Durante os últimos anos, tem se proliferado notícias acerca de violações e abusos na Região Autônoma de Xinjiang, de população turcófona (uigures) islamita. Em 2020, mídias internacionais ocidentais, como a Reuters, afirmaram que a ONU tem relatos sobre um contingente de cerca de 1 milhão de muçulmanos uigures em “campos de reeducação” na China. Contudo, não há nenhum documento do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (Office of the High Commissioner for Human Rights – OHCHR) sobre o assunto, e sim relatos do grupo de ativistas Rede de Defensores dos Direitos Humanos da China (Chinese Human Rights Defenders – CHRD), sediado em Washington e patrocinado, entre outros, pela National Endowment for Democracy (NED).
Esse frenesi parte de sites, como destacou o Global Times, que alimentam as agências ocidentais, tais como o Xinjiang Data Project, o Xinjiang Victims Database e o Uyghur Transitional Justice Database. O primeiro, criado pelo Australian Strategic Policy Institute (ASPI), financiado pelos EUA e pela Human Rights Watch. O segundo, criado por organizações anti-chinesas ligadas ao Movimento Islâmico do Turquestão Oriental, este formado em 1990 sob o patrocínio da CIA. E o terceiro, criado pelo comitê norueguês da organização secessionista do Congresso Mundial Uyghur e financiado pela NED.
Alguns, grupos fortemente armados, como relatou o Departamento de Segurança Pública de Xinjiang, são responsáveis por diversos atentados terroristas. De 1990 a 2020, grande número de pessoas inocentes e centenas de policiais foram mortos, como nos eventos ocorridos na capital de Xinjiang, Urumqi, em 2009, na Praça da Paz Celestial, em 2013, e na estação de trem de Kunming, em 2014. Os documentários Fighting terrorism in Xinjiang e A mão negra – ETIM e terrorismo em Xinjiang, produzidos pela CGTN, revelam uma outra face da região pouco explorada aqui no Ocidente – que tampouco causam a comoção dos atentados de ocorridos em Nova Iorque ou Paris.
O rigor científico deve reconhecer que a China, um país continental, em acelerada transformação social, com mais de 1,3 bilhão de habitantes e 56 etnias, é atravessado por contradições. Os uigures são uma destas minorias, com cerca de 45% dos 20 milhões de habitantes de Xinjiang, ou pouco mais de 0,6% da população chinesa, conforme o China Ethnic Statistical Yearbook 2016. Ora, isso é parte constitutiva de um estado multiétnico desde a conformação de seu primeiro Império Qin (221-206 a.C.) que pôs fim ao período dos Reinos Combatentes. Inclusive, no último milênio a China foi governada por minorias grande parte do tempo, com os mongóis entre 1279 a 1378 e manchus entre 1644 a 1911.
Mas a questão de fundo é menos sobre as contradições existentes na China e mais sobre intencionalidades e narrativas oriundas de outros quadrantes. Desde o Século de Humilhações, iniciado com as Guerras do Ópio, a China foi objeto de amputações territoriais num contexto de invasões e agressões estrangeiras, incluindo Tibete, Xinjiang, Manchúria (inclusive com estado fantoche japonês), além de perdas da Mongólia Exterior, Taiwan, Hong Kong e Macau. E dada a memória histórica, a soberania e a integridade territorial da China são ainda mais imperativos, pois persistem intentos separatistas.
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Notícias de agências ocidentais sobre a região dos uigures escondem cenário de inclusão social do território
Por isso, desde a revolução de 1949 tem sido imperiosa a reconstrução da unidade territorial e política. Como consequência, em 1952, o governo emitiu uma medida voltada a evitar a fragmentação territorial, o Esboço para a Implementação da Autonomia Regional das Minorias Étnicas, aprovado pelo Congresso Nacional do Povo em 1954. Nesse contexto, foram estabelecidas as regiões autônomas, sendo a primeira a da Mongólia Interior, ainda em 1947, seguida pela Região Autônoma Uigur de Xinjiang (Xinjiang Uighur Autonomous Region – XUAR), em 1955, as de Guangxi e Ningxia, em 1958, e do Tibete, em 1965. E a retomada de Hong Kong (1997) e Macau (1999) se deu preservando a autonomia administrativa destas regiões.
Assim, a unidade multiétnica milenar da China segue enfrentando movimentos separatistas, em grande parte derivados do exterior, como é o caso da questão de Xinjiang. Como em muitas outras regiões, neste caso também se entrelaçam à suposta defesa dos direitos humanos e apoiada por uma série de organizações não-governamentais, think tanks e fundações ligadas aos serviços secretos das potências interessadas. O objetivo é a desestabilização, a obstrução do desenvolvimento e/ou seu desmembramento da China, como é explicitado por Washington com o chamado Uyghur card.
É por esta razão que outras notícias sobre Xinjinag não podem ser veiculadas no Ocidente. Não se informa que a região alcançou índice de matrícula escolar superior a 99,9% ante um analfabetismo de 90% em 1949. Tampouco que nos últimos 60 anos a expectativa de vida em Xinjiang subiu de 30 para 72 anos, o IDH passou de 0,485 para 0,732 entre 1990 e 2019 e a população aumentou 25% entre 2010 e 2018 – muita maior que os 2% da população han, evidenciando a falácia do discurso da colonização chinesa da região. O PIB foi de 111 milhões de dólares em 1952 para 205 bilhões de dólares em 2019, com aumento de mais de 200 vezes e taxa média de crescimento anual de cerca de 8%, tudo isso no maior deserto do país. Parênteses: setores políticos brasileiros ‘solidários’ com as ‘violações’ esquecem que nosso crescimento médio foi de 0,26% na década (2011-2020), a pior desde 1901.
Além do desenvolvimento, diversas políticas públicas para erradicação da pobreza foram implementadas em áreas de minorias étnicas, como por exemplo, The Outline For Development- Oriented Poverty Reduction For China’s Rural Areas e Culture-Based Development Program for Ethnic Minorities in China
Em suma, sustentar uma retórica anti-chinesa fica difícil sem ocultar que o país oriental erradicou a pobreza em 2020, retirando 850 milhões de pessoas nas quatro últimas décadas, ou 70% do total mundial. Também é complicado reproduzir notícias parciais sobre Xinjiang sem invisibilizar o desenvolvimento e a inclusão social da região. A verdade crua é que, nessa questão, escasseia objetividade, transbordam manipulações humanitárias e genuínos interesses (geo)políticos nada altruístas. Tudo isso num espaço que representa 1/6 do território nacional, grandes reservas de petróleo e outros recursos e, não bastasse, enlace entre o litoral chinês e a Ásia Central, crucial para a Nova Rota da Seda e, com efeito, para ascensão da China e para o futuro da primazia dos EUA.
(*) Diego Pautasso é doutor e mestre em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
(*) Isis Paris Maia é mestranda em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).