártico também está ficando mais fino e mais jovem. Suas calotas mais grossas e antigas, que se formaram ao longo de vários anos e conseguiram sobreviver a vários verões, estão sendo substituídas por gelo que se forma anualmente durante o inverno e depois derrete quando as temperaturas sobem. Isso torna o Ártico mais vulnerável ao aquecimento global. Segundo o NSIDC, somente 5% das calotas de gelo do Ártico tinham mais de cinco anos no último verão.
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Reservas
Hoje, as vastas reservas árticas de combustível fóssil, peixes e minerais — inclusive metais de terras raras — permanecem acessíveis por um período mais longo. Porém, diferentemente da Antártida, que é protegida da exploração por um tratado estabelecido durante a Guerra Fria e não pode ser objeto de reivindicações territoriais por parte de nenhum país, não existe um regime legal que proteja o Ártico da industrialização, especialmente nesse momento em que muitos países almejam por cada vez mais recursos.
Das oito nações árticas — Rússia, Suécia, Noruega, Islândia, Dinamarca (Groenlândia), Finlândia, Canadá e Estados Unidos –, várias têm explorado as águas do Ártico, tendo encontrado mais de 400 campos de petróleo com reservas de cerca de 240 bilhões de barris de petróleo e gás natural.
Novas reservas ficarão acessíveis com o derretimento de mais gelo polar. A pesquisa geológica dos EUA estima que o Ártico contenha até 20% das reservas não exploradas de hidrocarbonetos, cujo potencial pode chegar a 90 bilhões de barris de petróleo, 47,3 trilhões de metros cúbicos de gás natural e 44 bilhões de barris de gás condensado. Cerca de 80% dessas novas descobertas provavelmente estão a pouca distância da costa, e a apenas 500 metros de profundidade.
Passagens
O derretimento do gelo também abre duas rotas de navegação que reduzem consideravelmente a distância entre os países ocidentais e a Ásia, conectando os oceanos Pacífico e Atlântico. São as chamadas Passagem Noroeste, ao longo da costa norte da América do Norte, e Passagem Nordeste, ao longo da costa da Sibéria. A Passagem Noroeste reduzirá em quase 25% a distância do porto de Seattle, nos Estados Unidos, até o porto de Roterdã, na Holanda, uma rota hoje feita através do Canal do Panamá.
Se, como preveem alguns cientistas, essas passagens se tornarem navegáveis durante todo o ano nas próximas décadas, elas podem redesenhar as rotas globais de comércio e transporte.
As novas possibilidades de rotas e recursos têm causado alvoroço na geopolítica global, especialmente entre as nações árticas. “O derretimento do Polo Norte indica uma grande agitação nas relações entre os países, já que essa pode ser considerada a maior descoberta de petróleo e gás em muito tempo”, acredita Vijaya Sakhuja, diretor de pesquisa do Conselho Indiano de Assuntos Internacionais, instituição do Ministério das Relações Exteriores da Índia, em Nova Déli.
Alianças
Até 2005, quando surgiram previsões científicas definitivas sobre o derretimento do gelo do oceano Ártico, as nações árticas eram um grupo coerente, que atuava principalmente na preservação do meio ambiente e no desenvolvimento sustentável da região, diz Sakhuja. Elas agora estão tentando reivindicar sua dominância no Ártico através da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar.
A lei permite que os estados membros explorem todos os recursos naturais disponíveis até 370 quilômetros de distância da sua linha costeira. Eles podem, entretanto, estender sua jurisdição a até 650 quilômetros caso submetam evidência geológica dos limites de suas plataformas continentais. Rússia, Estados Unidos, Canadá, Noruega e Dinamarca (Groenlândia) reivindicaram a extensão de sua jurisdição até o território ártico.
Em março de 2012, em uma manobra inesperada, Rússia e Noruega concordaram em estreitar relações militares e expandir a cooperação em seus territórios árticos. Até dois anos antes, esses dois países estavam em atrito devido a uma disputa de quatro décadas sobre a fronteira do Ártico. Ambos criaram unidades especiais para o Ártico em seus exércitos no último ano. A Rússia construiu navios quebra-gelo para transportar equipamento militar e mandou brigadas extras às suas bases mais ao norte. A Noruega pretende comprar 48 aviões de caça F-35 para fortalecer as suas defesas na região.
E em uma demonstração de força, Estados Unidos, Canadá e Dinamarca ensaiaram manobras militares em seus territórios árticos em fevereiro de 2012.
Petróleo
A Rússia, que tem um terço de seu território dentro do Círculo Ártico, tem sido o ator mais agressivo em sua tentativa de se estabelecer como uma superpotência na região.
Cerca de dois terços das reservas da gigante estatal do petróleo, a Rosneft, estão na costa do Ártico. No entanto, grande parte do recurso está sob o gelo, e ainda não há infraestrutura para tirá-lo de lá. Para atrair investimentos e tecnologia, o presidente russo Vladimir Putin instituiu uma nova diretriz em fevereiro de 2012, permitindo que empresas estrangeiras explorem os recursos árticos por conta própria. Dois meses depois, ele baixou outra medida, oferecendo descontos nos impostos sobre hidrocarbonetos e minerais produzidos no território ártico do país.
“Os interesses da Rússia no Ártico são econômicos, geográficos, científicos e ambientais. O ártico russo é também uma área em que os interesses geopolíticos de estados árticos e não árticos interagem, devido a sua posição geográfica”, diz Valery P. Pilyavsky, vice-chanceler de Pesquisa e Desenvolvimento na Academia Polar Estatal em São Petersburgo, na Rússia.
Na fila
A última fase da corrida do Ártico está sendo disputada no Conselho do Ártico, um fórum intergovernamental formado por nações árticas e representantes dos povos indígenas do polo, como os esquimós.
O conselho discute questões relacionadas ao meio ambiente, desenvolvimento sustentável e pesquisa científica no Ártico, e não lida com questões relacionadas à segurança militar. Seis nações não árticas – Reino Unido, França, Espanha, Alemanha, Polônia e Holanda — têm lugar no conselho como observadores.
China, Índia, Brasil, Japão, Coreia do Sul, a União Europeia e vários países europeus também estão reivindicando um lugar no Conselho. Entretanto, Índia e China estão despontando como os dois candidatos mais fortes para se unir ao Conselho com status de observadores.
“Enquanto o principal in-teresse indiano é a pesquisa, os interesses chineses são mais estratégicos e envolvem a prospecção de hidrocarbonetos”, afirma Sakhuja. As novas rotas marítimas também dão imensa vantagem militar à China. O país já reformou o seu porta-aviões, transformando-o em um quebra-gelo.
Riscos
A estrada para a bonança ártica não é livre de obstáculos. Por um lado, há preocupações ambientais que demandam a restrição de atividades industriais. Por outro, há o desafio de construir infraestrutura em condições climáticas extremas, que podem obstruir as atividades de exploração e afetar a viabilidade econômica dos projetos.
“A natureza intocada do Ártico ainda não foi estudada, e o estabelecimento de qualquer atividade de produção na costa acabaria com o habitat natural”, alerta Alexei Knizhnikov, responsável pelo setor de ecologia do petróleo e gás na WWF-Rússia. Há também o temor de derramamento de petróleo, o que poderia devastar a ecologia da região. No momento, sublinha Knizhnikov, há uma enorme lacuna tecnológica. Não há equipamento e infraestrutura para remover uma grande quantidade de petróleo em condições glaciais, e não há sanções estabelecidas contra as empresas no caso de acidente.
Além disso, o derretimento do gelo por si só pode ser desastroso para o clima global. Quando o gelo perene derrete, ele libera carbono na atmosfera. Margareta Johansson, uma das pesquisadoras da Universidade de Lund, na Suécia, afirma: “Nossos dados mostram que há aproximadamente duas vezes mais carbono armazenado no gelo perene do que na atmosfera hoje”. Mais gases estufa significa mais calor sendo aprisionado na atmosfera, resultando em mais aquecimento global.
A diminuição na cobertura de neve também faz diminuir a capacidade de refletir a luz solar e aumenta a absorção. Isso aumenta a temperatura atmosférica, o que faz acelerar o derretimento.
O debate sobre explorar ou não o Ártico oscila entre duas perspectivas. As nações árticas querem se aproveitar dos recursos, enquanto as não árticas querem que o polo seja preservado como bem comum global, assim como a Antártida e as águas internacionais. Até agora, porém, não surgiu nenhuma iniciativa global substancial para decidir como governar o Ártico. Isso se deve a duas fortes razões: os hidrocarbonos e a sua peculiar localização geográfica.
Se as reivindicações das nações árticas forem acatadas, haverá bem pouco mar digno de uma administração como bem comum. Um Ártico mais quente trará inegáveis benefícios a alguns, mas o resto do mundo terá de pagar a conta.
Tradução por Carolina de Assis
* Texto originalmente publicado na revista indiana Down To Earth
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