A diplomata Cláudia Assaf não esquece a surpresa que teve quando estava em um voo para o Rio de Janeiro, em meio às suas férias de fim de ano, e recebeu de sua assessora uma mensagem dizendo que estava sendo alvo de uma notícia-crime promovida pela Confederação Israelita do Brasil (Conib), que a acusava de racismo.
Naquele primeiro contato com o processo, o procurador federal Herbert Reis Mesquita também informava que já havia um parecer no qual seria solicitado à Justiça o arquivamento do caso, mas os termos usados na mensagem alarmaram a secretária da representação brasileira em Mascate, capital do sultanato de Omã.
O processo tramita na Justiça Federal sob nome de “Notícia de Fato 1.16.000.003756/2023-90”, iniciado no dia 15 de dezembro, três dias antes de Cláudia receber a ligação de sua assessora. No documento, a entidade israelita afirma que a funcionária diplomática teria “proferido, em dois perfis da rede social Instagram, manifestações antissemitas (racistas), ao comentar a guerra Israel-Hamas”.
“Foi uma surpresa muito grande. Eu estava de férias e de repente chega uma informação falando em ‘arquivamento’, ‘notícia-crime’, e eu pensando: ‘o que é isso que está acontecendo?’, e entrei em contato com o Ministério Público Federal (MPF) para pedir maiores detalhes do processo. Dias depois, eu descobri que estava sendo alvo de uma ‘notícia de fato’ (que é o termo jurídico que se usa) impetrada pela Conib, que me acusava de racismo”, disse a Opera Mundi.
Comentários denunciados
Entre as diferentes publicações citadas pela Conib para pedir a investigação de Cláudia por suposto crime de antissemitismo estão um vídeo no qual ela critica um grupo de colonos israelenses queimando a casa de uma senhora palestina, além de críticas à narrativa de Tel Aviv sobre o atual conflito em Gaza, no qual o exército israelense já matou mais de 24 mil civis palestinos.
As postagens foram publicadas em dois perfis mantidos pela funcionária diplomática no Instagram: @ddd.arabe, usado para difundir o ensino do idioma árabe moderno padrão e divulgar a cultura árabe, e @dicasdadiplomata, no qual ela fala sobre sua experiência no Itamaraty.
A tentativa da Conib de qualificar os comentários de Cláudia como uma atitude de “racismo contra os judeus” foi refutada pelo Ministério Público Federal. No entendimento da procuradoria, “em momento algum Cláudia sequer tangencia ou minimiza eventos históricos como o Massacre de Lisboa (1506); o Decreto de 193816, no Brasil; o Holocausto e os seis milhões de judeus mortos; as barbáries desumanas perpetradas pelos Einsatzgruppen17”.
“Em momento algum ela nega as perseguições ao povo judeu, dirige-lhe ódio ou discriminação. Em momento algum ela enalteceu ou minimizou o ataque terrorista bestial do Hamas ao povo de Israel em 7 de outubro de 2023. O que ela fez, clara e unicamente, foi tomar partido contrário a Israel na relação desse Estado com a Palestina ao longo da história, e, também, a respeito da guerra contra o Hamas deflagrada recentemente”, completou o procurador Herbert Reis Mesquita, em seu parecer.
Situação processual
Após o pedido de arquivamento por parte do MPF-RJ, a ação movida pela Conib contra Cláudia Assaf seguiu para o Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1).
Essa instância da Justiça Federal tem a função de homologar o arquivamento do caso, encerrando o processo definitivamente. Na eventualidade de o arquivamento ser negado, o caso voltaria para o MPF-RJ, onde seria redistribuído para outro procurador.
Arquivo pessoal
Cláudia Assaf tem experiência de 17 anos no Itamaraty, com passagens por diversas embaixadas em países árabes e pela Missão do Brasil na ONU
Relação com o Itamaraty
A diplomata frisa que, até o momento, o caso não resultou em nenhum tipo de problema profissional ou advertência por parte do Itamaraty.
“Eu compartilhei essa informação com meus superiores, que é o correto a se fazer nesses casos, e por enquanto está sendo visto como algo do meu âmbito privado. Eu vi que uma delegação da Conib foi recebida recentemente no Itamaraty, tiveram uma reunião com o chanceler Mauro Vieira, o que é algo perfeitamente normal. Também sei que a Conib tem vínculos com políticos importantes no Congresso Nacional”, afirmou.
Cláudia possui 17 anos de carreira na diplomacia brasileira. Ela ingressou em 2006 no Instituto Instituto Barão do Rio Branco e se formou dois anos depois. Passou pelas embaixadas do Brasil em Doha (Catar, 2008-2012), em Riad (Arábia Sauditam 2014-2017) e no Kwait (2018-2021).
Entre 2012 e 2014, ela trabalhou em Nova York, na Missão Permanente do Brasil junto à Organização das Nações Unidas (ONU). Também esteve um período em Brasília, entre 2017 e 2018, no Departamento de Oriente Médio do Itamaraty.
A diplomata é funcionária da embaixada brasileira em Mascate (Omã) desde dezembro de 2021.
Breno Altman
O caso de Cláudia Assaf guarda algumas semelhanças com o vivido nos últimos meses pelo jornalista Breno Altman, fundador de Opera Mundi, que também enfrenta processos movidos pela Conib nos quais se busca criminalizar suas opiniões contra o atual governo sionista de Israel e contra a ofensiva militar israelense na Faixa de Gaza – que já matou mais de 23 mil civis palestinos, cerca de um 1% da população do território.
Altman é alvo de decisões judiciais, todas monocráticas e em caráter liminar – ou seja, nenhuma delas, até o momento, julgou o mérito das ações. Essas decisões foram tomadas pela Justiça de São Paulo, que acatou pedidos da Confederação Israelita do Brasil (Conib) que têm como objetivo censurar os comentários críticos de Altman ao sionismo.
São elas:
- Primeira instância civil: liminar do juiz Paulo Bernardo Baccarat, de 22 de novembro. Em 8 de janeiro, Baccarat rejeitou pedido de inclusão feito pela Conib de novas postagens de Breno Altman no processo.
- Primeira instância penal: liminar da juíza Maria Carolina Ackel Ayoub, de 30 de novembro. Esta decisão em SP ocorreu após a Procuradoria do Ministério Público do Rio ter pedido o arquivamento de um processo similar.
- Segunda instância civil: liminar do desembargador Luiz Augusto de Sales Vieira, de 26 de dezembro, em decisão semelhante à do juiz de Baccarat de 22 de novembro.
O jornalista também é alvo de um inquérito da Polícia Federal, decorrente de uma requisição do procurador Maurício Fabreti, do Ministério Público Federal, também iniciada por denúncia da Conib.
Além dos casos promovidos pela Conib, Altman também enfrenta um caso movido pela organização sionista Stand With Us, na primeira instância penal, que recebeu decisão liminar do juiz Fabricio Reali Zia pedindo a retirada de outro tuíte, no qual o fundador de Opera Mundi critica os sionistas André Laijst e Alexandre Schwartzman.
Todas as decisões determinam que Altman ou os responsáveis pelas plataformas excluam mensagens publicadas em suas redes sociais nas quais há críticas do caráter racista do Estado de Israel e da política do governo do premiê Benjamin Netanyahu. A defesa do jornalista está recorrendo contra essas decisões
“Não tenho como falar dos detalhes do caso [Breno Altman], a não ser o que pude acompanhar nos meios de comunicação, mas vendo essas notícias que saem na mídia, o que me chamou a atenção, porque se repete no meu caso, é a tentativa de criminalizar qualquer crítica ao sionismo, ou ao atual governo de Israel, ou mesmo qualquer comentário em defesa do povo palestino com o argumento de que isso configuraria uma expressão de antissemitismo”, analisou.
“É algo tão absurdo que a pessoa pode até ser judia, como é o caso do Breno, mas se ela tiver qualquer opinião que desagrade o pensamento da Conib, vai sofrer esse mesmo tipo de processo”, completou a diplomata.