Formas de bolo, cortadores de pizza, colheres de pau e de metal, panelas, leiteiras, caçarolas, bandejas e latas de diversos tamanhos foram alguns entre a ampla gama de apetrechos de cozinha utilizados nesta quinta-feira (07/06) por mais de 2.000 argentinos de classe média, que se concentraram em frente à sede do governo para protestar contra a administração de Cristina Kirchner.
No início da noite, em meio ao frio e ao ruído metálico, os manifestantes reclamaram das restrições à compra de dólares, da inflação e de acusações de corrupção. Eles pediam que a presidente argentina aparecesse na varanda da Casa Rosada. Em diversos cartazes acusaram o vice-presidente do país, Amado Boudou, de ser um “ladrão” e qualificaram o governo como uma “ditadura”.
Luciana Taddeo
“Estou cansado desta gente que só promete e não cumpre, que diz que os pobres são prioridade, quando os pobres só aumentam. Vivemos em uma ditadura encoberta, lamentavelmente”, afirmou ao Opera Mundi um argentino chamado Nahuel, que preferiu não revelar seu sobrenome.
Apesar do frio, que fez com que os termômetros argentinos não registrassem mais de um dígito nos últimos dias, a convocatória para o protesto obteve mais adesão do que na semana passada, quando o governo intensificou as restrições à compra de dólares no país. Os dois panelaços realizados até então, de menor expressão, se concentraram em bairros nobres de Buenos Aires e reuniram outras reivindicações.
NULL
NULL
“Pontualmente, começamos a nos manifestar devido aos dólares, porque a liberdade vem antes de tudo e quando ela é cortada, esse tipo de coisa acontece. Mas também estamos cansados da corrupção”, disse o empresário Brian Pava. “Este governo tem a teoria do Robin Hood”, afirmou ele, que esteve nesta mesma praça em 2008, nos protestos em apoio ao setor agropecuário, que resistia à aprovação do aumento da taxação aos produtores.
Luciana Taddeo
Neli Díaz, outra das manifestantes, contou que também foi à Praça de Maio em apoio ao campo, em 2008. Com um cortador giratório de pizza, batia em uma forma de bolo, cujos amassados registram um histórico de protestos contra o atual governo: “Quando comecei a me manifestar, ela estava novinha”, disse, rindo e mostrando o utensílio culinário deformado.
“Esta senhora”, disse com desdém em referencia a Cristina Kirchner, “acha que eu posso viver com uma aposentadoria de 1600 pesos [726 reais] e está muito enganada”, lamentou, afirmando protestar todas as quintas-feiras com sua forma de bolo em frente aos tribunais da capital argentina pelo aumento da pensão recebida pelos aposentados. “Só consigo viver porque tenho um apartamento, que comprei em 1974. Mas hoje as pessoas não têm dinheiro, não conseguem comprar nada”, diz.
Controvérsias
Após o segundo panelaço, jornais como Página 12 e Tiempo Argentino, alinhados ao governo, denunciaram que a organização dos protestos estava vinculada ao setor agropecuário e ao partido do prefeito Mauricio Macri, opositor ao kirchnerismo. Os manifestantes, no entanto, garantem que as reuniões são autoconvocadas por meio das redes sociais.
No último panelaço, a equipe de gravação do programa governista “6,7,8” foi agredido por um grupo de manifestantes. Nesta quinta-feira, algumas cenas de resistência foram vistas nos protestos, considerados “elitistas” por um setor da população. Em meio ao barulho de panelas em exigência à livre compra de dólares, um senhor de cabelos brancos levantava um cartaz com a mensagem “pesificação já”.
Outro, considerado “herói da resistência” por apoiadores do governo nas redes sociais, posicionou-se em um ponto afastado da multidão com um cartaz reivindicatório de que “A Praça é das Madres”, em referência às Mães da Praça de Maio, que lutam por justiça pelo assassinato e desaparição de seus filhos durante a ditadura argentina (1976-1983), e que, por anos, enfrentaram, naquele local, a repressão das forças armadas e policiais.
Greve
O panelaço desta quinta-feira coincidiu com uma nova greve nacional dos ruralistas argentinos, que paralisaram por uma semana a venda de grãos, carne e produtos não perecíveis. Raúl Rene Zorzón, produtor agropecuário do norte da província de Santa Fé, aproveitou uma viagem à capital do país para demonstrar sua insatisfação com as altas taxações ao setor, que resultou na queda da comercialização de produtos primários.
“Queremos que nos escutem. Estamos cansados de crises, de que nos tirem o pouco que temos com essas crises em benefício dos que hoje têm mais dólares acumulados”, disse, afirmando que Cristina Kirchner “perdeu os estribos”: “Essa mulher que não sabe conduzir o país e estamos à beira do que foi a crise de 2001. O câmbio e a inflação são graves, mas mais grave ainda é a negação do governo em reconhecer esta crise”, garantiu.
Em meio à multidão, um senhor com gorro russo levava um cartaz com a mensagem “URSS não”. O famoso canto de “Que se vayan todos” (“Que todos vão embora”, em português), uma das principais expressões que levaram à renúncia do ex-presidente Fernando De La Rúa no estopim da crise de 2001, também foi entoado pelos manifestantes.
Apesar do pedido cantado, a maioria dos entrevistados pelo Opera Mundi negou o desejo de uma renúncia presidencial. “É só uma expressão. Eu não quero que ninguém renuncie, quero que as coisas sejam feitas como devem ser. Não acredito em nenhum salvador para entrar no lugar da presidente, são todos ruins”, afirmou Nahuel.
“Não queremos a renúncia, ainda temos que aprender a votar, só queremos que ela escute o povo”, disse Brian, enquanto batia sua panela na grade disposta no meio da praça, para evitar que os manifestantes se aproximassem da Casa Rosada.
Alguns cantos, no entanto, destoavam da negativa em desejar a renúncia: “Vai cair, vai cair, a ditadura dos ‘K’” era uma delas. “Senhora presidenta, por favor, tenha piedade dos argentinos e se retire com dignidade”, disse a aposentada Clelia Duran à reportagem, afirmando temer a insegurança no país: “Você sai de casa e não sabe se vai voltar”, explicou.
Luciana Taddeo
Durante as entrevistas, os manifestantes demonstraram desejo de que a Argentina se espelhasse no Brasil, que “encontrou a fórmula para se aproximar do primeiro mundo”. “‘Esta mulher’ continua aliada com os países do último mundo”, queixou-se Brian, em alusão à presidente argentina.
Grupos menores de manifestantes fizeram soar as panelas em outros pontos da cidade. Um protesto também foi organizado em frente à residência presidencial, em Olivos, na região metropolitana de Buenos Aires.
Segundo os manifestantes, os panelaços devem acontecer todas as quintas-feiras até que o governo comece a mostrar intenções de mudança no estilo de condução do país. “Espero que não tenhamos mais que quebrar panelas”, disse Brian.