Um milhão de contaminados e mais de 50 mil mortos pela gripezinha. Esses são os dados oficiais. Especialistas denunciam uma subnotificação que poderia levar os números reais a 5 ou 10 vezes mais.
Mas a indiferença, o desconhecimento ou a má fé fazem de tudo para que esses números sejam escondidos ou permaneçam, cada vez mais, no terreno da abstração.
Passamos anos ouvindo, em geral depois de festas de fim de ano ou de um feriado prolongado, que a precariedade de nossas estradas e vias e a imprudência dos motoristas faziam do Brasil um recordista mundial de mortes no trânsito. Lembram dos números? Perguntemos ao Google para descobrir que, por coincidência, a série estatística mostra entre 40 e 50 mil mortes ao ano.
Quando os Estados Unidos atingiram essa marca, a comparação que tomou as páginas da imprensa mundial foi com o número de perdas na Guerra do Vietnã. Mas isso é muito distante de nós, afinal, somos um povo pacífico e cordial segundo uma fantasia construída ao longo do tempo.
Nossa última guerra de verdade foi há mais de um século e meio. Historiadores respeitáveis indicam que naquela que estudamos no colégio como a Guerra do Paraguai, as tropas brasileiras terão perdido cerca de … 50 mil homens. É verdade que um grande números destes eram pretos ou pardos, cujas vidas até hoje valem muito menos que a dos brancos.
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O vírus que chegou de avião e se espalhou inicialmente em festas de ricos hoje faz a sua colheita macabra nas periferias
Vidas pretas são muito mais baratas, se é que valem alguma coisa, no cotidiano das nossas periferias e no amontoado infecto de sub-seres humanos que chamamos de prisões.
Se estivéssemos de fato interessados no significado social e humano dessa pandemia exigiríamos que as estatísticas de óbitos indicassem condição social e raça das vítimas.
Isso esfregaria na nossa cara que o vírus que, já se sabe, chegou de avião e se espalhou inicialmente em festas de ricos, hoje faz a sua colheita macabra nas periferias, entre os pobres, que não tem como “ficar em casa”, que às vezes não tem casa para ficar e que, para quem não percebeu ainda, não são apenas, mas são majoritariamente pretos e pardos.
Me pergunto se o eventual leitor estranhou que não falei de Weintraub, que vai ganhar 120 mil reais no Banco Mundial; nem do Queiroz, humanitariamente abrigado na casa do advogado da famiglia presidencial. Os mais atentos ao debate das redes poderiam talvez esperar que eu falasse de derrubar estátuas.
Tudo isso é bobagem. Como diria o elegante posto Ipiranga, vamos logo abrir a porra do shopping!
*Carlos Ferreira Martins é professor titular do IAU USP São Carlos