Belo Horizonte, 26 de março de 2019, 12:31
Mensagem no WhatsApp:
“Oi, Ju! Bom dia, minha querida. Sei que você é uma moça que já estudou muito e vejo que você é muito inteligente pela sua fala nas reuniões da meninada e eu queria te dar um conselho. Acho que você não deveria criar uma filha do jeito que você cria a Elis, porque a (xxx) me contou o que Elis falou com ela que não aceitaria o adesivo que fizemos do bonequinho do Bolsonarinho para porque ela não gosta do Bolsonaro e disse que ele não gosta de mulher.
Assim eu acho que ser feminista hoje é perigoso e você está colocando sua filha tão pequena em perigo. Isso é só uma dica de quem te gosta muito e gosta muito da Elis. XX (mãe), XX (pai), XX (criança)”
***
O almoço não desce mais.
O prato foi deixado de lado.
Prefiro escrever a comer.
Meu corpo, trêmulo, necessita de dar uma resposta.
Opto por uma resposta pública.
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Agora há pouco recebi da mãe de uma criança que estuda com Elis a mensagem acima.
Poderia ter me incomodado com tanta coisa, mas o que mexeu de verdade comigo foi o conselho no final: é perigoso ser feminista e perigoso criar uma filha feminista.
Quando nos tornamos mães – e antes de ser, eu nem imaginava que assim seria – elencamos dentro da gente uma série de coisas que gostaríamos de fazer pelos nossos filhos e são esses os parâmetros que, para nós, mães, medem a qualidade da nossa maternidade.
Ouvi do meu pai e da minha mãe, por uma vida, que eles nunca me deixariam herança, mas me deixariam conhecimento e educação, algo impossível de se perder, algo que faria com que este mundo, um dia, fosse muito pequeno para mim.
Isso se tornou a minha máxima na maternidade também. Abro mão de qualquer coisa nesta vida, para educar bem Elis – muito, muito bem. E educar uma criança feminista é imprescindível para mim.
Esta educação começou ainda no período da gestação. Eu não li absolutamente nada sobre maternidade. Lá pelo sexto mês, achei que deveria ler alguma coisa. Tem um livro muito famosinho aí, que agora não me lembro o nome e nem faço questão, mas é algo Como educar crianças francesas ou Por que crianças francesas não fazem birra, sei lá, mas todo mundo lê. Achei que deveria fazer o mesmo. Fui à livraria buscar o tal livro e encontrei outro chamado Hibisco roxo, da Chimamanda Nigozi Adichi, aquela escritora, negra, feminista, maravilhosa nigeriana, imprescindível para os dias de hoje.
Não comprei o tal livro sobre crianças francesas, mas quem precisa de ler sobre maternidade ou educação de crianças francesas tendo lido Chimamanda Nigozi Adichi, Beavouir, Margaret Atwood, Alice Walker. Audre Lorde grávida? Todos em voz alta, para que Elis pudesse ouvir.
Provavelmente, Elis já conhece mais a história do feminismo e da luta das mulheres do que muitas de nós. Além do significado, ela conhece os contextos, muitas representantes e já aponta o que mais quer saber.
… e isso tem dado frutos.
Antes de completar dois anos, na escola, quando um coleguinha deu um soco nela, ela falou para ele que menino não pode bater em menina. E o fez pedir desculpas.
A professora contou entusiasmada a conquista da Elis, tão pequena, em sala de aula e, no fim do ano, em uma reunião, falou que ela foi a única criança que conseguiu resolver a questão dos ‘tapas’ com o colega. Ele nunca mais a enfrentou.
No ano seguinte, respondeu para a auxiliar da sala de aula, ao ser perguntada o motivo pelo qual não tinha a orelha furada, que o corpo é dela e, logo, as regras são dela também. #MeuCorpoMinhasRegras fazem parte das referências que as pessoas guardam sobre a Elis na escola.
Ano passado, se tornou a primeira menina ‘titular’ no time de futebol dos meninos da sala. Na mesma época, a mãe de um colega me contou que o filho falou que estava morrendo de saudade da meninada e foi listando uma série de meninos. Ao ser questionado se não sentia saudade de nenhuma menina, ele respondeu: Ah, sim! Da Elis. Porque a Elis é sensacional e ela faz tudo o que os meninos fazem, muito mais esperta, e ainda dança balé e faz estrela. Foi para este colega também que Elis explicou que não existe brinquedo de menina e brinquedo de menino e que menina pode ser o que quiser nesta vida. No ano passado, ela ‘brigou’ com um colega de sala de aula que fazia campanha do Bolsonaro! O motivo: Bolsonaro não gosta de mulheres!
Este ano, quando o tal presidente falou sobre a igualdade nos ministérios, apontando que duas mulheres equivaleriam a 20 homens, Elis ouviu a notícia na TV e me perguntou se ele não sabia fazer conta.
Elis sabe que existe violência contra mulher.
Elis sabe que existe desigualdade de gênero.
Elis sabe que ela vai ter que se impor – todos os dias – para conquistar espaços, só pelo fato de ser mulher.
Elis sabe que ela não pode se calar.
Elis sabe o que é caminhar junto.
Elis sabe que não pode ter medo.
Elis sabe que eu estarei com ela e, ao meu lado, milhares de outras feministas.
Eu me tornei feminista.
Elis, não!
Elis não conhece outra realidade.
Ela não vai conhecer.
Feminismo, para Elis, é essência, é instinto, é potência, é necessidade, sou eu e muitas outras mulheres dentro dela.
Melisa Fernandez/Flickr CC
Feminismo, para Elis, é essência, é instinto, é potência, é necessidade, sou eu e muitas outras mulheres dentro dela