Algumas ponderações sobre o caso Drauzio Varella:
1 – Explico com um caso: Nos idos dos anos 90 havia um programa chamado “Gente que faz”. Era, muito antes de virar moda, “branded content” patrocinado pelo banco Bamerindus. Trabalhei como pesquisadora dos personagens desse programa. Precisávamos descobrir ótimas histórias, personagens marcantes. Mas uma de nossas atribuições era justamente verificar ficha criminal ou qualquer característica “comprometedora” dessa personalidade que o programa elegia como “gente que faz”. O programa era realizado por publicitários, cineastas, produtores, mas a pesquisa ficava por conta de jornalistas. Porque jornalista é especialista em pesquisa e é necessário levar em conta, muito além da repercussão da história, os seus fundamentos.
2 – O programa do dr. Drauzio, como ele mesmo explica, abordava a difícil condição das mulheres trans no presídio. O que é verdade. Apontava o dado de que uma grande maioria está presa pelo delito de furto e roubo. O que é verdade. E, ao entrevistar Suzy, nos permitia concluir que sua solidão e abandono, pela família inclusive, pudesse ser por sua condição trans. Isso já não podemos afirmar que é verdade.
3 – Suzy cometeu um crime tão hediondo que embrulha o estômago. Os familiares da criança assassinada devem ter revivido uma enorme tristeza ao ver a assassina gozar, momentaneamente, do “direito” à solidariedade e empatia de todo um país ao mesmo tempo que recusou toda a humanidade e dignidade à criança assassinada e sua família.
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4 – Talvez, o abandono a que foi relegada tenha a ver com isso.
5 – Então, o erro jornalístico reside aí, nesse ponto. Era necessário que a produção jornalística se preocupasse em verificar os crimes cometidos pelas personagens entrevistadas e checar se eles se enquadravam na história que estava sendo contada: mulheres trans em situação de encarceramento vivendo uma dificuldade exatamente por causa de sua condição trans.
6 – O histórico de Suzy levantaria dúvida sobre essa história. É uma informação relevante. Deveria ter sido levada em conta. Sabendo disso, a edição teria o papel de vetar a personagem. Não por preconceito, mas pela incoerência que ela poderia trazer ao espírito da reportagem. Possivelmente, o depoimento e a cena tocante do abraço do dr. Drauzio embaçaram a necessidade de verificar a história. E o que se percebeu é que saber sobre o crime cometido muda completamente a interpretação sobre esta personagem.
Reprodução
Lapso cometido pela reportagem do Fantástico não diminui a importância, a relevância e a necessidade da matéria
7 – Apesar de escritor, comunicador etc., dr. Drauzio é médico. E ele afirma que é a partir deste ponto de vista que realiza seu trabalho voluntário.
8 – Nesse sentido, não se pode fazer absolutamente nenhuma censura à pessoa do dr. Drauzio. Ele cumpre rigorosamente sua função ao ignorar os delitos cometidos pelos presos ao atendê-los como médico.
9 – Sobre isso, deve se dizer ainda que Dr. Drauzio Varella é das figuras públicas brasileiras mais admiráveis pelo grande serviço público que realiza em todas as áreas.
10 – Por isso, penso ser os jornalistas envolvidos na produção os responsáveis por fazerem as ponderações necessárias no momento de formatar uma história jornalística, dentro dos critérios jornalísticos.
11 – Os veículos que apontaram a incoerência sobre a história real de Suzy, também cumpriram seu papel jornalístico.
12 – Mas, o lapso cometido pela reportagem do Fantástico não diminui a importância, a relevância e a necessidade da matéria.
13 – É uma falta de caráter fazer uso de tal lapso jornalístico para acusarem covardemente o dr. Drauzio e a excelente iniciativa.
Drauzio vem conversar diretamente com as pessoas que o acompanham – seja na TV ou nas redes sociais -, sobre sua participação na matéria do Fantástico veiculada no dia 01 de março. pic.twitter.com/jai00egpkg
— Portal Drauzio Varella (@drauziovarella) March 10, 2020
Sobre tudo isso, ainda há uma última reflexão. O “erro” cometido também nos permite nos dar conta de algo muito importante:
Não saber sobre o crime hediondo de Suzy nos fez ver o ser humano triste e sozinho que habita naquela pessoa. Difícil pensar naquela cena e naquele depoimento como mera simulação, embora se possa admitir que isso seja possível.
Porque há algo nessa humanidade, nessa tristeza, nessa solidão que nos comove. Esse “erro” nos deu a oportunidade de um olhar sobre Suzy que jamais teríamos.
E é incômodo, desconfortante, chocante termos sido “pegos” nesse olhar empático do lado humano de quem nós pensamos, agora, ser “apenas” “monstro”.
É difícil. Mas é isso: Será que, algum dia, não houve (não há) ali uma criança, uma história de uma pessoa, um “resto” de humanidade?
Mas essa, talvez, já seja uma questão para filosofia.