Entrar em Wharf Jéremie, uma das maiores favelas do Haiti, dá uma sensação imediata de claustrofobia. As ruas não são ruas, e sim espaços que sobram entre um barraco e outro. São corredores forrados de chapas de metal, papelão, farrapos, papel e, em poucos casos, de pedaços de madeira e tijolos, misturados com dejetos humanos, lixo e resíduos por todo lado. As vielas estão cheias de lama, não existe luz, água nem esgoto, e as crianças comem e vivem junto com os porcos.
Federico Mastrogiovanni
Wharf Jéremie é o bairro mais pobre e perigoso de Porto Príncipe, segundo agentes internacionais. Fica na beira d’água (daí o nome wharf, que em inglês significa “trapiche”), ao lado da favela mais conhecida de Cité Soleil – que, até a chegada da Minustah (Missão das Nações Unidas para Estabilização do Haiti), era considerada zona sem lei para traficantes e criminosos de todo tipo.
Agora, é Wharf Jéremie que detém a primazia da violência no Haiti e evoca medo e uma sensação de insegurança. Mas, além de criminosos, há pessoas que fazem qualquer coisa para sobreviver. Considerando as condições de vida e as casas onde as pessoas moram, no entanto, as atividades não parecem ser muito rentáveis.
Leia também:
Galeria de imagens: Haiti um ano depois do terremoto
Um ano após terremoto, escombros ainda dominam paisagem do Haiti
Valas comuns para vítimas de terremoto no Haiti agora recebem mortos da cólera
A falta de esgoto gera pequenas línguas negras nas ruas, nas quais não é raro ver mulheres lavando roupa ou crianças tomando banho. O contágio pelo vibrião da cólera, que matou milhares de pessoas no país desde novembro, começou a se difundir também nesta favela, e as condições higiênicas são determinantes para a proliferação.
“Até a Cruz Vermelha está proibida de entrar nesta área, porque só há uma via de acesso. Se acontecer algo, um carro ou caminhão ficaria preso entre a sujeira, os porcos e os pobres”, conta o líder comunitário Lucien, que ajuda a combater a cólera. “Mas ninguém parece entender que somos gente, não animais.”
Ver o tempo passar
A vida no bairro é lenta e monótona. Pessoas caminham sem ocupação, esperando que algo aconteça, nem que seja uma briga. Joga-se dominó, ferve-se água para alguma sopa e assiste-se ao tempo passar. E mesmo durante os confrontos de dezembro, quando as ruas de Porto Príncipe ardiam em meio aos protestos pré-eleitorais, tudo continuou igual em Wharf Jéremie. A maioria dos moradores do bairro nem sequer foi votar, pois não tem documento de identidade.
Federico Mastrogiovanni
“Ninguém se preocupa realmente com o que acontece nas eleições”, explica em bom francês o mototaxista Joseph, um dos que estacionam em frente ao mercado do porto, na periferia de Wharf Jéremie. “E neste bairro não houve uma verdadeira campanha eleitoral, já que não podíamos votar, de qualquer forma. No bairro, interessa muito pouco o que acontece lá fora”.
O assistencialismo é total. O pouco dinheiro que circula vem de atividades criminosas, do tráfico de drogas que chegam por barcos e são distribuídas na ilha ou enviadas ao mercado dos Estados Unidos. Outra parte vem das remessas dos milhares de imigrantes que conseguiram ir embora e chegar a Miami, Nova York, Paris ou Montreal.
“De repente vem alguém, dá dinheiro, dá comida e diz que temos de participar de uma manifestação, ou fazer uma barricada, ou queimar alguma coisa. Nós vamos, fazemos isso e pronto. Somos desprezados neste lugar, mas não temos muita alternativa”, relata Joseph.
Reportagens de 2010 sobre terremoto no Haiti:
Após terremoto, Porto Príncipe vira cidade-cemitério
ONU homenageia chefes da missão de paz mortos no Haiti
Demora na remoção de corpos ameaça gerar epidemias no Haiti
Ajuda começa a ser distribuída, mas haitianos pedem para sair do país
A poucos minutos dos escombros, vende-se champanhe a 150 dólares
Falhas na ajuda humanitária provocam violência no Haiti, enquanto crescem críticas à atuação dos EUA
Para os ricos de Porto Príncipe, era como se o terremoto tivesse acontecido num lugar distante
“Eu gritava e fazia sons quando não havia barulho”, diz funcionário da ONU resgatado dos escombros
Violência
Depois do terremoto de 12 de janeiro de 2010, centenas de presos que sobreviveram (e fugiram) ao desabamento de uma penitenciária refugiaram-se em Wharf Jéremie, aumentando a taxa de criminalidade da favela e modificando as relações entre os traficantes locais. Como se fosse pouco conflito, contam os moradores, há ainda as incursões esporádicas dos capacetes-azuis da ONU – que, embora sejam de uma missão de paz, são capazes de agir com violência.
“Não se pode chegar aqui, como faz a Minustah, impondo sua presença, impondo regras, sem ter nenhuma relação com os demais, sem pensar que, quando for embora, as pessoas ficarão. Ninguém pode chegar na sua casa apontando fuzis, anunciando que está trazendo ajuda, obrigando a fazer coisas sem que você saiba nada, sem que você possa conferir se a pessoa é confiável ou não. Isto, o pessoal da Minustah não entende. Por isso, em tantos, casos eles são atacados a facadas”, diz Lucien.
Siga o Opera Mundi no Twitter
Conheça nossa página no Facebook
NULL
NULL
NULL