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Resultado de jogo do bicho em muro na Rua do Ouvidor, no centro do Rio de Janeiro
Só ganha quem joga. Meu pai sempre me disse isso. Mas foi no Rio de Janeiro que descobri: a máxima do meu velho é na verdade um dos mais antigos slogans do jogo do bicho. Foi assim que entrei na fila para jogar. Uma mulher e seu filho, Junior, cuidavam do ponto (nada além de uma cadeira) localizado em uma galeria de lojas numa quadra do bairro carioca do Flamengo.
“Ei, não gosto de ninguém nas minhas costas”, me falou a moça que assinalava os jogos. “Se eu caio, você cai junto!”, me advertiu, nada simpática. Obedeci, me coloquei na frente dela e perguntei: “Como faz para jogar?”. Um senhor que apostava 100 dilmas no bicho incentivou. Sorte de principiante, ele disse. A moça, por sua vez, me explicou que eu poderia fazer um terno, leia-se: um jogo com três bichos. A cada um real apostado eu poderia ganhar até R$ 130.
Opa, pensei, se ganhar essa grana o fim de semana no Rio vai ser de barão. Apostei R$ 10 nos bichos do preconceito: macaco, veado e vaca. Me representam. Por dia, soubemos, há quatro sorteios. Os resultados saem às 11h, às 14h, às 18h e às 21h. Nesses horários, o papelzinho com o resultado é afixado em um poste sempre perto de onde se jogou. Vale o que está escrito. E tem sido assim nos 121 anos em que o jogo existe no Brasil.
O jogo do bicho surgiu no país em 1892, quando o mexicano Manuel Ismael Zevada vendeu seu “jogo das flores” para o Barão João Batista Viana Drummond, fundador do Jardim Zoológico do Rio de Janeiro. Para aumentar o número de visitantes no zoológico, o Barão de Drummond transformou o jogo das flores no jogo do bicho.
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Funcionava assim: ao comprar um ingresso pro zoo, o visitante recebia uma cartela com um bicho impresso. Ao fim de cada dia, um animal era sorteado e cada visitante que tivesse o bicho correspondente recebia uma quantia em dinheiro. Sucesso. Em pouco tempo, o zoológico viu sua frequência aumentar exponencialmente e, claro, não demorou para que o jogo extrapolasse os muros do lugar.
Detalhe: já no século 19, o jogo de azar (aquele cujo resultado depende unicamente da sorte) era considerado uma prática ilegal no Brasil. Mas ainda que barrada pela polícia, a jogatina comia solta desde sempre. Só em 1941 o mal afamado jogo do bicho passa a ser considerado, à vera, uma contravenção penal.
Nesses 73 anos de ilegalidade o jogo não deixou de existir. Por uma simples razão: entra ano, sai ano, não faltam apostadores.
Os números comprovam. As apostas supostamente movimentam R$ 12 bilhões por ano no Brasil. A cada real que você joga no bicho, R$ 0,60 é destinado ao prêmio, enquanto as apostas na loteria da CEF (Caixa Econômica Federal) pagam de R$0,28 a R$ 0,32 sobre o mesmo valor apostado. Não é por acaso que no país existem cerca de 350 mil bancas de jogo do bicho e 20 milhões de pessoas (10% da população) fazem diariamente sua fezinha.
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Os dados são do Instituto Jogo Legal, ONG que defende uma espécie de libera geral dos jogos de azar: jogo do bicho, cassinos e vídeo bingos. Presidente da instituição e nome à frente da empreitada, o jornalista Magno José, 54, levantou os números diretamente com os operadores do jogo informal (sim, esse é o eufemismo para bicheiros).
Pode parecer pegadinha. Afinal, diz-se por aí que o jogo do bicho gera enriquecimento ilícito (aquele não tributado), financia campanhas políticas e o nada modesto carnaval do Rio de Janeiro ganhou as proporções de maior espetáculo da terra com dinheiro do jogo. Quer dizer, se a grana da contravenção faz tudo isso e muito mais, legalizar pra quê?
Para Magno a questão é simples: “A ilegalidade passou a custar caro aos contraventores”. Pagar os milicianos e toda a rede que sustenta o jogo informal tem sido um peso extra para a nova geração de operadores do jogo informal. Segundo o jornalista, é desejo dos operadores deixar um negócio legal para os seus herdeiros. Sem falar que a reforma do Código Penal Brasileiro endurece as penas contra o jogo do bicho.
O mais completo projeto que prevê a legalização dos jogos de azar no país, de autoria do senador Ciro Nogueira (PP-PI), está tramitando no Senado. Para Magno, Aécio Neves era o único candidato à presidência com “a cabeça aberta para discutir o jogo não como uma questão moral, mas como uma questão econômica, uma indústria – como ela é tratada no mundo todo”.
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Mas por que logo Aécio, o candidato da elite brasileira, iria legalizar um jogo considerado por muitos como imoral? Magno dá a letra: “O Aécio é o único cara que eu tenho a indicação de que iria legalizar o jogo. O primeiro emprego dele foi como diretor de loterias da Caixa Econômica Federal, ele conhece tudo do setor”, afirma.
Histórico posto, números listados, fomos às propostas do Instituto Jogo Legal. “Eu não critico quem oferta o jogo ilegal. O culpado é o Estado que vem sendo omisso há 74 anos. Se esse segmento fosse regulamentado, nós teríamos R$ 15 bilhões em tributos por ano para serem aplicados em projetos do governo”, diz Magno.
O adequado para controlar o jogo, fala o jornalista, seria a implementação de uma agência reguladora ligada ao Ministério da Fazenda. Só a agência poderia controlar a concessão, arrecadação e fiscalizar quem será suspenso ou punido pela má prática do jogo.
Esse modelo, explica Magno, existe em Las Vegas. “Um lugar onde a cada quatro minutos chega um avião com 400 pessoas ávidas a perder alguma coisa”, diz ele usando um dado do Comitê de Turismo de Vegas.
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Elias Rovielo / Flickr
Anúncio da Mega Sena da Virada em São Paulo: “tributação gerada a partir das apostas da CEF vai para o fundo penitenciário, o comitê olímpico, o INSS e o fundo de cultura”, lembra Magno
Para explicitar o tamanho que o jogo informal tem no país, Magno nos mostrou um documento apresentado à Câmara dos Deputados, em abril de 2014, durante uma audiência pública. Intitulado como “O Brasil e o Jogo Ilegal”, o levantamento reúne os números da informalidade:
Números do jogo legal:
As loterias da Caixa Econômica Federal movimentam R$ 11,4 bilhões por ano.
As loterias estaduais movimentam R$ 400 milhões ao ano.
Os quatro jóquei clubs brasileiros movimentam R$ 300 milhões ao ano.
Números do jogo ilegal:
R$ 12 bilhões são gerados pelo jogo do bicho por ano.
R$ 3,6 bilhões são apostados em caça níqueis (estima-se que existam mais de 200 mil máquinas no país) por ano.
Os bingos geram R$ 1,3 bilhão por ano.
As apostas ilegais na internet movimentam R$ 2 bilhões por ano.
Magno explica que “o mundo inteiro” costuma tributar o valor das apostas em 30%. Na hipótese do Instituto Jogo Legal, o mercado brasileiro pode chegar a arrecadar R$ 45 bilhões em apostas por ano (eles alegam que há uma demanda reprimida, quer dizer, se bem explorado o jogo poderia atrair ainda mais jogadores), o que geraria R$ 15 bilhões de tributo ao país. “Para você ter uma ideia, esse valor equivale a um terço de todo orçamento destinado à educação no Brasil para 2014. Será que não vale a pena legalizar?”, pergunta Magno.
Foi nesse momento que eu comecei a achar óbvia a ideia de legalizar o jogo no país. Mesmo ilegal, ele não deixa de existir e o negócio poderia gerar grana capaz de ser empregada em Educação e Saúde. Mas… Se o jogo for mesmo liberado quais podem ser os problemas reais disso? Jogos de azar viciam. E qual a garantia que temos que o dinheiro da tributação será bem aplicado? O próprio Magno respondeu que no Brasil há várias entidades “penduradas” nos prêmios das loterias. “A tributação gerada a partir das apostas da CEF vai para o fundo penitenciário, o comitê olímpico, o INSS e o fundo de cultura”. O jornalista lembrou que o responsável por definir qual será a área beneficiada pela tributação do jogo é o próprio Congresso.
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E como nem tudo são flores, Magno conta que são três os principais argumentos contra o jogo: patologia, lavagem de dinheiro e falta de controle. Dados da Organização Mundial de Saúde apontam que de 3% a 5% da população tem problemas patológicos com o jogo. Ainda assim, o presidente do Instituto Jogo Legal é categórico: “O Estado não deve incentivar o jogo. O Estado deve controlar o jogo”.
Para sabermos mais sobre os dados do bicho no país, fomos atrás de um professor. Simão Brayer, 88, nos recebeu em seu apartamento, no Leblon. Mineiro de nascimento, Simão se mudou para o Rio de Janeiro ainda jovem para estudar. Na então capital do país, ele se formou em arquitetura, mas seu interesse era mesmo a matemática e a tecnologia. Não é à toa que Simão é quem moderniza o sistema bancário do Banco do Estado da Guanabara assim como o sistema das lotéricas no Brasil.
Agora rebobina a fita. O ano é 1967 quando Simão é chamado para implementar no país a loteria esportiva. “Durante o governo militar do Costa e Silva, queriam instituir o novo jogo (que seguia o modelo da loteria esportiva italiana) num prazo de 90 dias. As empresas de informática do Rio de Janeiro foram convocadas, entre elas a RACIMEC (que eu fundei em 1966), mas ninguém quis fazer em um prazo tão curto e com um contrato de risco”, relembra Simão.
Entre idas e vindas, enfim, a loteria esportiva vira realidade em 1970. “Prevíamos um volume de dois milhões de apostas em um prazo de dois anos, mas em seis semanas tínhamos seis milhões de apostas”, conta.
Simão estava na crista da onda. Nosso homem que calculava conta que o melhor governo brasileiro para as loterias foi o período em que Médici (1969-1974) esteve no poder. O então militar que comandava o país era simpático ao jogo e queria modernizar o sistema das lotéricas. “O Médici aprova a máquina que eu desenvolvi e como ele era muito apaixonado por futebol, quis conhecer como funcionava o sistema lotérico por dentro”, fala saudoso Simão.
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Depois do sucesso da loteria esportiva, Simão é convocado pelo próprio governo para dar uma solução ao jogo do bicho. “Foi quando fui a Las Vegas e tive acesso às técnicas de segurança dos cassinos. Provei que o sistema poderia ser empregado no país, mas pelo visto as pessoas não querem isso por aqui”, argumenta, dando a entender que não são apenas os bicheiros que ganham com a contravenção.
Mas por que não inventar um jogo nos moldes do bicho, que possa ser operado legalmente? Com essa ideia, Simão desenvolveu o jogo dos sonhos, que era operado pelas próprias loterias da CEF.
“Em meados de 1970, o jogo dos sonhos foi lançado em Londrina em uma fase experimental, mas fracassou graças ao boicote dos bicheiros”, argumenta Simão. “As próprias loterias eram comandadas pelos bicheiros. É assim no Paraná até hoje”, entrega.
“É hipocrisia não legalizar. Quem perde é o povo. Com a ilegalidade você só tem o aumento da corrupção”, dispara Simão. “A nossa lei é interessante. Ela não é igual para todo mundo. A Caixa Econômica Federal explora o jogo de azar, mas por que só pra ela é permitido?”.
Matéria original publicada no site da Vice Brasil.