Temos testemunhado nos últimos anos a erupção dos Grandes Protestos: primeiro, em 2011, em países desenvolvidos como Estados Unidos, Inglaterra, Espanha, Itália; começando quase simultaneamente, mas perdurando mais no tempo, vieram as chamadas primaveras árabes, na Tunísia, Turquia, Líbia, Egito, Síria; regressando a Europa com a Ucrânia e alcançando, finalmente, a América Latina em 2013/2014, no Chile, no Brasil e, agora, na Venezuela. Em linhas gerais, há três chaves analíticas para a compreensão do fenômeno das massas nas ruas.
Primeiro, há a perspectiva apocalíptica, que se trata de uma linha de pensamento persistente, que tem como precursor o filósofo Ortega y Gasset. Ele já previa isso ao fim do século XIX: o século nascente seria o começo da era do domínio avassalador das massas. A ascensão do nazi-fascismo e as revoluções socialistas lhe deram razão. Mais contemporaneamente, para o francês Jean Baudrillard, se trataria do despojamento da máscara democrática: já não haveria cidadão, tão somente a Massa, destruidora da política como um rolo compressor. Essas maiorias silenciosas, quando em ação, colocariam o cidadão na sombra. Imbuídos desse espírito, os adeptos da perspectiva apocalíptica, na esquerda e na direita, veem na massa uma grande ameaça. Pela direita [democrática, que recusa ditaduras e golpes], advogam a ordem, cristalizada em um estado democrático de direito idealizado, bem como nas noções liberais de representação, accountability, responsividade, políticas públicas adequadas [emanadas do estado de cima para baixo, ainda que minimamente participativas] e cidadãos potencialmente satisfeitos com os outputs do sistema político. Pela esquerda [democrática, não imediatamente revolucionária], advogam movimentos sociais organizados, com lideranças claras e reconhecidas, estruturas hierárquicas consolidadas, articulados com o Estado, mobilizadores de suas bases concretas e específicas, mas não de toda a massa desorganizada (a ralé estrutural, o lumpen). Para ambos, a ordem seria a resposta para evitar o caos representado pela emergência das massas desorganizadas.
Agência Efe
Segundo, há a perspectiva deslumbrada. Na direita ou na esquerda, há os que veem na tomada das ruas pelas massas um sinal de redenção. Para ambos, a ordem existente é, ela mesma, uma desordem, da qual somente a transformação das maiorias silenciosas em massa desperta e atuante poderia evitar o caminhar rumo ao precipício. À direita, busca-se a mobilização das massas para desfazer-se de governos considerados esquerdistas ou falidos (às vezes ambos simultaneamente), seja na Venezuela (contra a suposta “ditadura castro-comunista” do chavismo), no Brasil (com “O Gigante Acordou” contra o suposto Mal do petismo na estrutura do Estado) ou na Ucrânia (com a extrema direita mobilizando sentimentos ultra-nacionalistas e xenófobos). À esquerda, principalmente de base marxista ou socialista, se apresenta a tendência de ovacionar a massa porque, com o fim da União Soviética e da Alemanha Oriental, houve o declínio das vanguardas de estilo leninista e restou a saída lógica de apoiar as massas sempre que estas tomam as ruas, dado que seriam estas a representação das maiorias silenciosas e, logo, do povo. O “si hay gobierno soy contra” se transformou em “si hay protesta soy a favor”. O coquetel molotov seria o grande símbolo da resistência popular contra a ordem opressora, qualquer que seja ela. Quando as massas tomam as ruas em grandes protestos contra os governos, parte considerável dessa esquerda apresenta uma tendência a celebração automática. Para essa linha de avaliação, se há massas nas ruas, é preciso apoia-las e quem se posiciona contra elas não poderia ser considerado de esquerda. É como se a tomada das ruas pelas massas apresentasse um sentido catártico, redentor, que deslumbra aqueles que as reificam. No Brasil, uma corrente marxista celebrou os nazis derrubando o governo da Ucrânia; na pressa de apoiar os protestos, esqueceu-se de averiguar quem protestava e porquê o fazia.
Por isso, proponho a perspectiva realista. Como as demais, esta serve tanto a esquerda como a direita, dado que é tão somente uma ferramenta útil para identificar a massa específica sublevada e em ação e, portanto, para definir se deve ou não ser apoiada a partir da chave de identificação adotada – esquerda ou direita. Para a perspectiva realista, é o conteúdo (agenda/pauta) e não a forma (protesto/ enfrentamento com polícia) o que deve orientar o posicionamento político. Em determinadas circunstâncias históricas – estruturais e conjunturais – devido a falta de hegemonia da esquerda frente às massas, estas podem sublevar-se dirigidas por forças reacionárias (ainda que sem o saber ou pensando recusar toda direção). A história do nazi-fascismo mais uma vez é paradigmática. Em momentos assim, cabe a esquerda posicionar-se, paradoxalmente, contra as massas, mas sendo, na verdade, contra os líderes reacionários destas. Se as massas nas ruas adotam, em algum momento, um posicionamento de direita, como o discurso da Rede Globo (nos protestos de junho de 2013 no Brasil) ou a agenda do governo norte-americano (nos protestos em curso na Venezuela), o posicionamento de esquerda, por sua vez, seria de opor-se, total ou parcialmente, a elas, mas buscando construir a hegemonia necessária para, no futuro, vir a dirigi-las. À Globo ou ao governo norte-americano, por sua vez, cabe apoia-las enquanto elas seguirem sua liderança – direta ou indireta. No fim das contas, as massas são ferramentas politicamente flexíveis que, devido a sua desorganização, podem ser dirigidas pela esquerda ou pela direita, a depender da condição e construção históricas específicas.
Tomando como exemplos os casos do Brasil e da Venezuela e excluindo-se os grupos minoritários em ambos os países, pouco representativos e com pouca capacidade de direção, com o objetivo de identificar a centralidade discursiva e narrativa, temos, como resumo simplificado da hegemonia dos protestos:
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Na Venezuela:
(a) manifestantes vão às ruas, protestam por uma causa justa (altos índices de homicídio e tentativa de estupro de uma estudante em um estado de fronteira);
(b) são reprimidos pela polícia;
(c) passam a protestar contra o abuso policial;
(d) afirmam que essa polícia responde diretamente ao presidente e que portanto o país é uma ditadura;
(e) pedem a saída do presidente eleito, acrescentam a pauta da expulsão de cubanos e advogam a intervenção de organizações internacionais (OEA) ou de potências estrangeiras (sanções dos Estados Unidos).
No Brasil:
(a) manifestantes vão às ruas, protestam por uma causa justa (direito à moradia ou ao transporte público gratuito);
(b) são reprimidos pela polícia;
(c) seguem protestando pela causa original, mas acrescentando a causa do repúdio à violência policial;
(d) consideram que a violência policial demonstra a orientação de classe dessa polícia (contra os mais pobres), bem como a insuficiência da democracia e do estado de direito no país, que ainda não alcançou parte expressiva da população;
(e) enfim, reconhecem o Brasil como democracia, mas imperfeita e insuficiente, e a presidenta eleita como legítima, ainda que discordando dela.
É no ponto “D”, portanto, que se encontra a decisão política. No caso da Venezuela, uma causa justa original pôde ser apropriada ou desvirtuada por uma liderança (radical e de direita) que passou a ser hegemônica nos protestos, levando, inclusive, à divisão do campo opositor. Grupos minoritários da oposição no país, inclusive auto-identificados com a esquerda ou centro-esquerda, não pactuam ou não pactuaram com a agenda maximalista da direita que passou a ser hegemônica. Mas são minoria, não lideram e não são alternativa de governo. Se o presidente eleito Nicolás Maduro caísse, não seriam os pequenos grupos anarquistas que assumiriam o poder (por motivos óbvios) ou mesmo líderes de organizações legítimas da sociedade civil, mas sim aqueles que despontaram como grandes líderes reconhecidos pela massa, como os direitistas Leopoldo Lopez e Maria Corina Machado ou, talvez, o líder mais moderado Henrique Capriles. Em qualquer caso, a queda do presidente eleito devido a movimentos radicalizados pela direita tenderia a forçar um possível governo de facto e de transição a suspender a ordem constitucional e a dar espaço aos líderes mais reacionários na nova cúpula do poder.
Os erros do governo chavista na condução política da reação (em termos institucionais e de repressão) não desfazem o fato de que, tanto na direita quanto na esquerda, é preciso analisar a realidade dada e tomar uma posição, ainda que tática: apoiar ou criticar esses protestos específicos na Venezuela? Ademais, a própria ideia de que o movimento é massivo é questionável, dado que se trata de uma massa seleta (classes médias e estudantes de universidades de ponta) que só ganhou a visibilidade como massa (suposta maioria absoluta) devido ao apoio dos grandes meios internacionais de comunicação. Não há a participação das grandes massas populares, estas sim maiorias absolutas, que repudiam os protestos devido à violência dos manifestantes (uso de coquetéis molotov, bazucas improvisadas, barricadas, etc.).
No caso do Brasil, a agenda justa original dos protestos de junho de 2013 (transporte público gratuito) foi tensionada quando as massas mais amplas e heterogêneas tomaram as ruas. Nesse ponto, os protestos contaram com apoio inesperado da grande mídia que lhe cedeu legitimidade (eram manifestantes e não vândalos), agenda (contra a corrupção “desse” governo, isto é, do PT) e até palavras de ordem (“O Gigante acordou”). No auge dos protestos massivos, havia massa de esquerda (isto é, liderada pelos movimentos de esquerda) e massa de direita (isto é, liderada pelos meios de comunicação). Foi a persistência da esquerda na luta (com destaque para o Movimento Passe Livre e a Mídia Ninja) e o claro desconforto dos grandes meios de comunicação com massas instáveis (úteis taticamente para desgastar um governo semi-hostil, mas ainda assim imprevisíveis, como quando hostilizavam os seus jornalistas) os elementos que culminaram na retirada do apoio de direita às massas, transformadas, de repente, em vândalos Black Bloc.
Agência Efe
Na disputa por hegemonia das massas, a esquerda (não partidária e não governamental) ganhou nos protestos de junho no Brasil e a direita (partidos e movimentos radicais do anti-chavismo) ganhou nos protestos em curso na Venezuela. Apoiar um lado ou outro dependerá da identidade política de cada ator. Os resultados poderiam haver sido diferentes, mas uma vez que o resultado da disputa hegemônica pelo sentido histórico dos protestos é mais ou menos consolidado, cabe aos atores políticos revisar sua postura em relação ao apoio/crítica a eles.
Na Venezuela, a polarização extrema não permite que as nuances de um lado ou de outro (do chavismo e do anti-chavismo) apareçam com muita força. É como a aposta all-in de um jogo de pôquer: o ganhador da disputa por hegemonia leva tudo. Se Maria Corina Machado é a principal porta-voz e Leopoldo Lopez o principal símbolo dos protestos, os anarquistas ou a centro-esquerda que também protestam contra o chavismo são simplesmente relegados ao plano da insignificância política.
No Brasil, a situação é mais complexa porque há um governo de centro-esquerda no poder do Estado há doze anos, nucleado por um partido que ainda se identifica como esquerda (o PT), que é alvo tanto da direita (grande mídia, PSDB) como da esquerda não partidária organizada em novos movimentos sociais. Se esses movimentos sociais – independentes de tutela partidária – vão usar a oportunidade política trazida pela realização da Copa do Mundo para dar visibilidade às suas demandas, isso não significa que devam ser “enxotados como vira-latas”. Movimentos sociais são oportunistas por definição (oportunidades políticas): não tendo nada a perder, “a não ser os seus grilhões”, buscarão taticamente aproveitar-se do momento. Obviamente, o outro ator, a grande mídia e a oposição partidária, buscarão usar a ação dos movimentos para criar a ideia de caos em ano eleitoral. Haverá inevitavelmente, portanto, guerra discursiva. Cabe a um governo minimamente de centro-esquerda compreender a agenda desses movimentos sociais populares e de esquerda (como os sem-teto e sem-terra), negociar e evitar o uso extensivo e intensivo da repressão.
Se o governo responde às demandas justas emanadas de baixo, no Brasil ou na Venezuela, independentemente da posterior manipulação dessas demandas, a tática e a legitimidade da oposição de direita tendem a se esgotar. Afinal, é isso que se espera de governos populares: respostas às legítimas demandas dos de baixo. Repressão policial não é resposta definitiva nem em um caso nem em outro; apenas posterga a solução e torna inevitável a eclosão de novas erupções da massa volátil em um futuro indefinido.