A Folha de São Paulo de 20 de março de 2022 publicou um artigo intitulado “Contra a guerra bárbara de Putin”, de autoria do companheiro Sokol.
Sokol denuncia os horrores da guerra e defende a paz.
Nisto estou totalmente de acordo com ele, embora não considere estarmos diante do “maior conflito militar no coração da Europa desde a 2ª Guerra Mundial”.
Os 78 dias de bombardeio contra a Iugoslávia ainda não foram superados, embora possam vir a ser, brevemente inclusive. Mas este tipo de contabilidade não faz a menor diferença do ponto de vista das vítimas. Registro apenas para não esquecermos do que fez a Otan em 1999 (sem falar, é claro, do que fizeram e seguem fazendo em todo o mundo as hipócritas potências imperialistas hoje escandalizadas com as ações da Rússia).
Também concordo com Sokol – embora tire conclusões diferentes das que ele tira – na caracterização do conflito: trata-se de uma disputa intercapitalista. E concordo com diversos outros pontos de seu texto, por exemplo a denúncia das atitudes do governo brasileiro, a denúncia das chamadas sanções, a denúncia dos vínculos entre a social-democracia europeia e a indústria bélica (acrescentaria a atitude do governo do PSOE frente a ocupação do Marrocos no Sahara Ocidental).
Entretanto, discordo doutros pontos do seu texto, especialmente da maneira como Sokol descreve o papel da Ucrânia neste conflito. Segundo Sokol, “há uma nação refém da disputa, a Ucrânia”. Dito desta forma, não está errado, mas dissimula um aspecto importante da situação. A saber desde 2014 a Ucrânia tornou-se um “peão” da política dos Estados Unidos e da Otan.
Formalmente dentro da lei, sem infringir nenhuma norma internacional e respeitando os limites da autodeterminação e da soberania nacional, há alguns anos o governo ucraniano vem recebendo armamentos e “instrutores” militares da Otan, assim como vem tolerando e legalizando a ação de forças assumidamente neonazistas. Foi lá na Ucrânia e não no Iraque que se localizaram laboratórios de armas biológicas….
É fundamentalmente isto – e não a busca de lucros, mercados ou algum tipo de patologia diabólica – que provocou a recuperação da Crimeia, a secessão de Donbass (assunto aliás inexistente no texto de Sokol, por motivos óbvios) e a presente ação militar russa.
Noutras palavras: para defender a sua soberania nacional, depois de seguidas tentativas de negociar, os russos foram preventivamente à guerra (embora, verdade seja dita, a guerra já estivesse ali há tempos, basta conversar com moradores de Donbass, massacrados há anos por tropas do governo ucraniano). Concordando ou não com a ação, não posso desconhecer os motivos reais da operação russa.
Em resumo, a maior parte do povo da Ucrânia é refém de uma situação, mas o governo ucraniano e seus apoiadores diretos não são reféns, são instrumentos da Otan. Estamos portanto diante de uma situação mais complexa do que a descrita no texto de Sokol, onde essencialmente se apresenta um agressor e uma vítima.
Putin é um conservador e um anticomunista. A esquerda russa tem todos os motivos para se opor a ele e a esquerda mundial não deve apostar suas fichas. O próprio Putin tornou pública sua opinião sobre a natureza histórica supostamente artificial da Ucrânia. Isto tudo posto, o problema é: só haverá paz se a Otan recuar.
Pois se a Otan não recuar, se a Ucrânia continuar sendo um membro informal da Otan, haverá nova guerra ali na frente e talvez Sokol seja obrigado – por coerência – a exigir a retirada das “lagartas imundas” da Otan do território russo.
Telegram/Zelensky
A Folha de São Paulo de 20 de março de 2022 publicou um artigo intitulado “Contra a guerra bárbara de Putin”, de autoria de Markus Sokol
Contra a guerra bárbara de Putin
*Markus Sokol ( * )
É o horror. Não se sabe quantos milhares estão mortos e feridos, mas há mais de 3 milhões de fugitivos da Ucrânia em três semanas de invasão unilateral, ordenada por Vladimir Putin. Um dilúvio de fogo e bombas sufoca as cidades do segundo maior país da Europa. De norte a sul, de leste a oeste.
Não é mais uma guerra localizada, é o maior conflito militar no coração da Europa desde a 2ª Guerra Mundial. É urgente estancar a escalada bélica, fazer Putin recuar, acabar com a guerra já.
Além dos ucranianos, cuja nação vem sendo destruída, o povo russo sofre com a inflação dos preços dos produtos básicos, em virtude das insanas sanções da União Europeia e dos Estados Unidos. Insanas porque a história ensina que, da Síria ao Irã, passando por Cuba e Venezuela, elas sempre prejudicam os povos.
Mas os russos não estão quietos. Apesar da repressão brutal de Putin, milhares de pessoas foram presas por protestar contra a invasão da Ucrânia em dezenas de cidades.
No último dia 11, os 27 líderes da União Europeia se reuniram para aumentar as despesas militares nos próximos sete anos. Olaf Scholz, premiê social-democrata da Alemanha, já ampliara as suas em US$ 110 bilhões. Magdalena Andersson, primeira-ministra social-democrata da Suécia, disse que “queria investir em escolas e aposentadorias, mas devemos gastar mais com defesa”. Quem se beneficia com a escalada militar é a indústria de armamentos, os artífices da morte em massa.
A União Europeia reduzirá em 60% a importação do gás canalizado russo. Quem lucra com isso é o gás americano, transportado nos “navios-bomba”, aqueles que mais poluem os oceanos. Além disso, a Otan encomendou mais 30 milionários caças F-35 “made in USA”.
Nenhuma geopolítica, nem a de Putin nem a de Joe Biden, nenhum neonazismo ucraniano —ou o neoczarismo russo; ou ainda o golpismo orquestrado por Donald Trump no assalto ao Capitólio— pode justificar essa guerra por mercados e lucros. Não há lado bom nessa disputa intercapitalista. Não há um “campo progressista”. Há uma nação refém da disputa, a Ucrânia.
Nasci na Polônia, perto da fronteira com a Ucrânia, e desde cedo acompanho o que se passa naquela parte do mundo. Também por isso digo: cabe aos ucranianos decidir, democrática e soberanamente, o seu destino. A autodeterminação não é um princípio vago. É um valor que diz respeito a todas as nações.
No Brasil, no primeiro dia da invasão, o “Inominável do Planalto” fez cálidos acenos a Putin. Mas seu vice, o estrelado general Hamilton Mourão, disse que sanções não bastam, que é preciso empregar a força bruta. Um e outro querem a guerra.
E o povo brasileiro? O “Inominável” diz ter um “plano”: reduzir a dependência de fertilizantes importados (a Rússia é nosso principal fornecedor) —de 80% para 65%— em 30 anos. Trinta anos! O que se faz até lá? E o plantio das safras do próximo ano, quando acabarem os estoques nacionais de fertilizantes?
O Brasil depende de fertilizantes para ser o maior exportador mundial de proteína animal e grande agroexportador. No entanto, nenhum dos partidos da elite dá importância à guerra que está desordenando a já combalida economia brasileira. Nenhum deles cogita reconstruir o sistema Petrobras —que vem sendo desmantelado desde o governo Sarney e atingiu o paroxismo no mando antipopular do “Inominável”. Ao contrário, querem adaptar o porto de Santos (SP) para receber o gás liquefeito norte-americano.
A invasão feroz da Ucrânia está na pauta da campanha presidencial, mesmo que a guerra —como queremos— acabe amanhã. Luiz Inácio Lula da Silva, candidato do PT, já disse em alto e bom som que é contra a guerra, é pela paz imediata. E os demais candidatos, têm algo a dizer? Fraternidade entre os povos, nenhuma intervenção, nenhuma anexação, nem Biden nem Otan, e sim autodeterminação. Que Putin retire suas tropas da Ucrânia. Que a voz dos povos que não querem guerras seja ouvida.
Folha de S. Paulo (20.03.2022) | *Tendências e Debates*
( * ) Markus Sokol é economista, membro da Comissão Executiva Nacional do PT e diretor do Jornal O Trabalho