8 de Aborto
Na madrugada da última quinta-feira, depois de
mais de 17 horas de pronunciamentos, o Senado argentino vetou o projeto de lei
de interrupção voluntária da gravidez (IVE). A longa jornada de mobilização nas
imediações do Congresso desde as primeiras horas do dia 8 de Aborto, ou
“8A”, como se intitulou a data histórica, terminava com o rechaço
decidido por 24 senadores e 14 senadoras. Nas ruas, o lado dos lenços azuis
“pró-vida”, à direita do edifício do Congresso, não economizou fogos
de artifício e cartazes alçados com os dizeres “Cristo venceu”. O
lema “Que seja lei”, difundido nos últimos meses por toda Argentina junto com a
maré verde pró-aborto legal, ao final da noite deu lugar com força ao
“Será lei”. Talvez não hoje, mas amanhã, como ressaltaram em seus
discursos senadores que votaram pelo “sim”, como Pino Solanas e a
ex-presidente Cristina Kirchner. O projeto, que já foi apresentado ao Congresso
Nacional sete vezes, agora espera o início das sessões legislativas de 2019
para ser apresentado novamente.
Na manhã seguinte, em contraste com um 8 de agosto
coberto de chuva, abriu-se um dia estranhamente ensolarado. O aborto seguia na
clandestinidade, deixando em jogo a vida, a saúde e a autonomia das mulheres de
todo um país. Porém, aquela jornada épica de quase 2 milhões de pessoas que
passaram todo o dia sob uma incessante chuva e sensação térmica de 2ºC, mostrou
com clareza que alguma coisa estava fora da velha ordem. O país foi tomado pelos
lenços verdes, símbolo da Campanha Nacional pelo Aborto Legal, Seguro e
Gratuito. Até o mais reacionário dos senadores antidireitos e pró-aborto
clandestino pôde sentir que este rio que tudo arrasta não vai parar.
A maré
verde
Tanto nesse 8A quanto na vigília daquele 13 de
junho, quando o projeto foi aprovado pela Câmara dos Deputados, os arredores à
esquerda do Congresso se transformaram em um espaço e contexto de sororidade,
onde milhares de mulheres desconhecidas encontravam algo em comum, profundamente
familiar. O microcosmos da avenida Callao, entre a avenida Corrientes e a rua
Sarmiento, estava repleto de tendas de diversas organizações, como o Nenhuma a
Menos, a Assembleia Popular Feminista (APF) e a Não Tão Diferentes, organização
de mulheres em situação de rua.
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Senado da Argentina vetou projeto de lei de interrupção voluntária da gravidez (Foto: Nuria Alvarez)
O movimento de mulheres conseguiu enraizar socialmente o tema da legalização do aborto. Levou o assunto para a rua, escolas, hospitais e, sobretudo, para dentro das famílias. Furou o bloqueio da mídia hegemônica e conseguiu pautar o debate. Desmantelou a separação entre o público e o privado, que sempre se prestou para reforçar o machismo, politizando a sala de jantar. Fez irromper uma identidade feminista forte, descentralizada, que alimentou as ações cotidianas com alegria e energia desmedidas. Daí a pujança do 8A e a convicção desse verso tão cantado em coro feminino: “Abaixo o patriarcado, que vai cair, que vai cair”.
A luta pela legalização do aborto na Argentina é a ponta de um iceberg que tem por debaixo décadas de organização feminista. A Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto Legal foi gestada nos Encontros Nacionais de Mulheres de Rosário e Mendoza e lançada oficialmente em 28 de maio de 2005, no Dia Internacional de Ação pela Saúde das Mulheres. De lá pra cá, o movimento foi incansável no debate científico-universitário e nas discussões sobre políticas públicas para mulheres. Construiu um mote claro: “Educação sexual para decidir, anticoncepcionais para não abortar e aborto legal para não morrer”.
Assim, a questão do aborto legal entrou na agenda dos direitos humanos e da democracia, e foi incorporada por diversas outras organizações denominadas “socorristas”, que cumprem um importante papel de dar assistência a mulheres que desejam realizar um aborto, enquanto a lei não sai.
“O compartilhamento de experiências é necessário entre as mulheres que vivenciam uma gravidez indesejada. As equipes de saúde que prestam informações relevantes a quem opta por realizar um aborto são criminalizadas”, afirma Yamila, integrante da Assembleia Popular Feminista, destacando o papel do Protocolo ILE (Protocolo para a Atenção Integral das Pessoas com Direito a Interrupção Legal da Gravidez), que foi base para determinar o reconhecimento do aborto por lei no Brasil: casos de estupro, risco de vida da mãe e anencefalia do feto.
Foto: Vivian Ribeiro
Um novo cenário
A grande maré verde contou com a ocupação de escolas por estudantes secundaristas para exigir a aprovação do projeto, como ocorreu na Escola Superior de Educação Artística Rogelio Yrurtia, na cidade de Buenos Aires. No colégio Católico Instituto Padre Márquez, os alunos foram obrigados a colar cartazes “pró-vida” e a resposta foi uma chuva de lenços verdes. Professores encurralados ou encorajados pela audácia das jovens não tiveram como fugir do debate. O aborto teve que entrar na pauta escolar. Nas manifestações e diariamente nas ruas é comum ver meninas jovens com seu grupo de amigas, todas com os lenços – ou pañuelos – verdes, com argumentos muito claros sobre o que significa a legalização do aborto na sociedade.
A linguagem inclusiva também ganhou espaços antes inimagináveis. Cresceu nos coletivos militantes, em parte do jornalismo, especialmente o contra-hegemônico, e em círculos literários. Antes com o “x”, de “xs estudantxs”, e agora com o “e”, de “es menines”, desnuda como a linguagem corrente sedimentou em sua própria estrutura concepções patriarcais, heteronormativas e binárias. Para além dos binarismos, a nova linguagem busca transpor os gêneros.
Tudo isso não seria possível sem a força comunicativa da Campanha. Ao contrário do Brasil, a Argentina não possui um sistema de meios de comunicação tão concentrado e unidimensional. Seja pela sua tradição mais igualitária e democrática ou por avanços da lei de meios de comunicação durante o período kirchnerista, há algum espaço para o dissenso. Exemplo disso é o Página 12, jornal impresso diário com perfil de esquerda; a C5N, uma rede de televisão privada claramente contrária ao governo Macri, e diversas redes de rádios com perfil crítico. Mesmo nos canais televisivos do establishment existe uma tradição de debate aberto entre diversas correntes de pensamento. Tudo isso somado a uma pujante rede de meios de comunicação alternativos e à difusão do movimento pelas redes sociais permitiu que a questão ganhasse corpo, transformando-se em um debate público de massas.
Mulheres
contra os direitos das mulheres
Com maioria de votos contrários do bloco
Cambiemos, do atual governo, a lei foi rejeitada com 38 votos negativos contra
31 a favor. Como se poderia prever, as mulheres não são maioria na mesa.
Contudo, o corpo do Senado argentino atualmente é conformado por 30 mulheres e
40 homens, uma relação bastante equilibrada considerando que a presença de
mulheres nas cadeiras altas no âmbito político normalmente representa uma
porcentagem ínfima em comparação aos homens. Enquanto na Argentina a presençade mulheres representa 41,7% do Senado, no Brasil são 14,8%. A Argentina é um
dos poucos países da América Latina que contempla em maior número mulheres na
política, inclusive na presidência do parlamento – neste caso, quem coloca a
Argentina nesse posto é a vice-presidente Gabriela Michetti, confessamente
contrária à lei do aborto. Durante os meses prévios à sessão que iria presidir,
Michetti arriscou manobras para atrasar a votação do projeto e soltou frases polêmicas
sobre a questão do aborto mesmo em casos de estupro: “Você pode dar depois
em adoção depois e fica tudo bem. Há dramas maiores na vida”.
O 8A foi marcado pela prevalência final das
cadeiras representadas em vermelho nos telões que transmitiam a sessão para a
multidão do lado de fora, e o voto feminino no Senado se dividiu: de 28
mulheres votantes, 14 optaram pelo “sim” e 14 pelo “não”.
As duas senadoras que se abstiveram foram Eugenia Caltafamo, do partido Unidad
Justicialista, do estado de San Luis, que não se apresentou por estar de
licença-maternidade; e a senadora Lucila Crexell, do Movimiento Popular
Neuquino, de Neuquén, que mesmo presente pediu abstenção. Ela buscava a
aprovação de um projeto intermediário que contemplasse a despenalização, mas
não a legalização da prática.
A maioria das que vetaram o projeto sustentava
“argumentos” pouco fundamentados sobre o início da vida e sobre o
conceito de maternidade. Entre afirmações como “não li o projeto de
lei”, proferida pela senadora Cristina López Valverde, de San Juan, do
partido Frente Todos, e que “uma mulher que está em uma gravidez não
desejada precisa de alternativas que não ponham em risco a vida de seu
filho”, da senadora de Tucumán Silvia Elías de Pérez, da Unión Cívica
Radical, a postura em negativa de senadoras mulheres foi decisiva para o
resultado no Senado. Com justificativas tão vazias quanto contraditórias, seus
discursos só parecem levemente menos absurdos do que os de senadores homens que
acreditam poder opinar sobre a gravidez e até sobre o que representa um estupro
para uma mulher. Em um momento inacreditável da sessão, o senador de Salta,
Rodolfo Urtubey, do partido Justicialista, deixou uma multidão chocada com sua
exposição: “O estupro nem sempre representa uma violência contra a mulher.
Por exemplo, nos casos de abuso intrafamiliar. Não é o estupro clássico”.
Já se espalham petições denunciando o senador por apologia ao estupro.
Foto: Nuria Alvarez
Macrismo
polivalente
Nem tudo são flores neste processo de ascendência
do movimento feminista e de discussão sobre o aborto legal. A situação se
complexifica quando se verifica que o próprio presidente Maurício Macri foi
quem habilitou o debate no Congresso Nacional em seu discurso de abertura das
sessões legislativas deste ano. Por ironia do destino, um projeto cujo debate
legislativo foi barrado durante os mais de 10 anos de kirchnerismo foi
disparado por um governo neoliberal do tipo Robin Hood às avessas, que promove
um ajuste brutal sobre o povo argentino e inicia mais um ciclo de dependência descarada,
com a predominância dos interesses do setor financeiro e agro-exportador.
Independentemente dos objetivos íntimos do
presidente (promover uma cortina de fumaça para a crise brutal pela qual passa
Argentina; buscar aproximação com um setor das classes médias liberais e
progressistas ou contribuir para um feito histórico equiparável ao que
significou a aprovação do casamento igualitário durante o governo de Cristina),
o fato concreto é que a discussão legislativa do projeto deu vazão a um
processo que já deixou marcas irreversíveis na sociedade argentina. Essas
marcas ultrapassam ainda os limites do país hermano, em uma repercussão
expansiva de uma campanha pela legalização do aborto por toda a América Latina,
que se faz notar especialmente pelo fato de que a Argentina sequer é o primeiro
país a levantar o assunto: o Uruguai mesmo, ali ao lado, conquistou a aprovação
da lei em 2012.
Macri, com seu pragmatismo neoliberal, fez questão
de deixar claro que individualmente era contra a legalização do aborto. Agora,
juntamente com alguns de seus correligionários do Cambiemos, busca eximir-se de
responsabilidade, afastando-se dos resultados da votação. Tenta ocultar que dos
25 senadores que compõem o bloco Cambiemos, 17 votaram contra o projeto.
Entretanto, a forma cínica e burlesca como Gabriela Michetti conduziu os
trabalhos legislativos, insultando senadores pró-legalização e comemorando a
rejeição do projeto, dá conta de como sob o macrismo, o liberalismo e o
medievalismo da Opus Dei convivem em harmonia.
Foto: Nuria Alvarez
contrarreação
O deputado da esquerda trotskista Nicolas Del
Caño, quando da sessão que aprovou a legalização na Câmara dos Deputados, disse
que “em um Senado dominado diretamente por governadores feudais do Partido
Justicialista, do Cambiemos e de partidos provinciais, não seria fácil a sanção
da lei”. E realmente, após a aprovação parcial do projeto na Câmara, a reação
foi imediata. Luciana Rosende e Werner Pertot, em minucioso artigo sobre o tema, contam como se
deu essa reviravolta. Segundo as autoras, “a partir de 13 de junho os setores
antidireitos redobraram a aposta. A Igreja assumiu uma posição beligerante, as
ONGs religiosas ativaram seus contatos nos meios de comunicação, aumentaram sua
pressão sobre o governo e sobre o bloco de oposição. E começaram a ser vistos
mais lenços azuis com o lema ‘Salvemos as duas vidas’”. A concertação entre o
conservadorismo das elites provinciais, as ações performáticas do grupos
pró-vida e a intelligentsia dos quadros médicos e de juristas da Universidade
Católica e Universidade Austral, esta última da Opus Dei, foram imprescindíveis
para garantir o “não” no Senado.
abriu o caminho para outro debate. Colocou na ordem do dia a discussão sobre a
laicidade do estado – diferente do Brasil, a Argentina não é um Estado Laico.
Junto aos lenços verdes surgiram os lenços laranjas da Campanha Nacional pelo
Estado Laico, que diz: “Igreja e Estado Assuntos Separados”. Veio à tona a
questão do financiamento estatal da Igreja Católica e do pagamento dos salários
dos bispos por parte do Estado, ancorados em leis editadas durante a ditaduramilitar Argentina, por Rafael Videla. Nora Cortiñas,
uma das mães da Praça de Maio, disse sem meias palavras que “durante a ditadura
a Igreja não se importava com as duas vidas, davam choques elétricos na vagina
de mulheres grávidas e a Igreja abençoava o voos da morte”.
Na linha discursiva dos que votaram pelo
“não”, principalmente entre os senadores homens, há uma perda do que
chamam de “paz social”. Ter mulheres nas ruas pedindo por seus
direitos balança as estruturas, provocando receio . Sempre foi assim – um dos
grandes “argumentos” contra o sufrágio feminino era que seria muito
trabalhoso “ensinar às mulheres a importância do voto”, um eufemismo
risível que deixa exposto em carne viva o medo da perda de controle. É que na
ação coletiva as mulheres retiram o patriarcado da sua posição naturalizada e
de perigosa invisibilidade. De repente, o poder masculino aparece como
violência e força bruta. E certamente não é agradável tomar consciência da sua
própria condição de opressor.
Octavio Salazar, professor de Direito Constitucional
da Universidade de Córdoba e autor do livro El hombre que (no) deberíamos ser,
fala que “nós, homens, temos medo do feminismo porque nos revela coisas de nósmesmos que não gostamos de conhecer”. Talvez o grande
medo que inspira a reação machista é que as mulheres empoderadas venham a fazer
com os homens o que eles sempre fizeram sob a benção do patriarcado.
Não se pode
parar o vento
A onda verde se espalhou pela América Latina. A
pauta está instalada com uma força nunca antes vista e a mensagem é clara: a
campanha continua. Os lenços verdes chegaram a diversos países e vêm se
espalhando pelo Brasil, onde o tema já está instalado no Supremo Tribunal
Federal, apesar da imprevisibilidade do resultado do julgamento. As últimas
audiências dos dias 3 e 6 de agosto, presididas pela ministra Rosa Weber, já
são vistas como um grande passo.
Dois dias depois da rejeição da lei, a campanha
oficial publicou uma mensagem exaltando a conquista inédita e histórica de
colocar em pauta a problemática das mulheres e de se fazer ouvir as vozes
feministas. Enfatizou a importância de não votar nos políticos que se
abstiveram ou foram contrários ao direito das mulheres a decidir. A campanha
convocou aos chamados “pañuelazos” – manifestações em que todas
levantam seus lenços verdes em um símbolo coletivo de demanda por uma lei do
aborto seguro e gratuito –, na América Latina e no mundo; e também a que todas
estejam presentes no Encontro Nacional de Mulheres, a acontecer este ano na
província de Chubut, no sul do país
Ao reforçar a necessidade de um Estado laico, o
comunicado joga luz sobre um assunto profundamente necessário, reforçando a
importância dessa campanha, representada pelos lenços laranjas. Talvez mais
ainda no Brasil, onde religião e política andam cada vez mais juntas. O grito
vem das ruas, e como bem se anda dizendo entre os grupos feministas nesses
últimos dias: nunca nada nos foi dado de mão beijada.
do Coletivo Passarinho