Quando abandonou uma carreira ligada ao atletismo para candidatar-se à uma vaga no Parlamento da Grécia, a ex-recordista mundial no lançamento de dardos Sofia Sakorafa acreditava que poderia fazer mais do que a maior parte dos atletas que se arriscam na política, o jogo humano mais complexo e perigoso do que qualquer modalidade esportiva. Pois já em sua atividade anterior, mostrava ser uma ativista séria e comprometida com causas como a defesa da paz e dos direitos da mulher.
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Seu espírito engajado começou a ficar conhecido mundialmente em 2004 quando, aos 47 anos, tentou uma vaga nos Jogos Olímpicos de Atenas pela Palestina. A IAAF (Federação Internacional de Associações de Atletismo, em português), no entanto, não legitimou sua inscrição.
Conseguiu seu objetivo em 2007 pelo Pasok (Movimento Socialista Pan-helênico), ainda acreditando nas propostas reformistas da social-democracia europeia. Entretanto, rompeu com o partido em maio de 2010, quando o autodenominado governo 'socialista' aprovou sem restrições o primeiro pacote de austeridade econômica planejado pela Troika (União Europeia, Fundo Monetário Internacional e Banco Central Europeu). Ela foi uma dos três integrantes do partido a rejeitar a medida e, desde então, engrossa a lista dos parlamentares independentes.
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Sofia Sakorafa ao lado do líder Yasser Arafat, durante sua adesão à equipe olímpica palestina
Com essa atitude corajosa, a rejeição ao pagamento de juros ilegais da dívida pública, que mergulhou a Grécia em uma profunda crise econômica, social e moral desde a adoção desse pacote, tornou-se mais um tema a engrossar na lista de lutas da ex-atleta e ativista. Na semana passada, Sofia esteve em Brasília para participar, ao lado de nomes como o economista belga Éric Toussaint e da brasileira Maria Lúcia Fattorelli no Seminário Internacional Latino-Americano: Alternativas de Enfrentamento à Crise, onde realizou um discurso emocionado na sede do Conselho Federal da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil). Foi uma das mais enfáticas defensoras da realização de uma auditoria pública para a reestruturação do pagamento da dívida em todo o mundo.
À noite, concedeu uma entrevista ao Opera Mundi onde explicou como, repentinamente, seu país viu-se afundado em uma situação de paralisia econômica, além de ser apontado por vizinhos europeus como irresponsável e culpado por gerar uma crise sistêmica na zona do euro. Uma acusação que Sofia e boa parte do povo grego não aceitam. “Somos trabalhadores, apesar de quererem nos mostrar como preguiçosos e vagabundos. Nós temos a cultura de acumularmos dois trabalhos por jornada e temos a maior carga horária em toda a Europa. Só que ninguém se lembra disso”, revolta-se.
Divulgação
Sofia Sakorafa, em uma sessão do Parlamento grego
A parlamentar grega reconhece que seu país cometeu, de fato, excessos orçamentários, citando em especial os Jogos Olímpicos de 2004, evento onde não houve qualquer transparência em relação à prestação de contas públicas, e gastos com armamento militar. “Materiais, em sua maior parte, sem qualquer utilidade. Com a condição que não podíamos pegar empréstimos de outros países, pois tínhamos de comprar da OTAN, com altas taxas de juros, um verdadeiro assalto”, denuncia.
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Para ela, não apenas a centro-esquerda, mas toda a Europa ressente-se de grandes líderes políticos. “O que falta é uma política centralizada no ser humano, não em ambições pessoais. Não sabemos se o governo tem a pretensão de ficar ou abandonar o poder nas próximas eleições [previstas inicialmente para 2013]. Mas a corrida eleitoral no momento não é o importante. O fato é que temos que mudar desde a raiz as diretrizes políticas que estão sendo seguidas, que não atendem a ninguém”.
Sofia descreve a falta de opção do eleitor grego face ao atual quadro político. “O Pasok concorre pelo poder com o ND (Nova Democracia, de direita), agora na oposição. Infelizmente para a Grécia, não há outra saída. São sempre os mesmos partidos, muito parecidos, que seguem as mesmas doutrinas. Suas pequenas divergências só aparecem para que eles justifiquem ter alguma diferença e apostar em uma eventual vitória eleitoral”, afirma.
Indignação
Sofia, que não parece preocupada com seu futuro político, afirma que o povo grego começa a se conscientizar sobre quem e o que teria causado de fato a crise financeira. “O povo tem obrigação e o direito democrático de protestar e correr atrás de um estilo de vida digno. É consolador ver que a população começa a compreender nesse momento que o 0,2% do que seria nossa participação no déficit geral da UE não foi o que causou a crise. A Grécia é um experimento, pelo qual [os credores] têm a perspectiva de espalhar para todo o continente”, afirmou.
Herick Murad/divulgação
Em Brasília, Sofia expôs o outro lado da crise grega e quer seguir exemplo da América Latina
A ex-atleta responsabiliza em grande parte a Alemanha pela situação de seu país. Ela tenta impor aos demais membros uma política de mão única, que cria um apartheid econômico. “A UE tem duas velocidades: o centro (Alemanha e França); e os países periféricos, que servem de cobaia para virar fonte de mão-de-obra barata. O sul trabalha para privilegiar o norte. Se quisermos falar de justiça e união na Europa, isso tem que parar. Não basta ter moeda comum, tem de haver políticas comuns também”.
As conseqüências, acredita a deputada, será o aumento da pressão dos governos para oprimir a classe trabalhadora, restringindo direitos e utilizando a mão-de-obra “a níveis chineses, ganhando pouco e produzindo muito”. “Querem colocar no mercado produtos mais baratos, com os quais não poderemos competir, e permitir a ação livre do capital: sem normas ou obrigações”, protesta.
Soluções
Para a deputada, não existe saída que passe por um caminho fácil e rápido, mas tem que necessariamente rechaçar o ideário recessivo do FMI. “Temos que criar uma frente contra o Fundo. Formada por todos que se entendam progressistas, que acreditam que o FMI não permite outro tipo de solução que não seja a dele. Temos que chegar com um planejamento político claro e apoio da maioria”, afirma.
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“Percebemos desde o início que o FMI chegaria perto da solução. E vocês brasileiros devem ter percebido isso nas épocas de crise. Quando a Grécia assumiu aquele acordo vergonhoso há um ano e meio, com procedimentos totalmente antidemocráticos, me recordo que a medida sequer foi discutida no Parlamento grego. Apenas duas pessoas (os líderes do Pasok e do ND) que decidiram. E pronto, assinamos. Pela primeira vez vi um projeto ser votado sem ser debatido”.
Sofia lembra que o ministro das Finanças passou a ter 'superpoderes' para discutir, negociar, decidir e assinar acordos desse nível sem o consentimento e conhecimento da própria casa legislativa.
“Se tivessem mostrado que essas medidas de austeridade trariam melhorias ao povo grego, talvez alguns acreditassem que o primeiro acordo em 2010 poderia nos salvar. Mas depois veio o segundo, e o terceiro, com termos e cláusulas e condições muito piores. E sempre com aquela ameaça: 'Se vocês não concordarem com nossas condições, vocês não terão nem salários nem aposentadorias'. E essas palavras ressurgem sempre às vésperas de recebermos as parcelas de 'ajuda financeira', o que provoca mais cortes e desemprego. Dão-nos dinheiro e pegam de volta em forma de juros. Se isso não for fazer terrorismo…”, resigna-se.
Sobre a permanência ou saída da Grécia da zona do euro, Sofia descreve bem a situação em que seu país se encontra: “Faz diferença estar dentro da cova para ser devorado por leões quando fora você será devorado por hienas?”.
O mesmo se aplica à eventual declaração de insolvência do país: “A UE não vai deixar, não é bom pra ela que um de seus membros chegue à falência. O problema é que se não deixarem, nossa situação vai piorar. Já estamos praticamente falidos, sem recursos. Só que não foi a Grécia que faliu. Não é que pegamos dinheiro público, saímos gastando, desperdiçando, comendo. Nos submetemos às regras da UE que, desde o começo, tinha esse propósito: guiar os países menores para se tornarem apenas fonte de mão-de-obra barata”.
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Sofia acredita particularmente que a esquerda tem a responsabilidade histórica de assumir esse papel, apesar de sofrer com diversas divisões históricas no país. “[Os políticos de esquerda] deveriam deixar de lado as ambições eleitorais e focar em um objetivo comum. Alguns precisam abandonar a perspectiva de construir uma revolução a longo prazo, que só ocorreria em uma era futura. É necessário encarar a realidade e chegar para a sociedade com propostas e soluções”.
Por essa razão, ela pediu para que a esquerda se una em favor da auditoria. “Fazendo isso, descobriremos que grande parte dessa divida não é verdadeira. Depois disso é que escolheremos o que fazer: pagar tudo ou renegociar, considerá-la legal ou ilegal. Mas o primeiro passo seria conhecer essa dívida através de uma comissão independente. E, se descobrirmos que houve corrupção, revelarmos quem corrompeu também”.
Wikimedia Commons
Segundo Sofia, mostrar à população grega o sucesso do exemplo equatoriano seria um exemplo de que realização da auditoria é possível e benéfica – pese o fato de a Grécia não possuir reservas para bancar uma eventual renegociação. “Temos de convencer o povo grego de que, em algum lugar no mundo as coisas aconteceram de forma diferente. Sabemos que o trabalho dessas comissões de auditoria em alguns países conseguiu reduzir suas dívidas, em alguns casos com os papéis caindo a dois terços do valor inicial (Equador, 30%) ou mesmo a negação total de pagamento e de negociação com os credores (citando a Argentina, no início do século)”.
Maldição olímpica
Apesar de ser uma entusiasta dos Jogos Olímpicos, Sofia alerta o Brasil para o risco de repetir o erro grego ao evitar a transparência das contas públicas relacionadas ao evento.
“A primeira coisa a refletir é: foi o povo brasileiro que quis a Olimpíada ou ela foi imposta a ele por seus líderes ou por outros interesses financeiros? Agora que a conseguiu, deve lutar para que seja bem sucedida. Mas não pra provar para os outros que os brasileiros sabem fazer jogos bem organizados e bonitos, mas para aproveitar essa grande festa em toda a sua extensão. A infraestrutura, o desenvolvimento, os investimentos, o famoso legado. Porque os Jogos Olímpicos podem ser uma grande oportunidade, mas também uma semente de destruição”, alerta.
Comoção
Ao fim de seu discurso em Brasília, Sofia não conseguiu esconder sua revolta pessoal em relação à situação de seu país. Sob lágrimas, encerrou sua discurso com um poema do nobel de literatura Giorgios Seferis, com o qual tentou traduzir o atual espírito da resistência grega (tradução livre):
“Só mais um pouco,
E veremos as amendoeiras florirem;
Os mármores brilhando com o sol;
O mar e as ondas revoltas;
Só mais um pouco,
Vamos nos elevar um pouco mais alto”
“Sei muito bem que o caminho que leva ao amanhã passa por cima das feridas de meu país. Faremos o possível para chegarmos lá”. Repentinamente, a tradução simultânea foi interrompida com uma crise de choro. O tradutor era um assessor da embaixada grega, há oito anos no Brasil. Em Atenas acumulava o cargo de professor de dia e garçom à noite, assim como muitos de seus compatriotas. A plateia foi tomada pela emoção e a parlamentar foi aplaudida de pé.
Phantis
Como atleta, Sofia já foi recordista mundial no arremesso de dardo
Mais tarde, durante a entrevista, Sofia se desculpou e tentou explicar, sem necessidade, porque se deixou tomar pela emoção: “Foi a maneira pela qual tentei traduzir a raiva que nós gregos estamos todos nos sentindo. Somos um povo muito orgulhoso para aceitarmos isso”.
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