Vinho e riqueza mudam o homem mais sóbrio.
Conheces o marinheiro quando vem a tempestade.
Sabedoria popular portuguesa
O centro da polêmica em “Que fazer?” e em “Um passo à frente, dois passos para trás”, é a distinção entre o partido (revolucionário) e a classe (trabalhadora), o que rejeita todas as tentativas de confundir ou identificar ambos. Essa distinção, elementar do ponto de vista do marxismo da Segunda Internacional, implica examinar a especificidade da esfera política, suas correlações de forças e seus próprios conceitos. Esse terreno não é simplesmente um reflexo ou uma extensão da correlação de forças sociais. Ele expressa a transformação das relações sociais (e da luta de classes) em termos políticos, com seus próprios – como a psicanálise diz – deslocamentos e condensações. [1]
Daniel Bensaïd
Permanecem vivas as controvérsias de critérios para a apreciação histórica dos partidos políticos. Só não se pode é julgar um partido por aquilo que ele pensa sobre si próprio.
Há quem defenda que um partido se define, essencialmente, pela sua linha política: ou é de direita, centro, esquerda ou as variantes intermediárias. Esse critério é insuficiente e ingênuo. O vocabulário político flutua de acordo com a mudança nas relações sociais e políticas de força. Quando a situação política é reacionária tudo se desloca para a direita. Quando a situação é revolucionária tudo se desloca para a esquerda. Há muita dissimulação no vocabulário político.
Nos anos oitenta, o que vingava no Brasil era o ascenso das lutas operárias e populares contra a ditadura militar, que se agigantou a partir da luta pelas Diretas Já em 1984. Como o pêndulo da relação social de forças girava a favor dos trabalhadores, a principal representação do núcleo duro da burguesia paulista assumiu o nome de partido da socialdemocracia. Socialdemocracia é o nome dos partidos socialistas de base na classe trabalhadora, os herdeiros da tradição da II Internacional, como Labour britânico. O PSDB nunca foi social democrata. Sempre foi um partido burguês liberal.
Desde 205/16, o pêndulo da relação social de forças girou de forma reacionária. Bolsonaro é um neofascista e o seu governo é uma coalizão de extrema-direita, mas é retratado pela mídia como se fosse de direita. O bloco político de direita, que se articula em torno do PSDB/MDB e DEM, que venceu as recentes eleições municipais é apresentado como centro.
Há quem defenda que um partido se define somente pela sua ideologia. Também é inadequado. A imensa maioria dos partidos no Brasil não tem, se formos rigorosos, ideologia, são legendas eleitorais que defendem interesses. Na verdade, o tema exige uma pluralidade de critérios.
Partidos podem ser julgados pelo programa que apresentam para a transformação da sociedade. Ou podem ser explicados: (a) pela história de suas linhas políticas e de suas lutas políticas, sobretudo, as internas; (b) pelo confronto entre suas posições quando estão na oposição, e quando se aproximaram do poder; (c) pelos valores e ideias que inspiram seu programa (d) pela composição social de seus membros, militantes ou simpatizantes, ou dos seus eleitores, ou da sua direção; (e) pelo regime interno do seu funcionamento; (f) pelas formas de seu financiamento; (g) pelas suas relações internacionais. Todos estes critérios são válidos e significativos, e a construção de uma síntese exige uma apreciação da sua dinâmica de evolução.
Para aqueles que usam o marxismo como método de análise das relações sociais e políticas, todos estes elementos são significativos, mas uma caracterização de classe é inescapável. Mas análises marxistas são o estudo das contradições em vários níveis distintos de abstração, e através de mediações.
O PT usou muito vocabulário marxista, mas nunca foi um partido marxista. Cultivou afinidades, mas nunca foi um partido socialdemocrata no formato europeu. Manteve relações com o PC da Alemanha Oriental até 1989, mas nunca se identificou com o aparelho dos partidos alinhados com a URSS. Estreitou relações com o PC cubano, os sandinistas da Nicarágua, a Farabundo Marti de El Salvador e com o governo de Chávez na Venezuela, nos anos noventa, com a formação do Foro de São Paulo, mas nunca foi um partido revolucionário.
Afinal o que é o PT? O PT é o maior partido que a classe trabalhadora brasileira construiu em sua história. Conheceu uma gênese nos anos oitenta, o apogeu na virada do milênio, e entrou em uma lenta, porém, ininterrupta decadência desde 2013.
O PT é um tipo especial de partido de esquerda. É um partido eleitoral, reformista, mas não mantém relações estáveis, permanentes e orgânicas com a burguesia. Nenhum grupo capitalista nunca controlou sequer uma ala do PT. O PT é independente da classe dominante. É um aparelho eleitoral profissional, mas não porque concorre a eleições. É eleitoral, porque depende, há muitas décadas, dos mandatos parlamentares e do financiamento público para sobreviver, e não da sua militância. É reformista, não porque luta por reformas, mas porque está adaptado ao regime. Reformista, portanto, porque defende a regulação do capitalismo ou a colaboração de classes. Mas a condição eleitoral e uma política reformista não transformam o PT em um partido burguês. Um partido é burguês quando mantém relações estruturais com alguma fração dos capitalistas. Portanto, o PT é diferente do peronismo.
Reconhecer a natureza de classe de um partido não equivale a dizer que sua política representa os interesses da classe. É muito mais complicado. Um partido reformista pode ser um instrumento adaptado à gestão do capitalismo e, ao mesmo tempo, independente da burguesia. Isso significa que tem a liberdade para fazer “giros políticos à esquerda”, ainda com maior impulso se está na oposição.
Resumindo uma longa história e sendo, portanto, “brutal”, o PT nos anos oitenta, com erros táticos aqui ou acolá, foi um instrumento poderoso de representação dos interesses de classe e cumpriu um papel progressivo. Ao longo dos anos noventa oscilou muito e, depois que conquistou a presidência prevaleceu o papel regressivo.
Mas a prova no “laboratório da história” sobre o PT foi que, em 2016, a classe dominante brasileira se unificou para derrubar o governo Dilma Rousseff, e organizou uma campanha para criminalizar sua direção e destruir, politicamente, sua máxima liderança Lula. Ficou claro que a operação LavaJato, embora tenha atingido, também, PSDB, MDB, PP e outros, obedecia a uma estratégia de luta pelo poder, e isso exigia deslocar o PT. A fúria de classe da burguesia confirmou que não era um partido burguês. Mas não somos metafísicos, vamos além do aristotelismo.
Portanto, dialeticamente, em outro grau de abstração, todos os partidos reformistas, são partidos do regime democrático-liberal, dependentes da institucionalidade, e o PT não é diferente. Marxistas da III Internacional usavam uma fórmula para identificar esta integração na defesa dos limites da ordem estabelecida: definiam a social democracia como um partido operário-burguês. Ou seja, partidos independentes da classe trabalhadora, com direções que capitulavam diante da pressão da classe dominante. Quando no governo, com responsabilidades de gestão do Estado, ocupavam o lugar de um partido burguês-operário.
Mas como tudo que existe os partidos, também, se transformam. E o PT de 2020 é evidentemente muito diferente do PT de 1980. Análises históricas não devem se resignar a reconhecer permanências, porque o desafio é descobrir as mudanças. A direção do PT é a mesma, mas estes quarenta anos não passaram em vão, e o partido que nasceu na luta contra a ditadura não é mais o mesmo, se é que ainda existe.
Acontece que mudanças não são possíveis sem crises. Os partidos podem ter crises de crescimento, alimentadas pelos seus acertos e desafios engrandecidos que vêm com uma influência maior, ou crises produzidas pelos seus erros. Mas não é possível não ter crises.
No seu processo de transformações, o PT enfrentou muitas crises. A dinâmica política de sua evolução não foi linear. O critério para definir quais entre as crises foram as mais importantes será sempre controverso. O que importa não é se os que viveram o processo compreenderam a gravidade da mudança que aconteceu, mas se o desenvolvimento futuro do Partido confirmou que ela foi decisiva.
Uma crise é significativa quando um partido sai dela diferente daquilo que era. Nos anos oitenta, por exemplo, quando a situação política evoluía à esquerda pela mobilização mais ativa dos trabalhadores e da juventude, o PT teve a primeira ruptura, pela direita, mas foi indolor, tanto na vanguarda mais orgânica, quanto na área de influência eleitoral.
Três deputados federais, Bete Mendes e José Eudes, liderados por Airton Soares, romperam com o partido em 1985, porque o PT não apoiou a Aliança Democrática que elegeu, indiretamente, a chapa Tancredo/Sarney no Colégio da ditadura, na sequência da campanha das Diretas em 1984. Saíram sozinhos, sem deslocamentos militantes, e sem maiores sequelas na influência eleitoral, que permaneceu ascendente.
A atitude da bancada do PT em relação à Constituição de 1988 foi simbólica deste período. O PT votou contra a Constituição, mas assinou o documento, portanto, assumiu, publicamente, o respeito pela legitimidade do novo regime. A direção do PT sabia muito bem que estava sinalizando para a classe dominante um compromisso. A burguesia brasileira compreendeu o gesto. Não por acaso, a direção do PSDB, liderada por Mario Covas, unanimemente, declarou o apoio a Lula contra Collor no segundo turno em 1989. Assim como Brizola.
O processo de adaptação político-social aos limites do regime democrático que saiu da eleição de Tancredo/Sarney no Colégio Eleitoral era nebuloso para a maioria da vanguarda ativista que tinha referência no PT, porém, como a evolução futura confirmou, dramaticamente, já era irreversível.
O que não impediu que, ainda durante alguns anos, uma parcela majoritária da esquerda petista considerasse que o PT, e mesmo sua direção, seria um partido “em disputa” para o projeto da revolução brasileira. O que obscurecia a mudança política profunda era que, embora o PT tivesse deixado de ser oposição ao regime democrático, era não só oposição ao governo Sarney, mas uma oposição intransigente e radical.
No início dos anos 1990, quando a situação política evoluía à direita, a direção do PT convocou o 1º Congresso e decidiu expulsar a Convergência Socialista, uma corrente trotskista. Foi uma nova crise. Dali para frente, as tendências de esquerda que ainda resistiam no PT ficaram sabendo qual seria o seu destino, se desafiassem a direção. Esta crise não teve repercussão eleitoral, mas deixou uma ferida incurável: uma das correntes da ala revolucionária tinha sido eliminada.
Paradoxalmente, após o impulso do Fora Collor, a corrente majoritária do PT — que tinha ido muito longe no seu giro à direita no 1º Congresso de 1991 — se dividiu, originando a Articulação de Esquerda. Esta corrente, unida às tendências marxistas DS (Democracia Socialista) e Força Socialista, entre outras, obteve uma vitória no Encontro Nacional do PT em 1993. A reação, no entanto, foi um fogo de palha e se revelou efêmera.
No Encontro Nacional de 1995, na sequencia da segunda derrota presidencial de Lula em 1994, a Articulação, liderada por Zé Dirceu, recuperou a maioria, em aliança com a tendência Nova Esquerda, liderada por José Genoíno e Tarso Genro.
A ilusão de um partido em disputa desmoronou, e a inflexão da situação política após a vitória de FHC, e a derrota da greve petroleira em 1995, foram o bastante para que a luta interna no PT se transformasse num assunto, essencialmente, de profissionais políticos.
Em 1999, a direção do PT, depois da terceira derrota eleitoral em 1998, realizou mais uma inflexão à direita: impôs um veto à campanha Fora FHC que a CUT e o MST vinham construindo, com o apoio da esquerda interna e externa ao PT, e que tinha realizado em Brasília um ato com cem mil ativistas. A campanha pelo Fora FHC de 1999 tentava mimetizar o que tinha sido a campanha Fora Collor em 1992, e ameaçava crescer em um contexto de intenso mal estar provocado pela maxidesvalorização do real no primeiro mês do segundo mandato de FHC. O posicionamento inflexível da direção do PT – Zé Dirceu condicionou a sua eleição à presidência do PT à derrota da moção pelo Fora FHC – revelou para a classe dominante a disposição de fazer a disputa respeitando o calendário eleitoral do regime.
Em julho de 2002, a direção do PT articulou através de Palocci, ex-prefeito em Ribeirão Preto, um Manifesto no lançamento da quarta candidatura de Lula à presidência, desta vez tendo como vice Zé Alencar, um dos maiores empresários do setor têxtil, e senador por Minas Gerais. Este documento declarava com todas as letras a decisão de honrar o pagamento da dívida pública, interna e externa. Finalmente, em 2003, depois da eleição de Lula, a direção do PT não hesitou em expulsar Heloísa Helena, e os deputados que vieram a fundar o PSOL, com a acusação de indisciplina por terem se recusado a votar no Congresso a reforma da Previdência.
Foi uma nova crise e transformação. Ficou comprovado que a mão da direção do PT não iria tremer no seu giro estonteante. A classe dominante brasileira compreendeu o significado deste gesto. Foi, porém, em 2005, que o PT atravessou a primeira crise séria de sua história. Uma parcela do núcleo duro de sua direção foi decapitada, politicamente, pela crise aberta pelas denúncias do mensalão. Apesar de indisfarçável satisfação das frações majoritárias da classe dominante com o governo Lula desde o primeiro mandato, a oportunidade aberta pela crise do mensalão precipitou uma ofensiva política burguesa no Congresso Nacional e na mídia, com algum eco nas ruas, que fez Lula tremer no Palácio do Planalto.
O mensalão obrigou o PT a sacrificar Zé Dirceu e outras lideranças, e deixou o partido, parcialmente, desmoralizado entre os setores mais críticos do ativismo operário e popular, em boa parte da vanguarda estudantil mais lutadora, e nos meios da intelectualidade de esquerda mais honesta.
A quarta grande crise foi precipitada pelas Jornadas de Junho de 2013. Milhões nas ruas em mobilizações contra todos os governos, sem poupar os governos liderados pelo PT, em especial, Haddad em São Paulo, e Dilma Rousseff em Brasília, puseram fim aos dez anos de estabilidade política no país. Em um mês, os índices de aprovação do governo Dilma desabaram, vertiginosamente, de quase 60% para menos de 30%, em um contexto muito semelhante ao do “que se vayan todos” da Argentina em dezembro de 2001, das mobilizações da “geração à rasca” em Portugal, dos “indignados” da Puerta de Sol em Madri, ou mesmo dos jovens desempregados na Grécia. Depois de setembro de 2013, todavia, o governo liderado pelo PT se recuperou.
A incerteza política, e a tendência à estagnação econômica, contaminaram os humores da maioria da burguesia, que elevou o tom de suas exigências, depois da reeleição muito apertada de Dilma Rousseff em 2014 contra o PSDB de Aécio Neves. Mas a direção do PT, confiante depois da quarta vitória eleitoral para a presidência, não hesitou em jogar a carta da conciliação, mais uma vez, para acalmar os ultimatos da classe dominante, a aceitou entregar o Ministério da Economia para Joaquim Levy, indicado pelo Bradesco, um dos dois maiores bancos nacionais, e aceitou o ajuste fiscal que mergulhou o país na mais grave recessão desde o fim da ditadura. Essa decisão precipitou a quinta grande crise: a ruptura da geração mais jovem da classe trabalhadora com o PT deu um salto de qualidade.
Mas nada pode ser comparado à ofensiva, iniciada em 2015, e que culminou em 2016 no impeachment de Dilma Rousseff, no governo de Temer em 2017, e passou pela condenação e prisão de Lula e a eleição de Bolsonaro em 2018. O PT viveu a sexta grande crise quando ficou claro que já não era mais capaz de responder à altura, nas ruas, à iminência do golpe institucional. Hesitou em chamar à mobilização popular durante um ano, não usou as posições institucionais para se defender, e entregou à CUT e ao MST, em vão, toda a responsabilidade.
Agora, ao final de 2020, o PT vive a sua sétima grande crise. Embora com resiliência entre os ativistas veteranos que vieram dos anos oitenta e noventa, em especial, nos setores mais organizados da classe trabalhadora, o PT perdeu influência na juventude para o PSol. É difícil prever qual será o destino de um PT envelhecido, quando consideramos a entrada em cena do vigor do movimento feminista, da potência das jovens negras, da audiência ambiental, do impulso dos LGBT, e da ruptura da nova geração de trabalhadores, os mais instruídos da história do país, porém, precários e com salários miseráveis.
Quem irá dirigir a próxima onda de lutas no Brasil? A esquerda estará à altura do desafio de derrotar Bolsonaro? Não é possível prever se o PT se recuperará ou não porque ainda estamos em uma situação desfavorável e defensiva na luta contra Bolsonaro. Mas a história sugere que a luta de classes pode assumir formas lentas, até que se torna vertiginosa.
O mesmo vale para o destino dos partidos.
[1] BENSAÏD, Daniel. Leninismo no século 21.