Hoje gerente de uma empresa da área médica, o poeta brasileiro Manoel de Andrade se destacou nos anos 70 pelos versos nos quais expressava o sentimento do homem latino-americano no livro Poemas para a Liberdade, reeditado recentemente em edição bilíngue no Brasil (Escrituras Editora).
Sua forte ligação com a América Latina começou no final dos anos 1960, quando saiu do Brasil devido à perseguição política pela luta estudantil contra a ditadura e, especificamente, por um poema que escreveu em homenagem a Che Guevara.
Na viagem, percorreu 15 países latino-americanos, onde viveu, segundo ele, sua universidade poética, apesar de ter sido preso e expulso de alguns deles. Em cada cidade, aproveitava o tempo para estudar, aprender o idioma espanhol e ler grandes escritores.
Os frutos da empreitada resultaram em reconhecimento internacional, com o livro Poemas para la Libertad publicado na Bolívia, Colômbia, Equador e Estados Unidos, além de edições panfletárias no Peru, Nicarágua, El Salvador e México.
De volta ao Brasil, em 1972, não exerceu mais sua vocação e só voltou à poesia mais de 30 anos depois, com a publicação do livro Cantares, em 2007.
Qual foi o impulso para reeditar Poemas para a Liberdade (1970) hoje?
Primeiramente pela grata recepção que teve meu livro Cantares, lançado em 2007. E, depois, pela memória de 1968, relembrando as bandeiras da luta estudantil empunhadas por minha geração. Recordar toda nossa corajosa resistência, como porta-vozes da sociedade contra o regime militar, me fez relembrar também meus anos de luta pela América Latina, onde minha trincheira e meu fuzil foram os meus Poemas para la Libertad, finalmente editados no Brasil.
Você é um dos únicos casos que conheço de poeta brasileiro que escreveu para a América Latina inteira (e obteve êxito) – como aconteceu essa sua ligação tão forte com o idioma de Cervantes?
A ligação antiga foi a leitura dos clássicos espanhóis na juventude e a imediata foi a convivência diária com o idioma castelhano em meu imenso caminhar. Ao longo dos 15 países que percorri, tinha o hábito de reservar as primeiras semanas para ler, nas melhores bibliotecas, sua história política e literária e seus principais poetas e prosadores. Aprendi muito rápido: lendo muito, falando e escrevendo.
Sua saída do Brasil está relacionada a um poema seu em homenagem a Che Guevara. Quando ele morreu, era tão perigoso assim homenageá-lo no Brasil?
Quando ele morreu, em 8 em outubro de 1967, ainda não existia o AI-5 [Ato Institucional nº5]. Saudação A Che Guevara foi escrito para comemorar o primeiro ano de sua morte. O poema colocava, liricamente, a sua imagem de comandante no centro dos movimentos revolucionários do continente, convocava a luta armada e saudava a sua imortalidade como uma consigna triunfante na conquista de um mundo novo.
Quatro mil cópias foram panfletadas até o início de dezembro, quando a nação já respirava uma atmosfera carregada pelo pressentimento de uma surda e sinistra ameaça por trás dos biombos do poder. No dia 13 de dezembro, a edição do AI-5 sufocou os últimos suspiros da democracia.
Em março, o DOPS [Departamento de Ordem Política e Social] já tinha em mãos cópias do meu poema, e a caça às bruxas já havia começado no país inteiro. Eu já estava sendo procurado nos recintos universitários, e os suspeitos de subversão eram presos, mantidos incomunicáveis, e alguns começaram a sumir. Nesse perigoso contexto, eu saí do Brasil.
Como foi percorrer 15 países por conta da sua obra, que foi, finalmente, editada em livro na Bolívia em 1970? Hoje seria possível algum poeta brasileiro experimentar uma acolhida remotamente parecida?
A América Latina foi minha grande universidade. Com meus versos na garganta, muitos percalços e alegrias pelos caminhos, preso e expulso de alguns países, mas avançando sempre rumo ao norte, meus poemas atravessaram o continente, cruzaram o Rio Bravo e foram cantar a justiça e a liberdade nas próprias entranhas do “monstro” imperialista. Ecoaram na Califórnia de 40 anos atrás, para dizer da saga revolucionária latino-americana aos nossos irmãos chicanos, cuja latinidade, maculada pelo esbulho da própria pátria mexicana, buscava forças em suas raízes para lutar contra a discriminação, as humilhações e as injustiças após 150 anos de genocídio cultural, com a anexação, em 1848, do Novo México, Arizona, Califórnia, Utah, Nevada e Colorado ao território estadunidense.
Por outro lado, não creio que hoje se possa experimentar uma acolhida tão solidária como aquela fraternidade ideológica que envolveu a América Latina nos anos 70. A Revolução Cubana acendeu uma fogueira que iluminou a tantos e nos sulcos das suas trincheiras muitos nos alinhamos, segurando o mesmo estandarte. O mundo mudou e hoje eu não cantaria mais a mudança do mundo com as armas na mão. O muro de Berlim se despedaçou sobre nossos sonhos. A Rússia centralizou sua “democracia” e a China negociou o socialismo com o “Capitalismo de Estado”. É triste dizer que, hoje, não temos mais uma utopia.
Mas a consagração, aqui, só veio em 1980, graças a Moacyr Félix e Wilson Martins… Como foi esse reconhecimento tardio?
Na verdade esse foi um reconhecimento solitário e prematuro. Meu primeiro livro publicado no Brasil foi Cantares, em 2007. Meu nome começou a surgir no cenário poético paranaense em 1965, quando minha poesia foi premiada num concurso literário, e por minha participação na Noite da Poesia Paranaense no Teatro Guaíra, onde lancei, solitariamente, minhas primeiras farpas contra a ditadura. O destaque para minha poesia chegou, em fins de 1968, pelas amplas portas que o jornalista Aroldo Murá abriu no “Diário do Paraná” e pela minha longa “Canção para os homens sem face”, publicada em dezembro daquele ano na Revista Civilização Brasileira, onde pontificava a elite intelectual de esquerda brasileira e mundial. Mas em março de 1969 deixei o país e me coloquei no olho do imenso furacão ideológico que agitou o continente. Minha poesia amadureceu nesse embate e frutificou nas edições de meu livro na Bolívia, Colômbia, Equador e Estados Unidos, além de edições panfletárias no Peru, Nicarágua, El Salvador e México. Quadros, cartazes, revistas, jornais, panfletos, recitais, palestras e debates foram os caminhos por onde transitaram os meus versos, partilhando também páginas de antologias com Mario Benedetti, Juan Guelmann e Jaime Sabines entre outros. Mas tudo isso fora do Brasil.
Apesar de você já ser uma promessa, nos anos 60, ao lado de Paulo Leminski e Dalton Trevisan, se ressente de não ser considerado, pela crítica especializada, tão importante quanto eles?
E nem poderia sê-lo. Voltei a ocupar esse espaço há dois anos, depois de 40 anos de ausência. Os que se lembram do poeta que fui têm hoje mais de 50 anos. Eu era uma promessa? Talvez literariamente realmente fosse. Mas esse tipo de importância nunca o foi para mim. Encaro o significado da vida numa dimensão muito maior que a literária. Quanto à crítica especializada de hoje, não crio expectativas em relação ao reconhecimento da minha poesia.
Meu livro Poemas para a Liberdade não é apenas mais um livro no mercado editorial, mas um documento histórico e político. Sua verdadeira importância está na expressão literária de um sonho que transcendeu as fronteiras do espaço e do tempo, e a crítica atual, com raras exceções, despreza a ideologia.
Meu respeito pelas palavras, a reverência do meu estilo e a clareza cartesiana com que escrevo meus versos não fazem concessões ao mero intelectualismo e aos paradigmas da pós-modernidade.
A crítica que me gratifica são os comentários sinceros que fazem na Internet aos meus poemas. Como me gratifica ver este meu livro citado publicamente por um grande escritor como Domingos Pellegrini, com dois Jabutis nas costas, e que, em mensagem a mim enviada, relembra a mesma bandeira que desfraldamos no passado e confessa que meus Poemas para a Liberdade lavaram sua alma.
E o que andou fazendo de 1980 pra cá?
Voltei em meados de 1972, quando o país passava pela sua mais aguda fase de repressão. Era a época da Guerrilha do Araguaia e quando a Anistia Internacional revela ao mundo o nome de centenas de torturadores e de milhares de torturados no Brasil. Depois de alguns meses, os agentes do DOPS já estavam à minha procura. Transferi minha [carteira da] OAB para Santa Catarina, na esperança de advogar em meu estado. Também lá não foi possível assumir publicamente qualquer trabalho.
Neste anonimato voltei para Curitiba e fui vender a Enciclopédia Delta Larousse. Era uma forma itinerante de trabalhar pelo interior sem que os agentes do DOPS me localizassem. Profissionalizei-me rapidamente, cheguei ao topo na hierarquia dos títulos nacionais e tive um grande sucesso financeiro.
Em 1987, já na abertura democrática, ingressei na área gerencial de uma empresa de medicina de grupo onde estou até hoje. Durante todo este período, embora não tenha escrito poesia, fui sempre um leitor insaciável e sempre envolvido com o voluntariado.
Foi difícil retomar o caminho da poesia em Cantares (2007)?
O caminho pelo qual retornei à poesia deu-se de forma intrigante em termos de inspiração poética: em setembro de 2002, durante a campanha eleitoral para governador no Paraná, meu velho amigo Roberto Requião foi covardemente atacado, na mídia, com uma série de infâmias e inverdades pelos seus inimigos políticos.
Indignado com tanta mentira, comecei a rabiscar um poema relembrando sua coragem, depois do golpe de 1964, quando partilhamos sua afiada oratória e minha poesia nos protestos estudantis contra a ditadura. Relembrei, sobretudo, seu gesto solidário quando, em março de 1969, me ajudou a sair do país, num dos momentos mais difíceis da minha vida. Este poema chama-se Tributo e consta do livro Cantares, e foi com este poema que voltei a escrever poesia depois de 30 anos.
E aquele sonho, dos anos 60, acabou mesmo – como disse John Lennon?
O sonho tem a dimensão que lhe queremos dar e sempre acreditei que o DNA dos poetas é feito de sonhos. Embora aquele sonho dos anos 60 tenha acabado, nos restou a indignação por termos que arriar tantas bandeiras. E essa indignação, que caracteriza toda a humanidade contemporânea, é a nova tese no misterioso processo dialético da própria vida que se renova, sobrepondo-se a todos os reveses. Em algum lugar sempre haverá alguém sonhando, ou nascendo para sonhar com um mundo novo, assim como Colombo um dia sonhou com o Novo Mundo.
Leia poemas de Manoel de Andrade:
Canção para os homens sem face*
Não canto minha dor…
dor de um só homem não é dor que se proclame.
Canto a dor dos homens sem face
canto os que tombaram crivados
os homens escondidos
os que conheceram a nostalgia do exílio
para os encarcerados.
Canto aos párias da vida…
aos bêbados, aos vagabundos e aos toxicômanos.
Canto as prostitutas
e as mulheres que foram embora com o homem amado.
Canto à multidão que entra e sai pelos portões das fábricas
aos que vêem o dia nascer no asfalto das rodovias
e aos lavadores de carros e aos que vendem a loteria
canto aos coletores de lixo e aos guardiões noturnos
as longas filas de pessoas que esperam os ônibus nas praças
e aos estrangeiros que aqui vieram viver.
Canto os homens sem raízes, sem família, sem pátria
canto meu sonho quando canto os que viveram o mar
que aportaram em países distantes
e conheceram homens de muitas raças…
e quando canto os navios,
canto ao meu coração de barco.
Gosto de cantar tudo o que vejo
os homens que conheço
e os que ainda não começaram a existir para mim.
Gosto de caminhar sozinho e de mãos nos bolsos pelas ruas e pela vida
gosto de falar com os homens dos armazéns
dos mercados, das oficinas,
dos postos de gasolina,
das bancas de revistas, das agências de viagens,
com os ascensoristas, com os que consertam os esgotos da cidade,
e outros homens, outros.
E canto as crianças que brincam nos parques
e pulam corda nas calçadas
e os que vão ao palco representar o drama dos outros homens.
Eu canto para todos os homens…
meus irmãos em todas as raças, nacionalidades e crenças,
canto além de todas as fronteiras
porque sob a bandeira da paz eu canto;
e pela fé que me ilumina
e por essa canção escrita no meu peito,
eu canto a humanidade inteira.
Canto a vergonha de ser brasileiro num tempo defecado
canto meu povo
e se ainda não canto meu país,
é porque não sei cantar na presença de homens indecentes;
eu canto sobretudo para aqueles que preservaram seu sonho,
para os que ousaram lutar e morrer por ele,
canto a memória de um guerrilheiro argentino.
E eis que meu verso se endurece
para que eu cante meu melhor combate
e só assim posso cantar para os irmãos e camaradas
recrutando companheiros para a luta…
e quando meu canto é feito para os ouvidos dos justos,
eu canto sem temor,
para que minha canção palpite solitária e solidária
no coração daqueles que se preservaram da lama.
Canto sem medo e sem brinquedo
e enfileiro meus versos para a luta
prontos para ferir como baionetas
prontos a morrer se for preciso.
Como guerreiros invisíveis
meus versos se infiltrarão no país dos corruptos pelas fronteiras das entrelinhas
e renascerão nos lábios dos militantes
ora como uma flor, ora como um fuzil.
Ah, que tempos são esses!?
já não reconheço nestes versos os versos de poeta que fui;
meu canto é hoje um canto transtornado pelo pacto desumano dos homens,
pelo triste dever de indignar-se,
pela violência estampada nas manchetes dos jornais…
e eis que um poeta não canta sem que seu verso quase desfaleça.
E hoje…
nestes dias encardidos de atos e decretos,
neste tempo suspenso num mastro sem bandeiras,
nesta nação de homens que ingerem caldo de galinha,
neste momento tísico
em que somente os finórios se regozijam,
nestes anos em que o sangue da América é um imenso canto de esperanças,
este poema chega assim tão de repente
rogando uma audiência para falar comigo,
como se soubesse que estou para morrer,
e me encontra prostrado num bacanal de coisas fúteis,
um inconsciente talvez…
um homem inútil
quase um desertor
meu Deus, quase um desertor.
Ah, meus versos
minha absolvição…
neles renasço transfigurado e forte
e cavalgo o universo inteiro;
e caminho cheio de amor por todos os seres
e por todas as coisas;
cheio de asco pelos tiranos
e pelos homens hipócritas
e sinto o coração limpo e maciço de ternura
meu canto crescer e explodir mais forte que a bomba.
Ah, meus versos,
meus versos que não são meus,
que são de todos os homens e de todas as mulheres que eu canto;
que são de todos os que se aproximam de mim
e que falam comigo.
Meus versos que afinal nunca serão de ninguém,
caminhando pela terrível solidão branca do papel,
pelo itinerário clandestino das gavetas;
estampados nas palavras escarlates da minha revolta pública,
impressos no meu olhar solitário de samurai.
Eu canto para todos os homens
contudo, neste tempo,
eu canto para os homens sem face…
aqueles que se perdem na multidão das grandes cidades,
e que amadurecem, a cada dia,
os punhos para a luta.
* Poema publicado no livro Poemas para a Liberdade em homenagem a José Macedo de Alencar.
Por que Cantamos*
Se tantas balas perdidas cruzam nosso espaço
e já são tantos os caídos nesta guerra…
Se há uma possível emboscada em cada esquina
e temos que caminhar num chão minado…
“você perguntará por que cantamos”
Se a violência sitia os nossos atos
e a corrupção gargalha da justiça…
Se respiramos esse ar abominável
impotentes diante do deboche…
“você perguntará por que cantamos”
Se o medo está tatuado em nossa agenda
e a perplexidade estampada em nosso olhar…
Se há um mantra entoado no silêncio
e as lágrimas repetem: até quando, até quando, até quando…
“você perguntará por que cantamos”
Cantamos porque uma lei maior sustenta a vida
e porque um olhar ampara os nossos passos.
Cantamos porque há uma partícula de luz no túnel da maldade
e porque nesse embate só o amor é invencível.
Cantamos porque é imprescindível dar as mãos
e recompor, em cada dia, a condição humana.
Cantamos porque a paz é uma bandeira solitária
a espera de um punho inumerável.
Cantamos porque o pânico não retardará a primavera
e porque em cada amanhecer as sombras batem em retirada.
Cantamos porque a luz se redesenha em cada aurora
e porque as estrelas e porque as rosas.
Cantamos porque nos riachos e lá na fonte as águas cantam
e porque toda essa dor desaguará um dia.
Cantamos porque no trigal o grão amadurece
e porque a seiva cumprirá o seu destino.
Cantamos porque os pássaros estão piando
e ninguém poderá silenciar seu canto.
Cantamos para saudar o Criador e a criatura
e porque alguém está parindo neste instante.
Pelo encanto de cantar e pela esperança nós cantamos
e porque a utopia persiste a despeito da descrença.
Cantamos porque nessa trincheira global, nessa ribalta,
nossa canção viverá para dizer por que cantamos.
Cantamos porque somos os trovadores desse impasse
e porque a poesia tem um pacto com a beleza.
E porque nesse verso ou nalgum lugar deste universo
o nosso sonho floresce deslumbrante.
(*) Manoel de Andrade escreveu estes versos inspirado pelo poema “Por que Cantamos”, do uruguaio Mario Benedetti.
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Manoel de Andrade, o poeta brasileiro que escreveu para toda a América Latina
Julio Daio Borges é editor do DigestivoCultural.com
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