Quem me conhece minimamente sabe o quanto eu gosto de acompanhar as temporadas de premiação da indústria do entretenimento dos EUA. É algo que faz parte do meu calendário desde pequena e com o passar dos anos tem tomado muito espaço por conta das movimentações da indústria do entretenimento frente as políticas xenofóbicas de Donald Trump, das manifestações de mulheres e da negritude sobre falta de representatividade e diversidade nas premiações, mesmo com uma crescente produção de bons filmes que envolvem em seu feitio mulheres e negros pra além dos espaços de atuação e afins. Há um interesse da indústria frente ao processo que vemos também eclodir nas ruas e na política? Sim, mas não irei me deter nisso nesse post.
Neste Oscar de 2019 tivemos momentos épicos que são expressões do que tem significado a diversidade nas produções do entretenimento de Hollywood. “Pantera Negra” continuou a fazer história, os dois prêmios que levou na noite foram entregues pela primeira vez a mulheres negras e consolida essa produção como importante expoente cultural dos debates sobre representatividade.
Mas para além de “Pantera Negra”, tivemos reconhecimento importante do mais novo filme de Barry Jenkins, “se a rua Beale falasse”, com a acertada premiação de Regina King como melhor atriz coadjuvante. King é uma atriz incrível e o filme adaptado do romance de James Baldwin merecia ter tido mais atenção da Academia, inclusive, merecia ter ganho o Oscar de melhor roteiro adaptado em uma nítida homenagem a James Baldwin e o importante papel que ele sempre cumpriu na luta pelos direitos civis nos EUA.
Não cheguei a pegar os números fechados, mas creio que essa edição do Oscar foi a que mais premiou pessoas não-brancas de forma geral, com destaque aos prêmios pra artistas negros. Finalmente, Spike Lee ganhou seu Oscar, o qual eu acho deveria ter sido de “melhor diretor” e não de “melhor roteiro adaptado”. Fez o discurso mais forte da noite, reivindicando a ancestralidade, a resistência da população negra dos EUA frente ao genocídio e a sistemática violência racista em todas suas dimensões. Foi o ponto alto da noite, sem dúvida!
Mas aí teve o último prêmio, “melhor filme”, o prêmio que deveria ter ido pra “Roma” e acabou indo para o controverso “Green Book”. O que poderia ter fechado a noite desta edição do Oscar com chave de ouro e inaugurado de forma nítida uma nova era para o pensar da indústria de entretenimento com mais representatividade e diversidade virou um grande momento de passar pano pra racismo e assédio sexual.
Nossa Luka! Como assim? Vamos começar pela questão de assédio sexual. Há alguns anos Cameron Diaz revelou em uma entrevista que Peter Farrelly a assediou algumas vezes durante as gravações de “Quem vai ficar com Mary?”. O próprio cineasta reconheceu que fez isso algumas vezes com homens em mulheres em set de filmes, pediu desculpas e ganhou um Oscar. Não é razoável após toda a movimentação que houve na indústria sobre casos de assédio, questionamento sobre desigualdade salarial e afins a Academia dar o prêmio de “melhor filme” a um cineasta que está no hall daqueles denunciados em Hollywood.
Agora sobre a questão do racismo: A família de Don Shirley, personagem de Mahershala Ali no filme, disputou a versão de diversos fatos que foram representados na produção. Mas um chama bastante atenção: Shirley é representado em “Green Book” como uma figura solitária e afastada das raízes humildes e raciais da família. O único irmão vivo de Don Shirley, Maurice Shirley, apresentou em alguns momentos o quanto o pianista era próximo da família e de suas raízes. Ou seja, o roteiro de “Green Book” simplesmente modifica de forma profunda a história da única personagem negra do filme de uma forma desrespeitosa e racista. Depois de apresentar premiações importantes para a produção artística negra durante a premiação este ano a Academia termina a noite com um papelão ao passar pano para um cineasta assediador e um filme que falsifica a história de um negro e ainda reafirma a lógica do salvador branco. Fizeram uma edição voltada pra celebrar a diversidade e acabaram da pior forma possível.
Certo foi Spike Lee que ao ver a palhaçada virou de costas em protesto a entrega do prêmio para “Green Book”.
Divulgação | Oscar
Spike Lee durante a cerimônia de entrega do Oscar 2019