Até o dia 2 de fevereiro de 2024, a pedagoga chilena Ana Maria Leiva Blanco, de 42 anos, era apenas uma moradora de Arraial d’Ajuda, distrito de Porto Seguro, na Bahia, que não gostava das opiniões políticas, sobretudo sobre os ataques de Israel à população palestina da Faixa de Gaza, de uma outra moradora do distrito de Porto Seguro: Herta Breslauer, de 54 anos.
Na verdade, segundo seu relato, é possível dizer o contrário: Herta é que não gostava da defesa que Ana Maria fazia do direito palestino de resistir a Israel (e não do Hamas em particular), e foi isso que deu início aos conflitos pessoais que se tornaram uma notícia nacional no dia seguinte, 3 de fevereiro de 2024.
Herta e Ana Maria se conheciam de longa data e, se não eram melhores amigas, não eram inimigas públicas até o dia 7 de outubro de 2023, quando o grupo palestino Hamas, lidera uma série de ações contra Israel. “Eu já estive na casa dela, comi várias vezes na casa dela. Uma pessoa antissemita não deixaria que o filho encostasse no filho dela. Eu sabia que eles eram judeus, o menino dela ia no churrasco com a gente”, disse a pedagoga a Opera Mundi.
O caso se tornou conhecido quando a gravação feita por Herta foi “nacionalizada” pelas redes sociais e apoiada pela Confederação Israelita do Brasil (CONIB). Nos dois vídeos gravados por Herta, a mensagem passada é que a proprietária da loja Mística Artesanato havia sido agredida “apenas por ser judia”, sem indicar que elas se conheciam.
Durante o primeiro vídeo, Herta, paulistana que vive há 14 anos no Arraial, afirma: “a doida entrou na minha loja, gritando, por eu ser judia”. No segundo, ela complementa: “uma mulher entrou na minha loja, eu tenho uma loja, um estabelecimento aqui no Arraial, ela entrou, me agrediu, me bateu, destruiu minha loja, simplesmente pelo fato de eu ser judia. Só por conta disso. Disse que eu sou assassina de criancinhas, eu não mato nem pernilongo, disse que vai me pegar só pelo fato de eu ser judia. Está aqui o boletim de ocorrência”.
A Confederação Israelita do Brasil e a Sociedade Israelita da Bahia emitiram uma nota de repúdio sobre o caso, afirmando: “a CONIB e a Sociedade Israelita da Bahia denunciam uma repugnante agressão contra uma comerciante judia em Arraial da Ajuda, na Bahia, pelo simples fato de ela ser judia. Uma agressão covarde, antissemita, que deve ser investigada como crime de ódio e seguir o seu devido processo legal. A CONIB vem pedindo moderação e equilíbrio às nossas lideranças para não importarmos o trágico conflito em curso no Oriente Médio”.
A acusação de Herta foi potencializada por ter ocorrido após uma declaração do petista José Genoino, em 20 de janeiro, que, num claro momento de apoio às políticas de boicote, desinvestimento e sanções contra Israel (BDS), acabou escorregando nas palavras e, em vez de defender o boicote a produtos e empresas israelenses, falou em “negócios judeus”.
Genoino explicitou logo a seguir, diversas vezes, que nem de longe seu ataque se dirigia a empresas de judeus brasileiros, mas a empresas israelenses e apoiadoras dos ataque a Gaza – o Estado brasileiro, por meio do governo federal e dos governos estaduais, têm inúmeros contratos de segurança com empresas ligadas ao controle policial da população palestina, por exemplo. A notícia de que numa cidade turística bastante conhecida, embora pequena, teria ocorrido um ataque antissemita indiretamente fazia parecer que a fala de Genoino teria tido consequências práticas ou seria expressão de um sentimento antissemita disseminado no território brasileiro.
Segundo Ana Maria, a defesa da resistência palestina que fez nas redes sociais irritou Herta, que acusou várias vezes a chilena de antissemitismo e de apoiar o Hamas antes que a briga das vizinhas se tornasse um caso nacional, veiculado pelo Fantástico, da Rede Globo, e apresentado ao público com um ataque antissemita. Um inquérito foi aberto pelo delegado Valfredo Borges Lima Neto e, depois em 7 de março, a acusação do Ministério Público contra Ana Maria foi aceita pelo juiz André Marcelo Strogenski, da 1ª Vara Penal de Porto Seguro.
Até quarta-feira, Ana Maria ainda não tinha advogado definido. Chegou a consultar um, mas avaliou que não teria condições financeiras de pagá-lo, até porque desde o episódio não tem se sentido segura para trabalhar – ela é uma vendedora ambulante em Arraial d’Ajuda e decidiu procurar a defensoria públicar. “Eu vejo os comentários, e são muito errados. E são pessoas de Arraial, dizendo que sou racista, que sou antissemita. Se eu sei que uma pessoa é antissemita, eu não ia cumprimentar. Não sou antissemita, não sou racista.”
Na hora do almoço de 2 de fevereiro, segundo relato da própria Ana Maria, as discussões sobre o tema que travara por mensagens privadas e postagens públicas nas redes sociais se tornaram presenciais. Herta Breslauer teria a encontrado nas ruas do distrito e a acusado, mais uma vez, de ser “terrorista”. “Na minha inocência, achei que ela ia pedir desculpas. Aí ela chegou bem pertinho de mim e me chamou de terrorista. Mas, como eu estava com meu filho mais novo [de oito anos], eu não fiz nada, deixei para lá. Mas dentro de mim, ficou uma revolução”.
A decisão de entrar na loja veio depois da Festa de Iemanjá. “Quando eu vi ela na loja, veio a revolta. Eu não lembro de nada, mas meu namorado, que não estava sabendo de nada, me disse que eu não dei um tapa nela, porque ele me segurou.”
Herta disse, no vídeo gravado após fazer o Boletim de Ocorrência da agressão, que Ana Maria lhe teria dado um tapa. Opera Mundi enviou algumas questões sobre o episódio à advogada de Herta (procurada pela reportagem, Herta avisou sua advogada que passou a dialogar com Opera Mundi e pediu que as questões fossem encaminhadas por escrito). Nenhuma resposta foi dada até o fechamento desta edição. As perguntas relativas a temas tratadas nesta reportagem estão relacionadas ao fim deste texto e, se respondidas, serão publicadas.
Para quem ouve Ana Maria e lê as mensagens trocadas entre ambas, o suposto antissemitismo do incidente parece realmente passar longe de ser a principal questão que levou ao bate-boca, aos xingamentos e à destruição de algumas peças à venda na loja de Herta. Primeiro porque, na própria gravação feita pela lojista, em nenhum momento Ana Maria a trata por judia.
Ana Maria, ao contrário, é bastante clara, mesmo no calor da hora, ao tratar Herta, uma dezena de vezes, como “sionista”, palavra que veio acompanhada dos xingamentos publicados pela imprensa – em dado momento, ela chega a usar a expressão “maldita sionista”, e também acusa Herta de ser “assassina de crianças”, relacionando a expressão ao sionismo e aos ataques a Gaza.
Segurada pelo namorado e outros homens, Ana Maria derruba produtos da loja de Herta no chão. Herta, por sua vez, insiste várias vezes que Ana Maria a ataca por ser judia.
A acusação se sustentaria caso a oposição ao sionismo seja considerada antissemitismo. Mas isso seria, de certa forma, negar aos próprios judeus o direito de rejeitarem a ideologia sionista. Como escreveu recentemente o escritor Benjamin Moser no insuspeito The Washington Post, traduzido no Brasil pelo conservador O Estado de S.Paulo: “o antissionismo, afinal, foi uma criação dos judeus, não de seus inimigos. Antes da 2ª Guerra Mundial, o sionismo era a questão mais divisiva e debatida com mais intensidade no mundo judaico. O antissionismo tinha variantes de esquerda e variantes de direita, variantes religiosas e variantes seculares, bem como variantes em todos os países onde os judeus residiam. Para qualquer conhecedor dessa história, é surpreendente que, como a resolução quer que seja, a oposição ao sionismo tenha sido equiparada à oposição ao judaísmo”.
Ana Maria admite que, naquele dia, estava emocionalmente alterada. Ela faz uso regular de paroxetina, um remédio para transtornos de personalidade, e teria bebido, o que pode provocar alterações fortes de humor. “Às vezes, eu fico acumulando muita coisa. O dia que aconteceu, eu já tinha acumulado muita coisa”. Ainda assim, chama a atenção, especialmente considerando a acusação de antissemitismo, que ela não se dirija uma única vez a Herta fazendo menção à etnia ou à religião judaica.
“Temos uma diferença política, não é religião, não é raça”, afirma Ana Maria. “Ela não deveria ter mexido comigo, mas eu também não devia ter aceito provocação. Quando ela me mandou as mensagens, falaram para eu fazer um B.O. Falaram para mim: ela está mal, porque a filha dela está em Gaza, não sei o quê. E eu, sendo empática, feminista, não fiz o B.O. E pela amizade de nossos filhos.”
A explicação para isso talvez esteja na trajetória política de Ana Maria e num conhecimento anterior sobre a questão palestina. Mas o que explica o xingamento de “assassina de crianças”, dirigido a uma comerciante de Arraial d’Ajuda? Ana Maria também tem uma explicação para isto. Vamos contar sua versão aqui, começando pela segunda questão.
1. Antes da loja
Na acusação contra Ana Maria, não é mencionada, pelo escritório de advocacia que acompanhou a denúncia, a discussão na tarde do dia 2 de fevereiro relatada pela chilena.
Ana Maria conta que, no momento, preferiu não reagir, porque estava com seu filho menor de idade. Mas que, depois de passar por uma celebração do dia de Iemanjá, resolveu responder a Herta, ao passar em frente à loja. A briga das vizinhas Ana Maria Leiva e Herta Breslauer acabou se tornado uma “prova” de que o antissemitismo estaria em alta no país. Ana Maria, no entanto, nega que houvesse qualquer motivação étnica ou racial para a altercação.
Herta e Ana Maria têm um elo quase familiar em comum: um dos filhos de Ana Maria, de 18 anos, era, até este episódio, colega de escola e um dos melhores amigos do filho de Herta. “O menino [filho de Herta] é uma pessoa maravilhosa”, diz Ana Maria, de maneira afetuosa e sorridente, como se lembrasse de momentos de genuína amizade. Eles chegaram a estar juntos depois do episódio, mas, segundo o relato de Ricardo Meira Campos, pai de dois dos quatro filhos de Ana Maria, hoje estão mais afastados, porque seu filho estaria muito magoado com Herta.
Ana Maria, em determinado momento da relação com Ricardo, voltou ao Chile. Numa separação amistosa, o filho ficou com o pai no Brasil, e a filha foi para o Chile com a mãe. Anos depois, a menina decidiu voltar ao Brasil, e Ana Maria retornou ao Arraial para acompanhá-la.
O filho, involuntariamente, tornou-se o motivo da briga de Herta e Ana Maria. Numa das discussões por mensagens, Herta, segundo prints enviados a Opera Mundi, afirmou que Ana Maria não teria razão para se preocupar com os destinos das crianças em Gaza porque teria abandonado o próprio filho.
Esse ataque perturbou as relações entre elas, que trocaram mensagens pouco amistosas. “No começo, tentei entender ela, porque uma filha dela estava com o Exército de Israel, em Gaza”, disse. Mas as mensagens não teriam cessado. “Aí eu disse: eu entendo que você esteja preocupada, mas não tem jeito, eu sou livre para postar o que eu quiser, assim como você é livre para postar o que você quiser”, relembra ela.
“Ela nunca abandonou filho nenhum”, disse Ricardo. “Herta disse que eu não tinha moral de falar das crianças palestinas, porque não tinha cuidado das minhas. Fiquei muito magoada com o que ela falou”, explica Ana Maria. “Mas não entendo o ódio visceral que ela tem contra mim”.
Ricardo relata que, nas conversas com Herta, disse à dona do comércio que ela começou a história, “machucando o sentimento de mãe de Ana Maria”. “Falei também para Herta que a Ana Maria nunca foi racista com o povo judeu, ela não tem nada contra os judeus, o problema da Ana Maria foi com a Herta. Se tivesse outro judeu na loja na hora que aconteceu aquilo, Ana Maria nem teria entrado lá”.
Ricardo é instrutor de parapente e conta que já deu aulas, gratuitas, para Herta. Por conta disso e da proximidade dos filhos, primeiro tentou não se envolver e, depois, tentou convencer Herta a retirar a acusação contra Ana Maria, sem sucesso. Herta enviou-lhe uma mensagem em áudio dizendo que gostaria de ver Ana Maria presa, conta. “No começo acreditei nela, depois mudei minha percepção do que estava acontecendo. Entendi a diferença entre ser contra o sionismo e ser antissemita. Ana Maria não é antissemita”.
Além de ter de responder a um processo provocado pela Herta, Ana Maria passou a receber também frequentes ameaças de morte: “e aí, sua vagabunda, filha da puta. É tu que tá ameaçando os judeus aqui no Brasil, sua filha da puta? Nós vamos te pegar na rua, nós vamos te matar, sua filha da puta. Você tá ligada, né? Nós vamos te decepar inteira. Vamos pegar tu e quem tá contigo, sua filha da puta. Tá pensando o quê, que aqui é tua terra? Miserável do caralho (…). Cê vai morrer, filha da puta, morrer!”, diz um dos áudios que recebeu. “Volta pro seu país, não queremos você aqui no Brasil sua racista”, “antissemita fdp, tem de ir para a prisão sua canalha”, pode-se ler em mensagens de texto que recebeu.
As ameaças mostram que, indiscutivelmente, a xenofobia tem um forte papel neste caso: contra Ana Maria. O fato de ser chilena colocou brasileiros na confortável posição de atacar uma estrangeira acusada de cometer um crime racial no Brasil.
2. Filho no Chile
Se o fato de ter se sentido ofendida pela afirmação de que não teria cuidado de um filho explica a fúria de Ana Maria contra Herta, um outro filho de Ana Maria mostra que sua alegação de não ser antissemita, mas antissionista, está calcada numa formação política sólida, que historicamente diferencia uma coisa da outra.
Martin, seu filho mais velho, tem 23 anos e vive no Chile. Há cinco anos não pode visitar a mãe em Arraial d’Ajuda. Uma medida cautelar o impede de deixar o país. Ele foi um dos jovens protagonistas dos recentes protestos estudantis no país. Sua companheira também não pode deixar o Chile. “Temos um advogado de direitos humanos muito bom lá. Também é advogado da resistência mapuche. Nós tempos ascendentes mapuches”, diz, com orgulho da história de resistência do povo indígena.
A própria Ana Maria se considera uma ativista política – foi militante, até o processo contra o filho, do Partido Comunista Chileno. Seus dois pais foram sindicalistas, da CUT chilena. “Sempre apoiei a causa palestina lá”. No dia 8 de março, participou de um ato do Dia das Mulheres em Arraial.
“Eu sou uma ativista política. A gente apoia a causa palestina no Chile. Jamais pensei que no Brasil tinha tanto medo do sionismo. Não temos medo no Chile de falar que somos antissionistas. Aqui foi uma coisa que extrapolou. Não faz sentido o jeito que aconteceu, como o vídeo viralizou, como falaram rapidamente que eu era antissemita”. Ana Maria disse que ficou especialmente impressionada quando Geraldo Alckmin, vice-presidente da República, tuitou sobre o caso, assumindo o discurso de que ela teria cometido um ato antissemita.
“Eu queria, nesse tempo, que ela recuasse”, diz Ana Maria sobre Herta. “Eu vou seguir morando no Arraial, sim. Eu tenho filhos brasileiros, sim. Eu fui casada com brasileiro, sim. Essa aqui é minha Pátria, também, porque sou latino-americana. Quero que ela tome consciência do que está fazendo. Mas estou vendo que não, que ela vai continuar. E ela tem uma coisa que eu não tenho: dinheiro. Lamentavelmente, o mundo se move por dinheiro. E eu não tenho. Se ela quer me esbagaçar, ela vai me esbagaçar. Se ela quer me prender, ela vai me prender.”
Apesar disso, ela diz que não vai recuar da denúncia do genocídio palestino. “Não podemos ter medo de denunciar o que está acontecendo.”
Perguntas encaminhadas para Herta Breslauer:
1) Ana Maria Leiva foi acusada de injúria racial por conta do episódio em sua loja. Em nenhum momento ela se dirige a você como judia ou equivalente, no video que você mesmo gravou. Por que seria antissemitismo e não apenas uma briga entre duas pessoas que se desentenderam por razões políticas?
2) Para você, qual a diferença entre antissionismo e antissemitismo?
3) A Ana Maria afirma que vocês estiveram juntas antes do episódio na loja. Vocês se encontraram pela manhã? Como foi essa conversa? Houve alguma altercação entre vocês?
4) O filho da Ana Maria frequentou sua casa? Como era sua relação com ele? Seu filho e o filho dela eram amigos?
5) Ana Maria afirma que recebeu ameaças de morte depois do episódio. Como você vê esse fato?
6) O que você espera do processo?
7) Em algum momento, você afirmou num áudio enviado a outra pessoa que quer ver Ana Maria presa ou deportada?