Poeta, pensador, militante e revolucionário é as diversas formas para se referir a José Martí, o “Apóstolo da Independência de Cuba”. Neste sábado (28/01), é celebrado o 170º aniversário do “maior farol do povo cubano”, como afirmou o doutor em estudos literários Luiz Ricardo Leitão.
Para ele, Martí, além de poeta e pensador, é uma “referência única para todos os combatentes da luta anti-imperialista na América Latina”. Opera Mundi conversou com Leitão, que lança em fevereiro, junto com a editora Expressão Popular, o livro José Martí – Antologia com textos e poesias do cubano.
A obra é dividida em prosa com os textos: Nossa América (1891); A verdade sobre os Estados Unidos (1894); e Carta a Manuel Mercado (1895). A segunda seção, dedicada à poesia, agrupa versos publicados em Ismaelillo (1881), Versos Livres (1882) e Versos Simples (1891).
“Busquei três textos que os próprios cubanos julgam essenciais para se compreender o pensamento e a prédica do 'Apóstolo'. Na lírica, recapitulamos poemas expressivos de três obras seminais do escritor. Desde as odes de amor ao filho no primeiro trabalho, até a dicção mais contundente dos dois últimos”, disse.
Segundo o organizador, que estudou na Universidade de Havana, em Cuba, conhecer a história e obra de Martí é compreender a “essência do pensamento político e filosófico” do cubano, bem como na poesia do revolucionário conhecer o “espírito de sua época em novas formas de expressão poética”.
Martí é um dos principais pensadores da América Latina no Século XIX. Seus textos e poesias retratam o olhar e a identificação do militante como cubano na Espanha e nos Estados Unidos, em um período de lutas pela independência na América Latina
Leitão destaca ainda a postura “absolutamente admirável” anti-imperialista de Martí, na qual, duas décadas antes de Vladimir Lênin, já descrevia o “caráter expansionista e monopolista do poderoso vizinho do Norte”.
“Ao longo da segunda etapa da luta pela Independência, ele alertou seus pares sobre esse perverso papel que os Estados Unidos conferiram a si próprios no continente – e tratou de postular a posição mais radical e contundente contra a voracidade da jovem potência em formação”, afirmou.
Confira a entrevista na íntegra:
Opera Mundi: Não tem como iniciar esta conversa sem falarmos o que José Martí representa para a ala progressista latino-americana. Quem foi esse pensador e militante cubano?
Luiz Ricardo Leitão: José Martí é não apenas um notável poeta e prosador, como também o legítimo 'Apóstolo da Independência de Cuba', alinhando-se desde o princípio da luta revolucionária com as forças que postulavam a soberania plena do povo cubano – seja contra a metrópole europeia, seja contra o nascente império norte-americano. Após o fim da 'Guerra dos Dez Anos' (1868-1878), primeiro levante contra o jugo espanhol, ele idealiza a criação do Partido Revolucionário Cubano, arregimentando seus pares para a II Guerra de Independência, deflagrada em 1895, na qual ele próprio morreu em pleno campo de batalha.
Seu exemplo ímpar de combatividade e firmeza ideológica faz com que Martí seja considerado por Fidel, em seu julgamento após o assalto ao Quartel Moncada, em 1953, o verdadeiro 'mentor' da ousada ação insurgente que marca o início da vitoriosa Revolução Cubana de 1959. Por isso, há mais de um século, Martí é o maior farol do povo cubano e, por certo, uma referência única para todos os combatentes da luta anti-imperialista na América Latina. Cultivemos essa luz e despertemos em nós a imaginação libertadora; afinal, 'trincheiras de ideias valem mais do que trincheiras de pedras'.
O livro resgata textos e poesias de Martí. Com esses escritos, é possível conhecer mais do pensador e compreender seu pensamento?
Sem dúvida. Com os três textos em prosa, entendemos a essência do pensamento político e filosófico de José Martí, sobretudo com Nossa América e A Verdade sobre os Estados Unidos, em que ele delineia um projeto de soberania nacional a partir dos valores “criollos” construídos pelo povo cubano e disseca, com rara clarividência, o caráter expansionista do poderoso vizinho do Norte, em cujas próprias entranhas ele viveu por alguns anos. Em última instância, ele desmonta o discurso liberal preconizado pelo argentino Domingo Faustino Sarmiento, enunciando de forma contundente que 'não há batalha entre a civilização e a barbárie, mas sim entre a falsa erudição e a natureza'.
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Neste sábado (28/01), é celebrado o 170º aniversário de José Martí, principais pensadores da América Latina no Século XIX
Já a poesia nos mostra múltiplas facetas do escritor, todas elas marcadas por uma comunhão extraordinária entre poesia e forma. Valendo-se de variadas métricas e ritmos, Martí buscou verter o espírito de sua época em novas formas de expressão poética. É maravilhoso, por exemplo, ouvir seus versos eternizados em canções como 'Guantanamera', um ícone musical de Cuba, ou nas vozes das crianças cubanas, que leem e recitam seus poemas nas atividades escolares com calorosa e sincera alegria, como minha própria filha fez em 1999, quando eu morava e trabalhava na ilha.
Martí anteviu os perigos da expansão imperialista norte-americana na região, uma expansão que trouxe diversas consequências. Como utilizar o pensador para debater a hegemonia dos Estados Unidos? E mais, como os escritos de Martí podem nos posicionar na defesa anti-imperialista?
É absolutamente admirável que, mais de duas décadas antes de Lênin escrever Imperialismo, estágio superior do capitalismo, Martí já lograsse descrever, com enorme clareza, o caráter expansionista e monopolista do poderoso vizinho do Norte, cujos governantes, ao longo do Século XIX, sempre predicaram que Cuba era uma 'fruta madura' que deveria cair no quintal de Tio Sam. Ao longo da segunda etapa da luta pela Independência, ele alertou seus pares sobre esse perverso papel que os Estados Unidos conferiram a si próprios no continente – e tratou de postular a posição mais radical e contundente contra a voracidade da jovem potência em formação.
Não por acaso, na Carta a Manuel Mercado, o último documento que ele escreveu, já na véspera de sua morte em combate, Martí enunciou: 'a guerra de Cuba, realidade superior aos vagos e dispersos desejos dos cubanos e espanhóis anexionistas, para os quais sua aliança com o governo da Espanha só iria dar um poder relativo, surgiu na América no momento certo, para evitar, mesmo contra o emprego de todas essas forças, a anexação de Cuba aos Estados Unidos'. Em suma, para ser bem sucinto, nosso posicionamento na luta anti-imperialista jamais poderá esquecer o aforismo lapidar do 'Apóstolo', exaltando o nacional e desdenhando das fórmulas importadas: 'a salvação está em criar. Criar é a palavra-chave desta geração. O vinho é de banana; e, mesmo se sair azedo, é o nosso vinho!'
Na apresentação do livro você comenta sobre um 'arraigado sentimento anti-imperialista e de uma profunda consciência nacional' dos cubanos, que os latino-americanos, incluindo os brasileiros, não têm. Na sua avaliação, por que há essa diferença? A falta de conhecimento sobre o próprio Martí fez com que aumentasse essa diferença?
Não há dúvida de que a consciência nacional e o sentimento anti-imperialista só podem surgir de um processo de lutas populares por independência e soberania. Onde não houve combate, eles não florescem. Cuba é um antípoda do Brasil: lá, tudo se conquistou com muita organização, sangue e suor; aqui, a Independência foi uma encenação da Corte radicada no país, sob tutela inglesa, e a República foi uma cavalgada militar no Campo de Santana. Como prosperar numa terra em que 'mudamos para não mudar'?
Na América Hispânica, por sinal, mesmo fora de Cuba, há um sentimento mais vivo de autonomia e repulsa às metrópoles, sejam elas Espanha, Inglaterra ou Estados Unidos. Veja agora, na Copa do Mundo, o 'hino' cantado pela torcida argentina, que faz alusão aos jovens mortos na estúpida Guerra das Malvinas. Quem criaria uma canção dessas em um país que anistiou seus torturadores e varreu os crimes da ditadura para debaixo do tapete da História?
Gostaria que comentasse também sobre as escolhas dos textos que compõem a antologia que será lançada pela Expressão Popular. Como foi esse processo de escolha?
Este organizador buscou, na prosa, três textos que os próprios cubanos julgam essenciais para se compreender o pensamento e a prédica do 'Apóstolo'. Não por acaso, ali estão os aforismos que se tornaram emblemáticos em Cuba e na América Latina, sendo inclusive divulgados nas campanhas de propaganda revolucionária do regime durante os duríssimos anos do 'Período Especial' no país, após a queda do Muro de Berlim.
Na lírica, recapitulamos poemas expressivos de três obras seminais do escritor: Ismaelillo (1882), Versos Livres (1882) e Versos Simples (1891). Desde as odes de amor ao filho no primeiro trabalho, até a dicção mais contundente dos dois últimos. Conforme escrevi na Introdução do volume, Martí 'converte os versos em lâminas afiadas que, banhadas com o próprio sangue do poeta, cortam os tempos aziagos de Cuba com o vigor, a experiência e a determinação de um mambí empenhado na libertação de sua terra e seus compatriotas'.
Neste sábado (28/01), o Memorial da América Latina de São Paulo inaugura um busto de Martí, na celebração do 170º aniversário do pensador cubano. Quão significativa é essa iniciativa?
Absolutamente exemplar. Oxalá estejamos a retomar aquela onda latino-americanista que se espraiou nos Anos 60/70 nas canções da Tropicália, de Chico Buarque, Milton Nascimento, Belchior e tantos outros gênios da MPB, quando éramos todos apenas rapazes e moças latino-americanos, 'sem dinheiro no bolso, sem parentes importantes' e vindos do interior. Tempos em que Mercedes Sosa, Víctor Jara, Violeta Parra, Pablo Milanés, Silvio Rodríguez e seus pares embalavam nossa luta contra as ditaduras e nos sussurravam, com sua música e poesia, que resistir era não só necessário, mas também possível.