Se vejo um amigo sorrindo, a impressão é de que não vai morrer nunca, de que a palavra “definitivo” simplesmente não existe, de que o abraço anterior não será o último, como no poema de Augusto Frederico Schmidt que diz: “Todos estes que estão no cinema agora / neste cinema alegre / um dia hão de morrer também / nos cabides das roupas dos mortos penderão tristemente.”
Todo mundo que a gente vê pelas ruas, homem ou mulher, pobre ou rico, bonito ou feio — um dia vai morrer.
E Márcia Denser morreu! Nunca mais a veremos, jamais falaremos com ela outra fez, é definitivo, pronto, acabou-se. It’s all over now, Baby Blue, dizia uma canção antiga do Bob Dylan.
Foi na Folha de S. Paulo, acho que em 2015, numa coluna da psicanalista Betty Milan, que ouvi falar pela primeira vez da Márcia Denser.
Quem era Marcia Denser? O que ela escrevia? Fui atrás. Na época, no extinto Portal Releituras, que eu simplesmente adorava, li os contos Animal dos motéis, Hells Angels, O Vampiro da Alamenta Casablanca. Soltei logo um “Puta que pariu!”
Mas o que mais me impactou mesmo, me deixando de queixo caído, foi Um pingo de sensibilidade. Não resisti e fui ao Facebook dela: “Márcia, o conto é seu mesmo?” Ao que ela confirmou: “Oi, Leandro. O conto é meu sim e está em Diana Caçadora.
Cacete. As personagens da Márcia saíam atrás dos homens, caçavam, enjoavam deles, trepavam e simplesmente jogavam fora — piedade é uma palavra totalmente fora da ficção da La Denser.
E, tão logo li os contos, falei de mim para mim mesmo que iria até São Paulo fazer oficina com ela. Se eu estava louco? Estava sim, mas, quer saber? Foda-se.
Márcia ficou sem acreditar: “Leandro, mas você não mora em Minas, Baby?” Eu disse que iria assim mesmo. Na época eu fazia Letras. Saía da faculdade sexta-feira à noite, passava o fim de semana lá, voltava na segunda-feira e, na semana seguinte, repetia tudo.
Tudo era uma loucura. Quando cheguei a primeira vez na Editora Alameda, na Bela Vista, a escritora me deu os braços e falou assim: “Agora vamos ali buscar o bandido”. Fomos, de braços dados, no bar da esquina comprar uma garrafa de Voodka. Os outros escritores compravam cerveja, água, cachaça. A gente bebia e escrevia ao mesmo tempo.
Depois de cada oficina literária, sempre tinha um bar para a gente beber e conversar. Certa vez, na Praça Roosevelt, com a Márcia, o Edson Valente e o Marcelo Mirisola a discussão era o Noites Lebloninas, póstumo do João Ubaldo Ribeiro. Que o Mirisola detestava e eu adorava. Depois a La Denser disse que o João Antônio, autor de Malagueta, Perus e Bacanaço, bebia com ela e a levava para casa quando todos se embriagavam.
Foi ela quem me apresentou os contos de Agnaldo Silva; A chuva, de Somerset Maugham; Todos os fogos o fogo, Julio Cortázar; Fátima fez os pés para mostrar na choperia, do Mirisola.
De vez em quando, ela dizia quando a gente estava num táxi a caminho da casa dela ou no carro do Edson Valente: “Leandro, eu te quero muito bem”. Os olhos dela me ofereciam uma amizade e um amor muito profundo. “Leandro, a gente tem uma história”, “Leandro, eu amo você.”
Ali descobri com ela que escrever contos é das coisas mais difícieis do mundo. Não é fácil entrar no terreno de Clarice Lispector, JD Salinger, Guimarães Rosa, Machado de Assis e Julio Cortázar.
Ela ria tanto quando eu saía da oficina e ia direto para as boates da Rua Augusta ou a boate Kilt, na Nestor Pestana. “Leandro, às vezes dá até uma vontade de ir lá com você”. Eu ria: “Você tem coragem, Márcia?” Ela era decisiva: “Não.”
As ruas da Avenida Rebouças, a Oscar Freire, o hostel que não existe mais nos jardins, o bairro da Liberdade. Tudo é muito vivo. Ali a vida pulsava junto com a literatura.
Márcia Denser existem muitas. Primeiro, a erótica de Tango fantasma, Diana caçadora, Animal dos motéis; depois, a maturidade de Caim, Toda prosa I, Toda prosa II. A primeira fase, uma jovem bela e desafiadora; na segunda fase, uma mulher sábia e uma poética triste.
O que eu ouvi de podres e histórias engraçadas dos escritores do meu Brasil é incontável.
Minha felicidade foi ouvir dela que eu era um ótimo cronista. Incontáveis conversas sobre Rachel de Queiroz, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Eneida de Moraes e Otto Lara Resende.
De repente, abro meu Facebook e leio o seguinte: “Comunicamos aos amigos, fãs e admiradores da grande escritora Márcia Denser, o seu falecimento. Momento de grande dor na família. Ela foi em paz.”
Márcia não foi apenas uma paixão literária, foi minha amiga.
Quando veio a Belo Horizonte, saindo do Otton Palace para uma palestra no Centro Cultural da Juventude, na Praça da Estação, peguei uma vã com ela e o escritor Michel Laub e ela puxava minha orelha quando eu disse que iria num show do Culture Club em São Paulo: “Leandro, isso é coisa de coxinha que fica gastando dinheiro e achando lindo.”
Gostaria de ter convivido mais com ela não como escritora apenas, mas como amiga. Queria ter desabafado mais com ela sobre coisas da vida, sobre o amor, carreira, família. Entre outras coisas. Afinal, a escrita dela vem de uma bagagem de vida exuberante e não apenas dos livros.
Au revoir, La Denser.
Nós te amamos.