No centenário da Semana de Arte Moderna, é bom lembrar que para Antônio Candido e, na sua esteira, para outros estudiosos da cultura nas bordas do sistema internacional, a dinâmica da vida cultural se apoiava na dialética entre o local e o universal.
Todos ganharíamos em compreender que essa dialética não é apenas da cultura, mas se estende a toda a vida social. Afinal, ninguém nega os vínculos estreitos e a mútua dependência entre a economia nacional e o mercado internacional.
É aceitável que, para a maioria das pessoas, os vínculos entre situação econômica mundial e as oscilações da política não sejam tão evidentes. O difícil é saber se analistas, jornalistas ou militantes que ignoram essas relações o fazem por interesse ou se simplesmente isso suporia um grau de racionalidade que não encontra guarida na dinâmica das representações (as mal chamadas narrativas) da grande mídia ou das redes sociais.
A semana que passou é um bom exemplo de dinâmicas capazes de deixar qualquer colunista com torcicolo e coluna travada.
Sem dúvida, o grande assunto foi o chamado massacre de Butcha, cidade de 35 mil habitantes na periferia de Kiev, da qual as tropas russas se retiraram no contexto de seu movimento de reposicionamento para a fronteira leste.
Depois da fajutice do tanque russo que era ucraniano e das cenas de guerra reproduzidas de videogame, agora Joe Biden, Volodymyr Zelensky, a grande imprensa internacional e suas filiais brasileiras querem nos vender a incrível história do exército profissional que antes de se retirar (ninguém se atreveu a afirmar que ele tenha sido expulso) de uma cidade ocupada deixa uma fila de cadáveres perfeitamente alinhados e prontinhos para, três dias depois, a fotografia do inimigo.
Para ficar no contexto cultural dos produtores desse “conteúdo”, ou todo mundo veste aquele chapeuzinho cônico de Donkey ou demite o roteirista.
Wikimedia Commons
Presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, e seu homólogo norte-americano, Joe Biden
Para quem está preocupado com as repercussões econômicas da guerra também há “análises” para todos os gostos. Dos que acham que a população russa será reduzida a tal situação de miséria que acabará por pendurar Vladimir Putin pelas pernas (foi o que pediu tio Biden) aos que avisam que o tiro pode ser no próprio pé do atual sistema financeiro internacional.
“Conteúdos” à parte, é fato que países que juntos abrigam mais da metade da população do planeta decidiram não aderir ao boicote. Também é fato que a pequena Cuba, que nem longinquamente é comparável à Rússia em população, recursos econômicos ou poder militar, resiste a um bloqueio feroz há seis décadas.
O famoso jornalista satírico H. L. Mencken teria dito que ninguém nunca perdeu dinheiro subestimando a inteligência do povo norte-americano. Os roteiristas de Washington/Wall Street/Hollywood estão convencidos de que isso vale para a população de todo o planeta.
Entre nós, saindo da mesmice dos “analistas” globais, a atração ficou por conta do sempre ácido Elio Gaspari que, depois de elogiar a posição de Lula acerca do aborto como questão de saúde pública, não resistiu ao seu escorpiãozinho de estimação e sapecou o inacreditável: “Até hoje o comissariado não procurou entender por que, em 2018, 57,8 milhões de brasileiros elegeram Jair Bolsonaro com 10 milhões de votos de diferença sobre seu candidato.”
Para entrar no jogo de salão em que nosso comentador costuma se divertir, poderíamos pedir a Eremildo, seu idiota preferido, que solicitasse a Madame Natasha uma bolsa de estudos em Kiev para o primeiro colega de profissão que lhe explique que isso ocorreu porque o preferido da população, naquele momento e agora, estava preso por obra e graça de um pseudojuiz, que depois foi ministro de Jair Bolsonaro, e que teve todos os processos anulados pelas últimas instancias do judiciário brasileiro. E porque o habeas corpus solicitado para Lula participar da eleição foi indeferido depois de uma ameaça explicita do ministro do Exército em seu Twitter, que, aliás, ele confessou em seu livro de memórias.
Parafraseando um membro da família Gomes, “Lula estava preso, babaca”. E lá ficou, com a pressão dos militares e o aplauso ou a conivência dos donos da grana e da grande mídia, inclusive do jornal em que Gaspari atualmente pontifica.
(*) Carlos Ferreira Martins é Professor Titular do IAU-USP São Carlos.