“Quando qualquer corpo negro de algum país que tenha passado pela escravidão chega em algum lugar, esse corpo é um documento, é história por si só”, define Ana Maria Gonçalves, autora da obra Um defeito de cor (Editora Record), sobre o termo “corpo-documento”, base de seu trabalho no romance que, pela ficção, explica a realidade do período pós-escravocrata no Brasil.
A afirmação de Gonçalves sobre o livro Um defeito de cor foi feita em entrevista ao programa 20 MINUTOS do canal Opera Mundi no YouTube, nesta segunda-feira (29/04), em uma das últimas conversas que a escritora deve ter com a imprensa antes de partir para seu próximo projeto literário, segundo adiantado por sua assessoria.
Como uma obra que possibilita a compreensão do Brasil em sua história e atualidade, Um defeito de cor foi lançado originalmente em 2006. Vencedor do prêmio Casa de Las Americas em 2007, e transformado em enredo de carnaval neste 2024, o livro conta a História do Brasil a partir da vida de Kehinde, personagem inspirada na líder revolucionária Luísa Mahin, organizadora da Revolta dos Malês e da Sabinada.
Sequestrada do Reino de Daomé e escravizada na Bahia, Kehinde vive o século 19, consegue se alforriar já adulta, e retorna ao seu país de origem. No entanto, quando mais velha, refaz a travessia do Atlântico, mas dessa vez em busca de um filho perdido no Brasil.
Reconhecendo a falta de documentos históricos do Brasil escravagista ao mencionar a queima de registros de posses de escravos por Ruy Barbosa, Gonçalves escreve no prólogo de sua obra que manuscritos sobre a época são encontrados em todos os corpos negros.
O relato da existência do corpo é relevante para o enredo da obra de Gonçalves por inspirar a personagem Kehinde em Luísa Mahin, personagem histórica que supostamente é a mãe do advogado e abolicionista brasileiro Luiz Gama. Na obra, Kehinde volta ao Brasil então em busca de quem na realidade seria Gama.
“Estamos acostumados a duvidar da palavra, da existência ou mesmo do corpo-documento das pessoas negras no Brasil. Eu não tenho porque desacreditar quando o próprio filho falou ‘minha mãe existiu, minha mãe é essa’. Então os documentos são esses corpos e a palavra de um homem negro que eu não tenho o porquê duvidar”, pontua.
Reconhecendo a temática tangente de identidade presente na obra, não só da genealogia de uma família negra no século XIX, mas da sua própria história, Gonçalves acredita que “o livro permite que as pessoas encontrem nelas coisas que elas ainda não tinham encontrado”.
“O livro nasceu da minha curiosidade de entender melhor a história, me entender como mulher negra no Brasil, de onde venho, e pelo que meus ancestrais passaram para que eu pudesse chegar aqui. E essa história está na Bahia”, declara.
Citando a escritora negra norte-americana Toni Morrison, Gonçalves, autora da obra resume seu livro, considerado pela Folha de S. Paulo como um dos escritos mais importantes para entender o Brasil pós-escravidão, como “o livro que ela queria ter lido, mas não encontrou”.
Veja mais trechos da entrevista de Ana Maria Gonçalves a Pedro Marin:
Por que a história se passa na Bahia e aborda a Revolução dos Malês?
“A Revolução dos Malês é uma história que me interessa porque é uma historia do Brasil que ninguém havia contado. Sabemos da Guerra de Constantinopla e do Peloponeso, mas as que aconteceram aqui e foram muito mais importantes para a história do país, não estudamos. A história para eu me entender melhor está na Bahia, onde o livro se passa”.
Alfabetização como ferramenta política
“É uma história orquestrada, exatamente para que a gente não tenha como contar com a devida contribuição dessa grande parte da população negra que fez o Brasil hoje. Existiam leis que proibiam as pessoas negras de serem alfabetizadas, inclusive punindo donos que deixassem seus escravos serem alfabetizados”.
Literatura negra e o nicho da produção de autores negros
“É devastador pensar nesses números [Gonçalves foi a oitava mulher negra a publicar um romance por uma editora reconhecida do Brasil, sendo a primeira Maria Firmina dos Reis, em 1859; se considerarmos oito mulheres desde então, até 2006, significa um romance a cada 18 anos]. Melhorou um pouco, mas ainda é devastador e isso tem muito a ver com a indústria do livro no Brasil, que continua sendo extremamente elitista”.
Um defeito de cor como enredo da Portela
“Estamos falando de uma escola de samba. Me lembro de muitos assuntos dos quais fui me inteirar a partir de enredos de escolas de samba. Precisamos dar a devida importância para essa instituição, que está ali dentro das comunidades, que é majoritariamente formada por pessoas negras, a partir de um ritmo, o samba, que é negro, que para mim, é a grande descrição do Brasil no mundo”.