Um dos grandes mistérios que 2020 não resolveu é a pergunta “Como Bolsonaro chegou ao poder?”, considerando seu passado nada glorioso, sua vida parlamentar improdutiva, as suspeitas que pairam sobre sua atuação e sua vocação para político regional e segmentado.
A resposta pode estar no xadrez.
Sim, no xadrez. Em ano de “O Gambito da Rainha”, o xadrez explica tudo. Millôr Fernandes dizia que “o xadrez desenvolve uma inteligência que só serve para jogar xadrez”. A frase é muito verdadeira, mas podemos dizer o mesmo do futebol, se tomarmos o exemplo de Pelé: Pelé desenvolveu uma inteligência inalcançável, que, no caso dele, só servia para jogar futebol. Por isso, os fãs de Maradona, finado neste triste 2020, não erram quando dizem que “Maradona é maior do que Pelé”, afinal, Pelé foi só o melhor jogador de futebol da história, nunca foi um ícone político, um vingador, um malandro, um dependente químico que superou o vício, um agressor realmente arrependido e um garoto propaganda de um mundo melhor. Convenhamos, perto de Maradona, Pelé não é nada.
Pelé e Maradona só entraram nessa história para animar as torcidas. Voltemos ao xadrez, e para a época em que os grandes esportistas da humanidade foram Karpov e Kasparov.
Quando eu parei de ler os livros da Coleção Vagalume, editados por Jiro Takahashi, depois de ultrapassar as cinco dezenas de histórias infanto-juvenis, ingressei no maravilhoso mundo dos best-sellers. Naquela época, havia dois grandes autores do gênero obrigatórios em qualquer banca de jornal que rapidamente me seduziram (roubei os livros da minha mãe): Harold Robbins, meu xará, autor de Os implacáveis (falo dele no Natal de 2021, prometo!), e Sydney Sheldon, que, salvo engano, também escrevia as tramas da série “Casal 20”, que a Globo exibiu por anos.
Em Se Houver Amanhã (livro infinitamente mais interessante para um jovem como eu então do que O Outro Lado da Meia Noite), uma mulher linda, chamada Tracy Whitney, buscava vingança contra um homem poderoso que fora o responsável por um golpe que levou a mãe dela ao suicídio (pelo menos lembro assim).
Tracy decide vingar a morte da mãe, e começa uma série de ações para roubar e sacanear gente rica e poderosa que, na boa, merecia. Suas aventuras vão dando certo, ela encontra um parceiro para elas, com quem também “concorre”. E, numa vida de vigarices, em uma viagem pelo mundo, ela está num cruzeiro e descobre que há dois grandes mestres a bordo.
Ela nunca jogara xadrez, mas resolveu, com o suporte de seu colega, apostar contra os dois: conseguiria, pelo menos, empatar com um deles, caso aceitassem que as partidas fossem simultâneas: contra o primeiro, jogaria com as pretas; contra o segundo, com as brancas.
Inicialmente, eles riem, mas o dinheiro proposto é alto e aparentemente fácil de ganhar. Os dois enxadristas, gananciosos, esperam levar a bolada sem muito esforço.
O resultado, no entanto, é uma partida duríssima contra os dois. Como ela conseguiu? Simples, no modelo proposto, ela fez um jogar contra o outro, reproduzindo no tabuleiro 2 o lance de seu adversário no tabuleiro 1, e depois em 1 o lance do adversário em 2. Conseguiu, assim, que um propusesse o empate, que aceitou, e propôs o empate ao outro imediatamente, que também aceitou.
Esse é o jogo de Bolsonaro, mas o número de jogadores é bem maior: 218 milhões de habitantes.
Olhando de fora, Bolsonaro não sabe fazer nada. Mas ele blefa muito bem. E usa as armas de uns contra os outros. Ele é o verdadeiro golpista, o golpista que está para colocar Michel Temer a seu serviço, assim como fez com João Doria, Sérgio Moro, Joice Hasselmann e Gustavo Bebiano.
Como fez com a Globo, faz agora com a Record, com as igrejas evangélicas. A especialidade de Bolsonaro não é governar, é fazer seus aliados de ocasião e adversários históricos realizarem o serviço que lhe interessa.
Um certo discurso liberal, que se julgava crítico e progressista, passou anos construindo campanhas antivacina baseando-se na crítica aos grandes laboratórios: hoje, Bolsonaro move seus peões contra a vacina de acordo com o ensaio feito por anos por essa esquerda. A direita hoje defende com unhas e dentes o modelo liberal, e quando vier o desastre, Maia, Guedes e altri serão os responsáveis pelo fracasso econômicos, não Bolsonaro, que se sentirá tranquilo para enveredar por farta distribuição de dinheiro sem projeto de país.
Não é fácil entender o jogo de Bolsonaro, porque ele não joga com as próprias peças. O lance ousado dele é copiar as movimentações dos diferentes atores políticos em tabuleiros diferentes.
Como acabar com esse jogo? Talvez os verdadeiros opositores de Bolsonaro tenham de aprender com o bolsonarismo (e com uns hoje campeões de liberalismo, que adoravam a metáfora): comportar-se como um pombo e derrubar as peças todas do tabuleiro.
Como fazer isso? Não é simples. Na conjuntura atual, a direita tradicional joga na defensiva achando que está se segurando, mas na verdade está fazendo a defesa de Bolsonaro. Por sua vez, a esquerda tem jogado de forma recuada também, truncando o jogo ao aliar-se à direita no Parlamento para conseguir praticamente nada.
Em fim de ano, precisamos pensar no amanhã. Mas, nesse ambiente, nada mais sugestivo que o nome do livro que orientou essa analogia um pouco maluca: Se houver amanhã…