Portões recém-abertos, uma fila quilométrica que se bifurca sob as placas “público” e “profissionais”, esquema rebuscado de segurança e um imponente letreiro advertindo: #somoslectores. A chegada à FIL (Feira Internacional do Livro) de Guadalajara, com esses ingredientes, dá a impressão de uma receita estranha de se digerir. Essa foi a 27ª edição do evento mexicano, o mais importante das letras hispânicas na América Latina, que aconteceu ao longo de nove dias (30 de novembro a 8 de dezembro) de programação literária e de negócios, contando com Israel como o convidado de honra.
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A homenagem explica a segurança redobrada e as longas filas. Ela foi justificada, ao menos em parte, por uma série de oito acordos bilaterais que o governo israelense celebrou recentemente com o México e que incluem cooperações em matérias educativa, comercial e de administração de água e esgotos. E a bifurcação também é clara: a FIL é uma das raras feiras literárias de primeira linha que combinam com harmonia a atenção ao público comum e aos profissionais do livro. Todos eles leitores, como reforça o letreiro, e ávidos por novidades.
Agência Efe
Mandela também foi lembrado na FIL
Ao adentrar o pavilhão da FIL, amplo, porém controlável, também fica claro o título de maior encontro da literatura latino-americana em espanhol, que ela não ostenta, por assim dizer, mas exerce de maneira natural. Basta uma panorâmica pelas quase duas mil editoras presentes na Expo Guadalajara para se deleitar com títulos e mais títulos de autores do espanhol consagrados e por consagrar, além de uma grande oferta de livros traduzidos de outros idiomas. Tudo começa a fazer sentido e a despertar certa inveja “de la buena”, como se costuma dizer, em uma brasileira como eu.
Brasil é América Latina
Menos mal o Brasil foi convidado para a festa. E isso aconteceu há algum tempo, anos depois da homenagem prestada pela feira à literatura brasileira em 2001, quando a feira (novamente ela) fez um movimento importante para cruzar fronteiras e instalar o Brasil de vez em Guadalajara. Foi assim: a FIL mandou uma comitiva ao país para conversar com especialistas do meio editorial, identificar os mais relevantes autores contemporâneos de acordo com a opinião dos que foram escutados, estabeleceu uma colaboração com a Fundação Biblioteca Nacional e criou o “Destinação Brasil”.
Trata-se de uma coleção de autores brasileiros de nome questionável, é verdade, mas que tem o indiscutível mérito de apresentar aos interessados, através de um belo catálogo, a biografia e trechos traduzidos ao inglês e ao espanhol da obra de cerca de 15 escritores ativos nos dias atuais. Aconteceu pela primeira vez em 2012 e este ano se repetiu, junto com uma série de bate-papos abertos ao público e à integração dos brasileiros (foram 14, todos convidados pela feira para estar presentes em Guadalajara) com os autores presentes nos encontros dos “latinos em geral”, chamados “Latinoamérica Viva”. Assim chegaram lá Julián Fuks, Ricardo Lísias, Andréa del Fuego, Ivana Arruda Leite, Santiago Nazarian, Marcelino Freire e Lucrecia Zappi, entre outros.
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Será um avanço e tanto quando acontecer o que deveria ser uma lógica fusão: “Latinoamérica (também) é Brasil” ou “Destinação Viva”. E ainda que os nomes continuem ruins, a vida fará um pouco mais de sentido para quem acredita em um espaço de maior circulação literária e de cultura em geral na região e torce por ele.
Fato é que o menu literário dedicado aos autores hispano-americanos é de abrir o apetite. País por país, a feira trata de identificar temas relevantes ao abordar o atual panorama literário de cada um e organiza, no tal “Latinoamérica Viva”, mesas de leitura e debate pensadas para os escritores se conhecerem melhor entre si e especialmente para que os leitores se aproximem deles. Argentina, Chile, Colômbia, Costa Rica e até Brasil… Romance, conto, poesia e até ilustração… Estava tudo lá. Um conteúdo aparentemente impossível de se abarcar, mas finamente condensado nas conversas e também, na maioria dos casos, nas estantes das editoras da feira, com livros à venda.
Sem falar nos 552 lançamentos de livros, 139 atividades de formação e negócios dedicadas aos mais de 20 mil profissionais presentes nesta edição e as 14 homenagens a escritores como o poeta e ensaísta francês Yves Bonnefoy (que recebeu este ano o principal prêmio da FIL, no valor de 150 mil dólares, oferecido desde 2013 a escritores de línguas românicas), o jornalista, cronista e romancista mexicano Juan Villoro e a escritora e quadrinista argentina Maitena.
Business
A geopolítica da Expo Guadalajara durante a FIL deixa claro que a Espanha é, ainda, o começo das coisas quanto o assunto é o mercado cultural hispano-americano. Logo na entrada da área dedicada às editoras, lá estavam instalados três imponentes grupos editoriais espanhóis: Planeta, Santillana e Random House Mondadori (este último, alemão, porém radicado na Espanha). Logo atrás ou um pouco mais na periferia estavam as maiores empresas e instituições mexicanas, como é de se esperar, como o Fundo de Cultura Econômica, Conaculta etc.
Lá pelo meio e dos lados foi possível encontrar grandes jóias do business do livro na América Latina, sendo a grande maioria delas editoras independentes – todas caracterizadas por uma seleção de autores única, afim de propostas bem particulares, um cuidado especial com o design dos livros e até pela aposta em títulos traduzidos de outros idiomas ou então vindos de algum país vizinho e relançados em espanhol.
E também uma área dedicada exclusivamente ao livro eletrônico, estreada este ano com 20 empresas ligadas ao comércio de e-book e grande expectativa, pelo que conta a responsável Verónica Mendonza Urista. Ela esclarece: “Esperamos que o mercado estivesse maduro para criar um espaço digital, em que distribuidoras de títulos, bibliotecas e editores pudessem mostrar seus serviços ao público e fazer negócios. Espera-se um incremento de mais de 10% na produção de livros digitais no próximo ano, então achamos que era o momento adequado para inaugurá-lo, contando com um programa de 134 atividades relacionadas a esse universo”. Enorme esforço, que se soma ao das editoras independentes para fazer frente à predominância de alguns poucos no mercado.
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Voltando ao impresso, uma dessas pequenas grandes indies é a mexicana Almadía, muito atenta a jovens talentos da ficção e também do jornalismo literário na América Latina e que no México edita Juan Villoro. Conta seu diretor geral, Guillermo Quijas-Corzo, o segredo do sucesso que até hoje teve sua empresa – herdada, por sinal, do avô, que era dono de uma livraria e papelaria em Oxaca, sede atual da editora – se deve ao esforço de “renovar a relação com todos os profissionais que fazem parte do processo de se escolher, editar e lançar um livro”. Segundo ele, o normal é que o editor seja visto como o senhor das decisões, mas na verdade não é assim. Pelo menos não na Almadía, onde o designer Alejandro Magallanes é tido como um dos principais responsáveis pelo sucesso de livros “bonitos, baratos e que chamem a atenção nas livrarias”.
Esse mesmo estilo de editar têm muitas das casas independentes da Colômbia, que marcaram presença na FIL com um espaço próprio, batizado de “La ruta de la independencia”, além de exibir seus títulos no stand institucional colombiano. Certamente ampliaram suas fronteiras e conquistaram um público considerável na feira graças a publicações belamente trabalhadas e chamativas, pelas quais respondem empresas como Laguna Libros, Rey+Naranjo y El Peregrino Ediciones.
É intenso o esforço pra fazer a diferença e também para ser América Latina sem passar pela Espanha. Mas não é fácil. Segundo o respeitado agente literário Guillermo Schavelzon, um argentino radicado em Barcelona, a capital catalã é também a capital do mundo do livro em espanhol, responsável por 80% das publicações de narrativa nesse idioma. “O lugar da Espanha é simbólico para a América Latina e, ainda que isso esteja mudando, não é algo que se perde tão rápido”, alerta.
Resta, nos dias de hoje, a esperança de ver as editoras – os grandes grupos e as independentes – mais interessadas em saber o que há de novidades nos países da região, e aí sim o Brasil começa a ser incluído. Responsáveis por esse movimento não são apenas os editores, mas também os scouts: profissionais secretos da indústria do livro que se dedicam a ler, analisar e sugerir originais para a publicação. Estão sempre ligados a no máximo uma editora de cada país, dada a concorrência, e se alimentam de suas relações com agentes e outros experts em leitura como eles. Os espanhóis Camila Enrich e José Hamad, ela de Madri, ele de Barcelona, conformam a Enrich & Hamad Literary Scouts e são dos poucos especializados em literatura latino-americana no mundo (o inglês domina essa atividade). Para ambos, o scout tem influência nas decisões de publicação, mas cabe ao editor escutar – e finalmente publicar.
Claro que “só há scouts se existe concorrência”, eles recordam, e concorrência é assunto das grandes companhias. Por isso, é preciso sinalizar que, entre as pequenas, o “scouting” é algo que acontece também, porém de maneira muito mais orgânica, improvisada, e com base nas mais diversas fontes, incluindo suplementos literários, blogs, amigos, conversas de bar.
David Grossman x Mario Vargas Llosa
Falando em conversas, a intensa atividade literária em Guadalajara teve início com um encontro tradicional da FIL (assim como é cada ano a inauguração da feira, da que participam também figuras políticas): a abertura do salão literário, este ano batizado de “Carlos Fuentes” que contou com as participações de David Grossman, um dos autores israelenses mais conhecidos internacionalmente, e o Nobel peruano Mario Vargas Llosa.
A tentativa de combinar essas duas grandes trajetórias literárias e a mediação do papo entre os escritores foi tarefa finamente cumprida, porém algo sofrida, do crítico literário Juan Cruz. Finamente, porque ele partiu de muitas possíveis coincidências, e sofrida, porque se encontrou muito mais com a habilidade de Grossman de contradizer o que se havia pesquisado sobre ele e também com o esforço de Vargas Llosa para lançar comentários cativadores de aplauso e se manter a altura dos comentários de Grossman – esses sim honestamente aplaudidos.
Resumindo a ocasião, disse entre outras coisas o autor israelense, que perdeu um dos filhos na guerra entre Israel e Palestina e é reconhecido defensor da paz no Meio Oriente: “Não escrevo para escapar da tristeza ou enfrentá-la de maneira mais concreta. Não sou um escritor ‘escapista’. Escrever, em cada condição, em cada coisa que me aconteceu na vida, é uma forma de estar na situação. Há muitas distrações tão sofisticadas, tanta manipulação que não nos permite enfrentar a dureza e a tragédia da vida. Vivemos de uma maneira tão fugaz, que a forma de estar na vida é me enfrentar a ela e minha forma de fazer isso é escrevendo, nomeando a realidade à minha maneira”. Vargas Llosa se resumiu a elogiar sua eloquência e a defender missões extra-literárias da literatura para se adequar à discussão.
Hermanos
Não resta dúvidas de que Guadalajara é a casa da literatura latino-americana. Mas nós, latino-americanos, aparentemente precisamos mais do que uma casa para os nossos livros. Necessitamos maior circulação literária na região.
Claro que a feira é um impulso e tanto, inclusive para que o Brasil se integre mais com vizinhos como a Argentina e não tão vizinhos como o México – só pra citar dois grandes mercados afins. O primeiro será o país homenageado da FIL no ano que vem, o segundo anda fazendo grandes esforços, através de seu maior evento literário, para nos ter próximos. Está na hora de retribuir o compadrismo e tirar melhor proveito da já gasta palavra “hermanos”, que tanto se escuta nos corredores do evento e aqui pouco se aplica.