A terrível pandemia de covid-19, que vivemos em tempo real, já levou a óbito mais de um milhão de pessoas ao redor do planeta, desestabilizou a economia de muitos países e gera uma crise social sem precedentes no último século. Trata-se de uma doença agressiva que, segundo as estimativas mais recentes da Organização Mundial de Saúde, pode deixar sequelas graves nos sobreviventes. Diante deste cenário, seria natural que estivéssemos ansiosos pela chegada da vacina e que desejássemos a imunização para finalmente respirarmos aliviados, mas, ao contrário disto, o que assistimos é o fortalecimento de movimentos antivacina, algo que não é novo na história do Brasil, mas que apresenta outros contornos neste início de século. Apoiados pelo próprio presidente da República, que afirmou que a vacina não será obrigatória e ponto final, ideias contrárias à vacinação ameaçam à vida, ao mesmo tempo que colocam em xeque as conquistas da ciência nos últimos 200 anos, no desenvolvimento de imunizantes mais práticos e seguros.
A descoberta da vacina pelo médico inglês, Edward Jenner, no final do século 18, revolucionou a história da saúde. Pela primeira vez, um método de imunização em massa prometia livrar os sujeitos da infecção por varíola, uma doença que poderia se apresentar em formato epidêmico em ciclos de 20 ou 30 anos, como nos lembra o historiador Alfred Crosby em Imperialismo ecológico. A varíola ceifava a vida de jovens e crianças, poupando os mais velhos, em muitos casos, por estes já terem estado em contato com a doença em algum momento da vida. Com base no que mais tarde chamaríamos de método experimental, as observações de Jenner levaram ao desenvolvimento de um preventivo capaz de elevar a expectativa de vida na Europa Ocidental em princípios do século 19.
Polêmico para uma época ainda bastante dominada pelo discurso religioso quanto a identificação das doenças, o método Jenneriano rapidamente ganhou o mundo, da Europa. A vacina produzida a partir de pústulas de vacas infectadas com um vírus similar ao que acometia os humanos rapidamente desembarcou na África e na América. Pelos domínios do Rei de Espanha, uma espetacular campanha coordenada pelo médico espanhol Francisco Balmis cruzou o continente vacinando e prometendo sobrevida aos grupos que enfrentavam a varíola há séculos em terras coloniais. No Brasil, foi a própria Corte portuguesa que se empenhou em difundir a vacina, principalmente após a chegada de Dom João VI, em 1808. Este senhor estivera especialmente interessado no preventivo, dado que havia perdido o irmão mais velho com apenas 27 anos por varíola. O príncipe, Dom José, teria sido o herdeiro do trono português, inclusive, caso não tivesse morrido precocemente em um período que ainda não existia vacina.
Ao longo do século 19, inúmeras tentativas de resistência à vacinação foram protagonizadas no Brasil. Grupos de populares, mas também médicos e jornalistas se levantavam contra o preventivo, e as razões para isso foram variadas. Havia desconfiança e, claro, muito pouco interesse por parte dos defensores do método em esclarecer os benefícios à população. Alguns acreditavam que era uma estratégia do governo para inocular em seus corpos a doença, outros garantiam que as pessoas vacinadas poderiam apresentar as feições bovinas, dado que o pus era originalmente extraído das vacas. Além disso, o chamado “método de braço a braço” que passou a ser utilizado no Brasil, devido a falta do liquido original, que por ser importado da Inglaterra era caro e demorado, poderia provocar a transmissão de outras doenças, como a sífilis por exemplo.
Devido ao insucesso da vacinação no Brasil, as populações que viveram os séculos passados enfrentaram severas epidemias de varíola, como a que ocorrera entre os anos de 1873 e 1874, que afetou as principais capitais do Império e que levou à óbito 1% da população de Porto Alegre. No alvorecer da República, em 1904, a capital federal assistiu uma Revolta contra a vacina que, em boa medida, era resultado da insatisfação popular com as medidas higiênicas levadas a cabo à época, já que os pobres e as populações negras foram alvo de políticas que visavam desestabilizar seus costumes e, mais, arrancá-los a qualquer custo do centro da cidade. Finda a batalha no Rio de Janeiro, o presidente Rodrigues Alves cede aos apelos populares e declara que a vacina não seria obrigatória. Quatro anos depois, em 1908, a capital carioca presenciou uma das mais terríveis epidemias de varíola de sua história.
O caso da varíola é emblemático porque foi contra esta doença terrível, que matava um terço dos infectados e desfigurava ou cegava os sobreviventes, que a primeira vacina da história da humanidade foi implementada. Mais de duzentos anos depois da primeira vacina, a varíola se encontra extinta em todo o planeta. Graças às inúmeras campanhas de vacinação, os mais jovens não conheceram os perigos que o “smollpox” humano representava. Da vacina antivariólica, muitos outros imunizantes foram desenvolvidos ao longo do século 20, doenças como o sarampo, a poliomielite, a febre amarela, entre outras, foram contidas no Brasil devido a um empenho digno de nota da população, dos (as) cientistas, médicos (as) e governos, de diferentes orientações ideológicas inclusive.
Flickr/CC Emmer
Qualquer ideia sem base científica que advogue contra o preventivo deve ser rechaçada, sob pena de revivermos um passado sombrio
O Brasil, neste contexto, passou a ser referência em imunização, tendo uma das carteiras mais completas do mundo. Por meio do Sistema Único de Saúde e de inúmeras pesquisas levadas a cabo por prestigiadas instituições, como a Fiocruz e o Instituto Butatan, alcançamos um lugar de respeito no cenário internacional quanto as taxas de vacinação da população, reduzimos a mortalidade infantil em muitos Estados e asseguramos uma ampliação significativa em nossa expectativa de vida, que entre outros fatores, é medida pelo acesso à vacinação. Tais conquistas, entretanto, se encontram ameaçadas, justamente quando vivemos uma pandemia de ordem global, e as razões que concorrem para isso são muito diferentes daquelas verificadas durante a Revolta da Vacina em 1904.
Passados cento e dezesseis anos do final da famosa contenda no Rio de Janeiro, parte da população brasileira afirma que não pretende receber o imunizante contra o coronavírus, caso ele esteja disponível em breve. Influenciados por grupos como “O lado obscuro das vacinas” ou “Vacinas, o maior crime da história”, ambos com centenas de seguidores nas redes sociais, segundo os resultados recentes de uma pesquisa realizada na USP, que levou em consideração as postagens desses grupos, os indivíduos contrários à vacina argumentam que o imunizante nada mais é que uma ferramenta para instituir uma nova ordem global e que a China estaria por trás de um plano de dominação em massa, por supostamente ter espalhado o vírus ao redor do planeta. Outros argumentos, como o de que após receber a vacina, as pessoas passariam a ser controladas por um chip também aparecem entre os seguidores de tais grupos.
O problema deste tipo de paranoia está no perigo que todos nós, sem exceções, corremos quando uma parte da população afirma que não deseja se vacinar, ou quando o presidente do país, que deveria zelar pelo bem comum, apoia este tipo de movimentação. Neste caso, talvez seja interessante lembrar aos leitores(as) que os vírus e bactérias, causadores de adoecimento, vêm mutando há milênios, que é preciso imunizar, pelo menos, 80% da população para que vejamos os resultados do investimento. Em outras palavras, ao deixarmos que as pessoas não se vacinem, aquelas que se vacinaram correm o risco de contraírem o mesmo vírus com uma nova mutação, já que os patógenos seguem se reproduzindo dentro dos corpos dos indivíduos.
Mas, como explicar isso aos fundamentalistas da terra plana? Ou aos ideólogos de uma verdadeira cruzada contra a China, que é a maior inimiga imaginária do presidente, seus filhos e outros tantos que creem viver em um filme americano de quinta categoria, com direito a vilões vermelhos, heróis azuis, teorias da conspiração, invasões comunistas, chips e o que mais a imaginação puder alcançar? Depois de inúmeras batalhas e conquistas deste feito secular da ciência chamado vacina, nos vemos novamente às portas da barbárie, com riscos de investirmos milhões de reais no imunizante contra a covid-19 e não estarmos, de fato, protegidos. E mais, diante desta investida fundamentalista contra os preventivos, quem nos garante que não veremos doenças extintas ou controladas retornarem com força no próximo período?
Os eventos que nossos antepassados protagonizaram, no combate à vacina e às medidas de higiene, resultaram em mais epidemias e mais mortes. Mesmo que possamos questionar a abordagem dos governos ao apresentarem os meios de prevenção das enfermidades às populações, é inegável que os benefícios das descobertas científicas na área da saúde revolucionaram nosso modo de vida e que a falta de vacina é um risco que não precisamos correr no século 21. Por isso defender a vacina, neste momento, é defender o conhecimento científico e suas conquistas, é garantir que pais e mães possam criar seus filhos com segurança, é manter nossa expectativa de vida. Qualquer ideia sem base científica que advogue contra o preventivo deve ser rechaçada pela população, sob pena de revivermos um passado sombrio, onde as doenças frequentemente faziam a sua própria história.
*Jaqueline Brizola é mestra em História pela UFRGS. Doutoranda em Estudos Históricos da Ciência, medicina e comunicação científica. Universidade de Valência, na Espanha.