A Universidade Bicocca, localizada em Milão, na Itália, cancelou um curso livre e gratuito sobre a obra do escritor russo Fiódor Dostoiévski por conta do conflito entre Rússia e Ucrânia. Em resposta a esta decisão, o professor Paolo Nori, responsável por ministrar a aula, acusou a instituição de cometer uma “censura”.
“O que está acontecendo na Ucrânia é uma coisa horrível e eu sinto vontade de chorar só de pensar nisso”, declarou ele, acrescentando que, no entanto, “o que está acontecendo na Itália hoje é ridículo: censurar um curso é ridículo”.
Indignado, o pesquisador da obra de Dostoiévski veio à público por meio de um vídeo no Instagram informando o acontecimento e declarando que o ato se tratava de uma “censura”. O professor defendeu ainda que ser russo na Itália é uma “falha”, estando a pessoa viva ou morta, em referência a Dostoiévski. “É uma falha ser um russo que foi condenado à morte quando estava vivo em 1849 porque tinha lido uma coisa proibida”, declarou.
O escritor que viveu no século XIX na Rússia czarista foi condenado à morte em 16 de novembro de 1849 por supostamente ter lido trabalhos clandestinos de Vissarion Grigorievich Bielínski, um ensaísta e filósofo, autor da peça de teatro Dmitri Kalinin, que fazia críticas ao estado de servidão medieval pelo qual passava uma parte do país naquele momento. A pena, no entanto, não foi consumada.
A repercussão do caso e a solidariedade dedicada a Nori nas redes sociais fez com que a universidade voltasse atrás. Em comunicado, a instituição disse que “está aberta ao diálogo e à escuta, mesmo neste período muito difícil marcado pela escalada do conflito” entre Rússia e Ucrânia e afirmou que o curso, intitulado “Entre a escrita”, cujo objetivo é “desenvolver competências transversais através das formas de escrever”, está mantido. Além disso, diz o texto, o reitor da Universidade se reunirá com Paolo Nori na próxima semana “para um momento de reflexão”.
A ministra italiana para Universidade e Pesquisa, Maria Cristina Messa, declarou que fez contato com o professor e com a instituição universitária, tendo ficado satisfeita, segundo ela, com a decisão pela realização do curso. “Dostoiévski é um patrimônio inestimável e a cultura continua sendo um terreno livre para troca e enriquecimento”, disse Messa.
À agência italiana Ansa, o professor esclareceu que precisa pensar se ainda vai ministrar o curso. “Não sei se quero ir a uma universidade que pensou que Dostoiévski fosse algo que gere tensão”, afirmou. Nori disse ainda que o problema não são os encontros sobre Dostoiévski, mas sim a russofobia.
Isso porque outras situações semelhantes ocorreram. Em Gênova, o Teatro Govi cancelou um festival de música e literatura russa que homenagearia Dostoiévski pelos 200 anos de seu nascimento. A instituição cultural alega que a decisão se deve ao fato de o evento ter sido patrocinado pelo Consulado da Rússia na cidade.
“Sentimo-nos no dever de renunciar [ao evento] para marcar nossa posição. O Teatro Govi é um lugar de cultura, paz e esperança e que não quer se abrir a quem prefere as bombas às palavras”, diz um comunicado oficial.
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Fiódor Dostoiévski, escritor russo do século XIX, é considerado um dos maiores romancistas da História
Já o prefeito de Florença, Dario Nardella, disse ter recebido pedidos para derrubar uma estátua de Dostoiévski na cidade, doada pela embaixada russa por ocasião do bicentenário do nascimento do escritor russo. Ele opinou, no entanto, ser necessário pensar em “como parar Putin” ao invés de “apagar séculos de cultura russa”.
Quem foi Fiódor Dostoiévski
Fiódor Mikhailovitch Dostoiévski, nascido em Moscou, 11 de novembro de 1821, é um dos maiores nomes da literatura russa, considerado também um dos maiores romancistas da História. Entre suas obras mais famosas estão Crime e Castigo, O Idiota e Os Irmãos Karamazov.
Com formação acadêmica em engenharia, o russo, que viveu no século XIX, dedicou sua vida integralmente aos textos, tendo produzido romances, novelas, contos, bem como escritos jornalísticos. Os temas que aparecem com frequência em suas obras são o sofrimento, a culpa, o cristianismo, o niilismo, a pobreza, a violência, o assassinato, o isolamento, o suicídio e tantos outros.
No ano de 1849 foi preso acusado de conspirar contra o czar Nicolau I, por participar de um grupo de discussão literária chamado de Círculo Petrashevski, composto, embora não integralmente, por revolucionários. Naquele contexto, outros países da Europa borbulhavam em ondas de protestos contra governos autocráticos, no que ficou conhecido como Primavera dos Povos.
Ele passou oito meses detido na Fortaleza de São Pedro e São Paulo, em São Petersburgo, aguardando o desenrolar do processo. Meses após sua prisão, foi condenado à pena de morte por fuzilamento, mas teve a penalidade perdoada, sendo posteriormente condenado a alguns anos de trabalhos forçados na Sibéria.
Conflito Rússia-Ucrânia
O conflito entre Rússia e Ucrânia registrou uma escalada de tensão quando uma ofensiva militar russa foi deflagrada no dia 24 de fevereiro. O presidente da Rússia Vladimir Putin justificou o ataque como uma medida para “desmilitarizar” e “desnazificar” o país vizinho.
Ele havia reconhecido a independência das regiões de Donbass, na Ucrânia, alguns dias antes, em 21 de fevereiro. As cidades separatistas da região, Donetsk e Lugansk estavam fora da administração de Kiev desde 2014, depois que um referendo popular optou pela independência. Em resposta ao reconhecimento da independência de tais regiões, o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, anunciou um pacote de sanções contra a Rússia.
Putin, por sua vez, afirmando uma defesa contra provocações por parte de Kiev e contra a expansão da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) sobre países do leste europeu, anunciou a operação na Ucrânia. Durante seu discurso, o mandatário solicitou ao povo russo que atue junto à região separatista Donbass, cuja população pediu, segundo ele, “ajuda à Rússia”.
Ele disse também que toda a responsabilidade pelo conflito recairá sobre o governo da Ucrânia, e instou os militares ucranianos a não cumprir as “ordens criminosas” das autoridades do país, entregar as armas e regressar para casa.
(*) Com Ansa.