A cada semana, o programa de Saúde Sexual e Reprodutiva do Ministério da Saúde da Argentina recebe em média duas consultas por abortos provenientes do exterior. São pessoas principalmente do Brasil, Paraguai e Chile, que perguntam onde podem acessar o procedimento legalizado no país desde 2020, que é garantido tanto no sistema público quanto no privado, para argentinas e estrangeiras.
No entanto, no governo de extrema direita de Javier Milei, esse acesso pode ser comprometido. Desde a campanha, o presidente ataca a Lei da Interrupção Voluntária da Gravidez (IVE), que autoriza qualquer pessoa gestante a realizar o aborto até a 14º semana de gestação. Quando assumiu o governo, o Ministério da Saúde da Nação paralisou as licitações que estavam em andamento para ampliar as compras de insumos para realizar os abortos legais, que já começaram a faltar em algumas províncias.
Na cidade de Córdoba, localizada no centro da Argentina, a segunda maior do país em termos de população, com 1,5 milhão de habitantes e uma das mais ricas, já não há misoprostol e mifepristona, medicamentos utilizados para interrupção segura da gravidez. Esses remédios estão em falta no depósito da farmácia central do município, segundo Ana Morillo, assistente social que integra a Comissão de Saúde Sexual Integral do governo local.
Morillo também faz parte da equipe interdisciplinar que garante o acesso à IVE em um centro de saúde localizado no norte do distrito. No total, há cerca de cem centros de saúde no local, dos quais 80 realizam IVE. “Eles [o governo] não nos informaram se vão comprar ou não quando tudo acabar definitivamente”, contou.
Outras províncias também temem ficar sem suprimentos em pouco tempo. “Estamos recebendo consultas de gestantes que perguntam se ainda há IVE. É uma ameaça à implementação da lei que as pessoas questionem se é ou não um direito”, disse uma psicóloga, membro de uma equipe de IVE em um centro de saúde do subúrbio de Buenos Aires, o maior do país, que pediu para falar em condição de sigilo.
Por que isso importa?
- Movimentos antiaborto estão ganhando força no governo de Javier Milei
- Ataques contra a lei que garante o aborto na Argentina atingem também brasileiras, que estão entre os principais grupos estrangeiros que procuram o país para ter acesso ao procedimento
Gestantes perseguidas por movimentos antiaborto
Movimentos antiaborto estão ganhando mais força em vários lugares da Argentina. Em San Miguel, a cerca de 40 quilômetros da capital Buenos Aires, gestantes são bombardeadas por informações e vídeos que mostram fetos desmembrados em supostas simulações de abortos legais. Isso aconteceu com Erica*, de 29 anos, que está grávida de poucas semanas. Ela foi atraída a uma suposta ONG onde receberia aconselhamento. “Eles diziam que eu ia me arrepender, que as mulheres que abortam se arrependem”, contou Erica, que não lembra o nome da entidade nem das pessoas que a abordaram.
Erica é mãe de dois filhos pequenos – o mais novo tem um ano e três meses – e não quer ter outra criança. Especialmente no contexto de uma crise econômica tão grave que se aprofunda na Argentina. Ela atualmente não tem emprego e mora em um bairro pobre de San Miguel, um dos poucos distritos do país que foi declarado pelo governo local como “Pró-Vida” e não cumpre a lei da IVE.
Ela conta que eles enviaram pelo WhatsApp um folheto que dizia “deixe o bebê nascer” e vídeos, um deles é uma animação de feto que é desmembrado, com uma pinça inserida pela vulva da mulher. A sequência é brutal. A narração diz: “Depois eles montam como um quebra-cabeça fora do útero materno para garantir que tenha todas as partes e que nada tenha ficado dentro, pois caso contrário podem ocorrer infecções graves”. Em outro vídeo, um médico ginecologista fala sobre supostas infecções que podem colocar a vida em risco ao abortar com pílulas.
Gestantes que procuram o aborto legal em San Miguel são fichadas quando vão aos centros de saúde e abordadas com mensagens enganosas nas redes sociais. Agentes públicos chegam a ir de casa em casa para convencer pessoas a não praticar a interrupção da gravidez.
“Eles saem com um caminhão com um ultrassom e vão de casa em casa nos bairros mais pobres do distrito e fazem um ultrassom para que escutem os batimentos cardíacos do feto para criar um vínculo. Eles as têm fichadas em registros digitais. Os funcionários de saúde se orgulham de ‘ter ouvidos’ nos bairros para identificá-las”, conta uma pesquisadora da Red Transatlántica Feminista de resposta aos movimentos antidireitos, formada por especialistas da Europa e da América Latina, desde a Alemanha. Erica conseguiu um aborto legal em um hospital público de outro município.
O ideólogo da política antiaborto aplicada em San Miguel é Pablo de la Torre, um pediatra, pai de sete filhos, ligado ao grupo católico ultraconservador Opus Dei, fervoroso opositor do direito das mulheres de decidir sobre seus corpos. Ele é irmão do ex-prefeito de San Miguel. Ele assumiu a Secretaria Nacional da Infância e Família do Ministério do Capital Humano do governo de Javier Milei, onde pretende estender essa estratégia antiaborto de San Miguel para todo o país, com base no assédio e na perseguição às mulheres, especialmente das classes vulneráveis.
De la Torre foi um dos expositores “lenço celeste” — um movimento em resistência ao aborto legal – nas primeiras audiências em que a legalização do aborto foi debatido no Congresso argentino, em 2018. “Se essa lei for aprovada, haverá crianças argentinas que, em uma democracia, não poderão nascer, brincar, amar, rir ou chorar”, disse na ocasião. “Milhares de mulheres ficarão destruídas porque, acredite em mim, vi as sequelas e a síndrome pós-aborto é devastadora: depressão, tentativas de suicídio, baixa autoestima, recaídas na saúde mental próximas à data do aborto, choro fácil etc etc.”
Em 23 de março, De la Torre participou da nona Marcha pela Vida que aconteceu em Buenos Aires, uma manifestação realizada em comemoração ao “Dia da Criança por Nascer”, que foi instituído em 1998 na Argentina por um decreto do então presidente Carlos Menem. Como parte da celebração, este ano, a vice-presidente e presidente do Senado, Victoria Villarruel também fervorosa opositora do direito ao aborto ordenou que os balcões do Palácio Legislativo fossem iluminados com luzes celestes. O Ministério do Capital Humano divulgou nas redes sociais um vídeo alusivo com ecografias fetais e mulheres grávidas e a legenda “as mulheres grávidas levam em seu útero o futuro da Pátria”. Naquele dia, o presidente Javier Milei compartilhou em seus stories do Instagram um folheto com imagens de um embrião entre duas mãos e a frase: “245.000 argentinos perderam a vida pela Lei do Aborto”.
Direito sob ataque
De acordo com dados oficiais, nos dois primeiros anos de implementação da IVE, sancionada em dezembro de 2020, a quantidade de serviços de centros de saúde e hospitais estatais que começaram a oferecer o serviço dobrou em todo o país. As estatísticas oficiais mostram que entre janeiro de 2021 e outubro de 2023, foram garantidos na Argentina 245.015 abortos seguros e legais apenas em instituições públicas de saúde. Desde que a prática é legal, as mortes maternas diminuíram: em 2018, morreram 19 mulheres por aborto; em 2019, 18; em 2020, 15; em 2021, 9 e em 2022, 8.
Os ataques contra a Lei da IVE estão ganhando força no governo Milei, mas começaram, na realidade, logo após a sua sanção. Desde dezembro de 2020, setores antidireitos já fizeram mais de 30 representações na Justiça para declará-la inconstitucional. A maioria foi rejeitada. Mas há três que chegaram à Suprema Corte. Uma delas era patrocinada pelo advogado Rodolfo Barra, um conhecido jurista fervoroso opositor do direito ao aborto. Agora, Barra também faz parte do governo de Milei: ele é o chefe dos advogados do Estado e já manifestou o desejo de revogar a Lei da IVE.
Desde que assumiu a presidência em 10 de dezembro, Javier Milei tem se encarregado de expressar repetidamente em diferentes ambientes sua firme posição contrária à Lei de Interrupção Voluntária da Gravidez (IVE). Ele afirmou várias vezes que considera o “aborto como um assassinato agravado pelo vínculo”. Na campanha, Milei disse que, caso fosse eleito, “realizaria um plebiscito” sobre a Lei da IVE com a intenção de revogá-la, embora não esteja prevista na Constituição argentina a possibilidade de realizar uma consulta popular em matéria penal.
No início de fevereiro deste ano, e poucos dias antes de Milei visitar o papa Francisco no Vaticano, uma deputada do La Libertad Avanza, o partido libertário, apresentou um projeto para revogar a Lei da IVE. A iniciativa vai além e pretende modificar o Código Penal em relação aos abortos legais existentes no país desde 1921, retirando esse direito de meninas, mulheres e pessoas com capacidade de gestação que enfrentam uma gravidez forçada, resultante de estupro ou abuso sexual. O projeto permite o aborto apenas quando houver “perigo iminente” para a vida da mulher, colocando a Argentina entre os países com legislação mais restritiva. No entanto, curiosamente, Milei acabou desautorizando a iniciativa ao esclarecer que não era uma proposta do governo.
De qualquer forma, os ataques à Lei da IVE por parte do presidente são constantes. E não apenas o direito ao aborto é alvo persistente do discurso, mas também o ativismo feminista e as conquistas de ampliação de direitos para mulheres e diversidades nos últimos anos. Nos primeiros cem dias de seu governo, Milei eliminou o Ministério das Mulheres, Gêneros e Diversidades e o transformou em uma subsecretaria dentro do Ministério do Capital Humano, como rebatizou o Desenvolvimento Social; reduziu em 33% os gastos em políticas públicas que, segundo o próprio Estado, visam reduzir a desigualdade de gênero – esse ajuste foi mais forte do que o sofrido pelo total do orçamento nacional, que foi de cerca de 24%. Ele anunciou também a proibição da linguagem inclusiva na administração pública.
Em 8 de março passado, Karina Milei, irmã do presidente e secretária geral da Presidência, a quem ele chama de “O Chefe”, substituiu o Salão das Mulheres da Casa de Governo, onde se reuniam os quadros de figuras históricas, pioneiras de diferentes épocas, pelo Salão dos Próceres – sem nenhuma mulher – porque, afinal, argumentou o porta-voz presidencial ao fundamentar a medida, estava “discriminando os homens”. Esse anúncio foi feito enquanto os movimentos feministas se mobilizavam na primeira marcha do Dia Internacional da Mulher dentro do governo atual.
“Quem não pula votou no Milei / Quem não pula votou no Milei”, cantavam aproximadamente 100 mil manifestantes, que lotaram os arredores do Congresso Nacional. Os lenços verdes – símbolo da Campanha pelo Direito ao Aborto – foram mais uma vez uma senha, um amuleto, amarrados nos braços, mochilas, bolsas, como bandana e em volta do pescoço. “Fomos maré, agora seremos tsunami”, repetia a multidão. E alguns cartazes diziam isso. No entanto, algumas manifestantes, ao retornar em trens ou ônibus da marcha do 8M para suas casas, preferiram guardar seus lenços verdes por medo de ataques nas ruas. Não é que tenham ocorrido. Mas o medo existe. Os discursos de ódio promovidos por Milei contra o feminismo estão gerando, dizem as militantes, uma espécie de autocensura nas redes sociais por parte de ativistas e o medo de que essas agressões sejam levadas à prática na vida real.
A perseguição ao aborto legal ameaça o direito de argentinas e de pessoas estrangeiras gestantes que recorriam ao país para realizar o procedimento de forma segura. Em uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA) de um bairro periférico nos arredores de La Plata, capital da província de Buenos Aires, uma mulher tentou se infiltrar quando estava prestes a começar o aconselhamento para quatro mulheres que haviam ido para um IVE.
“Vim me informar. Sou uma cidadã”, disse a mulher que não estava registrada e se identificou como Débora. Isso aconteceu na segunda-feira, 5 de março. Ela tinha um celular escondido com o qual pretendia filmar a situação. O momento foi muito tenso. Eles conseguiram expulsá-la. “Depois soubemos que ela tinha estado do lado de fora da unidade de saúde fazendo perguntas às garotas que estavam lá para abortar e sugerindo outras alternativas além de interromper a gravidez”, contou à reportagem uma das profissionais de saúde que testemunharam a cena. Dois dias depois, a mesma mulher voltou, de maneira violenta, para tentar entrar novamente na unidade de saúde. Aos gritos, exigia ser deixada para ficar. Finalmente, o diretor da UPA e outra médica tiveram que intervir e conseguiram fazê-la sair.
A poucos quilômetros dali, no Hospital San Martín, na cidade de La Plata, capital da província de Buenos Aires, em comemoração ao 8 de março, eles publicaram em seu Instagram um vídeo institucional, em que trabalhadoras da saúde e de outros setores são vistas segurando cartazes que dizem “Nem um direito a menos”. Ao fundo, há um mural verde, com letras brancas destacando a legenda: “Aborto voluntário, legal e bonaerense [que quer dizer ‘de Buenos Aires]”. Pouco depois de ter sido postado na rede social, começaram os comentários violentos. “Na manhã seguinte, já tínhamos mais de cem comentários nos xingando, exigindo que direitos? […], que merecemos a prisão por cumprir a Lei da IVE…, entre muitas agressões verbais”, conta Mercedes Contreras, coordenadora da equipe interdisciplinar de IVE do hospital. Isso nunca tinha acontecido com eles antes.
Em Tucumán, menor província do país, no norte argentino, a Justiça está investigando uma ameaça anônima que uma médica que realiza abortos no setor público recebeu em sua casa no final de fevereiro. Segundo ela denunciou, nunca havia sido ameaçada antes.
No país das marés e dos lenços verdes, essas ainda são cenas isoladas, mas novas.
“Os cenários da extrema-direita são desoladores porque às narrativas abertamente misóginas que validam o desprezo pelas mulheres e diversidades se soma a desesperança de um plano econômico feito sob medida para alguns poucos. A fábrica de pobres inaugurada pelos governos neoliberais precisa de gravidezes que garantam mão de obra barata: mães crianças, obstáculos ao aborto, cuidadoras famintas, desfinanciamento das políticas de contracepção e mulheres sem opções é o que eles querem”, analisa a advogada feminista Soledad Deza, da ONG Mujeres x Mujeres, de Tucumán. Diante de um panorama bastante desolador, ela aposta na esperança e acrescenta: “Invocaremos outras solidariedades diante do ódio dos libertários porque sabemos que os dias mais felizes foram, são e serão feministas”.
* A identidade da entrevistada foi preservada a pedido
(*) Reportagem publicada originalmente na Agência Pública