Quatro anos atrás eu dei uma entrevista para o El País falando sobre a redução do debate a “vandalismo” quando alguém fazia ação direta em monumentos aqui no Brasil. Foi quando rolou aquela treta em Charlottesville que virou até cena de Infiltrado na Klan.
Os movimentos populares vem dando a letra que, cedo ou tarde, algo do tipo aconteceria aqui.
Ano passado, a Deputada Erica Malunguinho fez um projeto de lei que propunha debater a mudança de nome de ruas e espaços públicos no Estado de São Paulo, além da retirada de monumentos com um conselho permanente formado por estado e sociedade civil pra isso (PL404/2020).
Eu fiz um parecer técnico falando que o debate era necessário, sugeri a realização de inventários participativos e audiências públicas para tornar o debate o mais amplo e democrático possível.
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Estranhamente, o meu parecer que era apenas consultivo, de praxe entre o Legislativo e o Executivo, foi para deliberação do Condephaat que, pautado por um voto permeado de equívocos, falsas simetrias e senso comum, fez moção contrária ao Projeto de Lei. Chamaram inclusive de “revisionismo”. Retrato do que pautou o debate em 2020 – o conservadorismo e o apego à normalização do passado violento e escravista que dita nossa sociedade desde 22 de abril de 1500.
O PL não foi adiante por uma questão jurídica menor, que poderia ser corrigido nas comissões.
Ou seja, o Estado lavou as mãos. Não ouviu o clamor popular legítimo e necessário, urgente e não se colocou no papel de mediador que cabe ao Estado Democrático. Escolheu se calar e deixar o barco correr.
Daí hoje, depois de muitos avisos antecipados, botaram fogo no Borba Gato. Previsível, anunciado. O silêncio conivente do Estado contemporâneo teve um preço.
Reprodução/Jornalista Livres
Hoje, depois de muitos avisos antecipados, botaram fogo no Borba Gato: o silêncio conivente do Estado contemporâneo teve um preço
E o que virá agora? Debate público pra “apagar o incêndio”, com todo o trocadilho possível? Não.
Virá a criminalização da pauta, virá o grito dos preservacionistas de ocasião que só se importam com a dilapidação e a depredação de alguns bens públicos enquanto outros estão aí, sendo pilhados, demolidos, abandonados, destruídos ou concedidos para privados com contratos que têm tudo, menos interesse público.
“Vandalismo”, “bandidos” etc etc. Não haverá debate qualificado. Vai ter criminalização.
Os recursos públicos que serão empenhados para investigar, perseguir e punir os responsáveis pela ação direta de hoje poderiam ter sido investidos ao longo dos anos para fazer política pública proativa.
Mas no Brasil o que importa mesmo é ação dos órgãos públicos para punir. A mentalidade do Estado é a de ditar regras e nunca ouvir a população pra mudá-las. O Estado brasileiro só faz audiência pública pra cumprir protocolo exigido pela legislação.
Então, não surpreende a ação de hoje. Nem a reação que já começou. Temos um longo passado pela frente. E nem a Lei de Anistia de 1979 conseguiu fazer esse passado passar.
*Deborah Neves é historiadora e autora do livro “A Persistência do Passado: Patrimônio e Memoriais da Ditadura em São Paulo e Buenos Aires” (Editora Alameda, 2018). Texto publicado no Facebook da autora.