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Calças jeans em exibição: tecido é um dos maiores desafios ambientais da indústria, já que sua produção demanda grande quantidade de água e uso intenso de produtos químicos
As mudanças na economia centralizada pelo Estado no Vietnã começaram a engatinhar no fim dos anos 1980, mais de uma década depois do fim da guerra. A política do Doi Moi, ou “Renovação”, foi implementada na época para criar o que o governo descreveu como uma economia de mercado orientada para o socialismo. Em 1995 as relações diplomáticas com os Estados Unidos foram normalizadas, e em 2007 o Vietnã se tornou o 150º membro da Organização Mundial do Comércio. Nos dias de hoje, a economia vietnamita vive um ‘boom’, e boa parte dele teve como condutor o crescimento de uma só indústria: a do vestuário.
Em 2013, as exportações vietnamitas de vestuário alcançaram 20 bilhões de dólares. Mais de 40% dessas vendas foram para os Estados Unidos; a projeção é que até 2020 somente essa fatia passe dos 20 bilhões de dólares. O Vietnã também superou Bangladesh como segundo maior fornecedor para os Estados Unidos, ficando atrás somente da China. Agora, com a expectativa da implantação da Parceria Trans-Pacífico – acordo que vem sendo negociado por 12 países e que pode representar o maior pacto de livre-comércio da história –, o país chegou a um perigoso limiar.
Por que perigoso? Porque não faz mais sentido para o país importar 98% do algodão bruto utilizado em aproximadamente 6.000 fábricas de peças de vestuário. O que faz sentido é construir instalações de fiação, tingimento e acabamento que permitam ao Vietnã competir em praticamente todas as esferas do setor do vestuário, e não apenas na etapa de corte e costura. Este é também o momento em que os riscos ambientais e sociais atribuídos à indústria do vestuário crescem exponencialmente.
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As etapas de tingimento e acabamento do parque têxtil requerem vastas quantidades não só de água, mas também de produtos químicos tóxicos, que são frequentemente despejados, sem tratamento, nos cursos d’água. Na China, onde o esforço para o crescimento econômico tem significado a produção pelo modo mais rápido e barato possível, rios perto de fábricas foram tingidos de preto e azul por causa dos resíduos. Em Bangladesh, a ausência de regulamentação e fiscalização das condições de trabalho levou a desastres como o colapso do edifício Rana Plaza, em 2013, no qual morreram mais de mil trabalhadores.
Qualquer país com a produção concentrada em manufaturas têxteis está exposto a esses riscos, mas a geografia do Vietnã torna seus rios especialmente vulneráveis. É um país longo e serpenteado, com 1,6 mil quilômetros de norte a sul, mas com cerca de 50 quilômetros de largura em seu ponto mais estreito. Como resultado, seus cursos d’água são reféns de práticas abusivas de países rio acima.
Enquanto o Vietnã age para multiplicar a velocidade de sua indústria têxtil – ou seja, enquanto o país se posiciona da mesma maneira que China e Bangladesh poucos anos atrás –, muitos ambientalistas, economistas, empresários e consumidores estão levantando as mesmas questões. O Vietnã poderia ser a nação que levará o setor adiante da forma correta?
Sanjeev Bahl acredita que sim. Este indiano de 51 anos possui uma empresa de vestuário no Vietnã chamada Sai-Tex, e garante que a população local tem prestado muita atenção à medida que o setor se expande.
World Bank Photo Collection / Flickr
Fábrica de roupas no Camboja: países asiáticos são os principais produtores das peças vendidas por grandes cadeias de varejo no Ocidente
Bahl afirmou que hoje muitas das maiores marcas internacionais de roupas estão focadas em minimizar os danos ao meio ambiente. Organizações não-governamentais estão sintonizadas fortemente com essas questões, que passavam relativamente despercebidas até a década passada, quando as indústrias de China e Bangladesh estavam decolando.
Para Bahl, novas tecnologias estão surgindo com o potencial de reduzir o impacto ambiental de várias etapas da indústria – até mesmo algumas das mais sujas, como é o caso da produção de brim. Poucas empresas são mais degradadoras do meio ambiente do que aquelas envolvidas na produção e tratamento desse tipo de tecido, comum e popular no mundo todo, em todas as épocas.
Como lembra Bahl, do ponto de vista empresarial, o jeans é como um título de investimento garantido – todo mundo usa e a demanda é perene. Todos os anos a indústria entrega cinco bilhões de metros do tecido. Somente nos Estados Unidos, mais de 450 milhões de pares de calças jeans são vendidos anualmente. Mas do ponto de vista da sustentabilidade, o brim representa o maior desafio da indústria. Sua produção usa quase 65 bilhões de litros de água e até 225 mil toneladas de químicos anualmente. Se pudermos “limpar” o modo como fabricamos jeans, muitas pessoas acreditam que poderemos então limpar qualquer outro segmento da indústria.
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Esse é um assunto que interessa bastante a Bahl – jeans são o cerne do seu negócio. Em 2000, ele estava comprando produtos de fornecedores em vários países – de Índia e China até Ilhas Maurício e Madagascar. Dois anos depois, sua busca por novos fornecedores o levou ao Vietnã: “O país tinha algo especial a oferecer”, lembra. “A energia era diferente.” Ele decidiu ficar, e em 2005 as linhas de produção de sua nova instalação de processamento de brim, a Sai-Tex, estavam em operação.
A Sai-Tex prosperou, mas Bahl sentiu um descontentamento. Ele passou a se questionar sobre as implicações éticas e espirituais de seu modo de trabalhar. Ele também começou a ler sobre poluição industrial. Quando descobriu que aproximadamente 780 milhões de pessoas em todo o mundo não tinham nenhum acesso a água potável, ele ficou abalado. Três anos depois de inaugurar a Sai-Tex, diz Bahl, ele sentiu que suas ações “eram direta e indiretamente responsáveis por vários problemas ambientais”, e que ao aderir a técnicas e práticas convencionais, “eu não estava sendo gentil com a Terra e meus companheiros de planeta”. Ele então pôs abaixo a fábrica antiga e construiu uma nova. A Sai-Tex 2.0, prometeu, seria uma das instalações de processamento de jeans mais limpas e sustentáveis do planeta.
Na unidade de 14.000 metros quadrados em Bien Hoa, cidade no sul do país, fui recebido pelo executivo-chefe da empresa, Simon Barstow. À medida que caminhávamos em direção à planta de costura e montagem das peças, Barstow mostrava pelo caminho algumas das características da fábrica: postes de iluminação que utilizam como fonte de energia painéis solares e moinhos de vento em miniatura; caminhos e passarelas que absorvem a água da chuva, entrecortadas por faixas de grama que ajudam a minimizar o impacto da enxurrada durante tempestades; um projeto de plantio de árvores; uma piscina para recolher água da chuva; aquecedores solares de água; e uma nova caldeira de biomassa que vai usar pellets feitos de madeira e palha de arroz em vez de óleo combustível.
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Bert Van Dijk / Flickr
Operários lavam jeans em fábrica na China: operação é uma das mais poluentes em todo o processo de produção do tecido
O galpão, de pé-direito alto e do tamanho de um hangar de avião, estava tomado pela luz natural e estava também agradavelmente fresco, graças à ventilação proporcionada por um sistema de esfriamento que refrigera o ar com ventiladores e água pré-esfriada (mais eficiente do que unidades de ar-condicionado). Centenas de trabalhadores estavam ocupados em suas máquinas de costura e mesas de corte. Eles produzem cerca de 340 mil pares de calças jeans por mês, segundo Barstow.
Ele mostrou, então, as máquinas de lavar gigantes da Sai-Tex: para qualquer fábrica de processamento de brim, é aqui onde o verdadeiro desafio ambiental começa. O sistema tradicional de lavagem de brim consome cerca de 140 litros de água para cada calça jeans; ao reduzir o número de lavagens requeridas para tratar as peças, a fábrica baixou esse volume para 40 litros, com uma redução correspondente no uso de produtos químicos. Aproximadamente 95% da água utilizada nas lavagens é subsequentemente reciclada, depois de ser limpa – não com agentes químicos tradicionais, mas por uma gama de tecnologias e processos biológicos, tais como eletrocoagulação, nanofiltração, e três estágios de osmose reversa.
Em uma sala, cerca de dez técnicos estavam curvados sobre telas de computador repletas de números e gráficos. Barstow explicou que eles estavam usando um programa que monitora em tempo real o uso de água, energia e produtos químicos na unidade, ao mesmo tempo em que mede a eficiência da linha de produção. “Se você não pode quantificar, você não pode controlar”, disse Barstow. Assim que consegue mensurar, contudo, “você pode, então, estabelecer metas e trabalhar nesse sentido”.
Enquanto deixávamos a lavanderia, notei algo que remeteu à fala de Sanjeev Bahl sobre o senso de responsabilidade para com seus companheiros planetários. O primeiro foi um tonel rotulado “espessador de lodo”. O lodo industrial, resíduo especialmente desagradável da indústria dos jeans, é formado por pequenas partículas de fibra, pó e pedra-pomes. A Sai-Tex está transformando isso em tijolos que, segundo o governo vietnamita, não apresentam riscos à saúde, e que serão utilizados na construção de casas populares no país a partir desse ano.
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Nas imediações havia também milhares de pares de tênis com o logo da Puma. A parte de cima do calçado foi confeccionada com pedaços de brim que sobraram da produção da fábrica. Todo o lucro da primeira coleção está indo para um orfanato local. “Nós acabamos de receber o primeiro cheque da Puma, de 180 mil dólares”, disse Barstow.
Poderia a Sai-Tex representar a nova face da indústria têxtil mundial? No momento, a empresa é de médio porte com um faturamento de cerca de 100 milhões de dólares e um nicho de mercado claramente delineado: jeans da alta moda, feitos de modo sustentável, para consumidores afluentes. O mais importante cliente da Sai-Tex é a G-Star, uma marca de jeans “premium” – ou seja, caro – que leva a sustentabilidade a sério: uma de suas iniciativas é o projeto “RAW for the Oceans”, em que a empresa está trabalhando junto a fornecedores para criar brim combinando algodão com fios de poliéster produzidos a partir de plástico recolhido de oceanos.
Frouke Bruinsma, gerente de responsabilidade corporativa da G-Star, enfatiza que a estrutura da indústria faz com que nenhum agente isolado possa realizar mudanças significativas por conta própria. “Para reduzir os resíduos no meio ambiente, cada elemento na cadeia de suprimentos precisa colaborar, e para nós isso significa construir relacionamentos com fornecedores que pensam de maneira semelhante – como a Sai-Tex – para trabalhar em conjunto em melhoramentos contínuos.”
Cada vez mais executivos estão começando a pensar dessa maneira, embora a mudança de paradigma vá, por fim, depender de quais atores – não apenas quantos deles – estão interessados em se unir aos esforços. O acordo da Sai-Tex com a Puma, e as negociações que a empresa está mantendo com a Tommy Hilfiger e a Calvin Klein, são indicadores de que as coisas estão caminhando.
Peregrinari / Flickr
Produção de seda no Vietnã: economia do país em franca ascensão graças à produção têxtil e de roupas para consumo no Ocidente
Curiosamente, o impulso por maior sustentabilidade na indústria pode estar vindo menos de consumidores do que dos grandes atacadistas que compram as peças. Esse pode ser um bom augúrio para o Vietnã, já que marcas e investidores internacionais fazendo negócios no país estão entrando no mercado com atitudes e expectativas novas, que não existiam quando o setor começou a viver um boom na China ou em Bangladesh.
Em outubro de 2014, Sanjeev Bahl participou do Global Green Growth Forum (Fórum de Crescimento Verde Global, 3GF, na sigla em inglês), em Copenhagen, na Dinamarca. Ele dividiu a mesa de debates sobre produção sustentável de vestuário com Tran Hong Ha, vice-ministro de Recursos Naturais e Meio Ambiente do Vietnã, o segundo homem mais poderoso do país nestes temas. Bahl conta ter ficado contente em ouvir Tran expressar publicamente o comprometimento do Vietnã com a sustentabilidade, não apenas em termos ambientais, mas também como uma maneira de impulsionar a vantagem competitiva do país.
Alguns dias depois da visita à fábrica, parti para a 14ª Exposição Anual da Indústria Têxtil e do Vestuário do Vietnã, na cidade de Ho Chi Min. Na cerimônia de abertura, um alto funcionário do Ministério da Indústria e do Comércio desfiava estatísticas e garantia para a multidão que a indústria do vestuário no Vietnã está prosperando. Agora, cabia aos expositores estrangeiros e seus potenciais clientes vietnamitas ajudá-la a ir mais longe.
No evento, todo o poderio da indústria estava à mostra: uma gama incompreensível de máquinas, materiais e acessórios. Havia botões da Tailândia, zíperes de Taiwan, fivelas, rebites e ilhoses de Hong Kong. Havia plotters de recorte e enroladores de bilros, bem como amostras de tecidos felpudos, de jacquard, de elastano e de malha clinquant flannelette.
Parei para conversar com um vendedor de uma empresa turca chamada Eksoy. Ele estava sentado sozinho a uma mesa, e na parede havia fotos das ofertas de sua empresa: químicos não-tóxicos para algodão orgânico, agentes úmidos para brim que poderiam reduzir o tempo de tingimento e o uso de energia. Era a sua primeira vez no Vietnã, contou. Todo mundo na Turquia sabe das oportunidades que estão surgindo aqui.
De um estande para outro, escutei variações da mesma história: é nossa primeira vez aqui; o Vietnã representa uma grande oportunidade para nós; temos um produto novo, muito interessante e bem mais sustentável. O presidente da norte-americana Ink Tec estava oferecendo tintas não tóxicas. Um representante de vendas de Taiwan louvava a eficiência energética de suas máquinas de tingimento. Um fabricante chinês estava demonstrando um fio de poliéster feito de plástico reciclado – bem parecido com o produto que a G-Star está promovendo em lojas de luxo por toda a Europa.
Tradução: Maria Teresa de Souza
Matéria original publicada na OnEarth Magazine, revista norte-americana que trata de questões ambientais.