Guanajuato, estado localizado na região central do México, é historicamente conhecido pela ampla oferta de atrações culturais e turísticas. No entanto, outra faceta se mantém alheia aos visitantes. No estado, mulheres estão suscetíveis a condenações de até 30 anos por abortarem, mesmo em casos espontâneos. A explicação para esse fenômeno – condenado pela ONU (Organização das Nações Unidas) e por grupos de direitos humanos mexicanos – encontra raízes culturais e religiosas.
Em 2001, o estado definiu que qualquer tipo de aborto (voluntário e involuntário, espontâneo por desnutrição, limitação física ou doença ou após estupro) poderia ser considerado um “homicídio em grau de parentesco em relação a um produto em gestação”, com penas entre 15 e 30 anos de prisão. Atualmente, 166 mulheres são investigadas pelo crime. No Cereso (Centro de Readaptação Social do Estado) de Guanajuato, seis mulheres cumprem penas que variam de 25 a 30 anos. Três delas concordaram em relatar suas histórias.
Federico Mastrogiovanni
Verónica Cruz Sánchez, diretora do Centro Las Libres de apoio às mulheres de Guanajuato
“Estou aqui há oito anos”, conta María Araceli Camargo Juárez, de 27 anos, entre lágrimas. Nascida em uma comunidade pobre no noroeste do estado, ela não entende como foi parar na cadeia após perder o filho. “Ainda espero que se faça justiça, pois sei que sou inocente”, afirmou.
Não foi essa a opinião do médico que, em 23 de agosto de 2002, quando Juárez chegou à clínica sangrando, imediatamente a denunciou, sem ao menos examiná-la. Tampouco a da advogada de defesa, María Guadalupe Cruces Luna, que desde o início não acreditou na jovem, então com 18 anos: “É justo que a castiguem, pois você é culpada e passará o resto da vida na cadeia, como assassina”, disse Cruces na época, segundo relatou a jovem.
De acordo com ela, o aborto foi acidental. “Não podia dizer que estava grávida pela segunda vez. Minha família avisou que, caso engravidasse, me expulsaria de casa”, explicou. “No dia me senti mal, achei que estava com diarréia. No vaso sanitário senti que uma bolsa grande havia saído de mim. Voltei ao quarto, sangrando, e com uma tesoura cortei o cordão umbilical. Após desmaiar na cama, decidiram me levar a uma clínica, onde fui denunciada”. Sentença: 25 anos de prisão.
Ana Rosa Padrón Alarcón tinha 27 anos quando engravidou. Na noite de 19 de março de 2008, após seis meses de gestação, ela desmaiou em casa. Os parentes a encontraram caída no quintal, com o corpo da filha de seis meses entre as pernas. “Queríamos enterrá-la”, relatou Alarcón. “Meu pai foi até a cidade de Dolores Higaldo para se informar sobre o enterro, pois queríamos fazer as coisas direito. Mas alguém da família me denunciou, talvez a esposa de meu tio.”
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Os momentos seguintes determinaram o destino da jovem. “A polícia então me levou ao Ministério Público, onde fui ameaçada, insultada e chamada de assassina pelos funcionários”. A mesma advogada de Juárez, Cruces Luna, foi designada para o caso. “Ela me disse que eu seria condenada pelo o que havia feito, que merecia o castigo máximo”. Sentença: 29 anos de prisão.
Segundo o depoimento de Alarcón, a advogada não quis que as provas periciais fossem coletadas, entre outras irregularidades. “Por isso, meu marido, após eu cumprir nove meses de prisão, contratou um advogado”. Ela aguarda agora a análise de um recurso.
Yolanda Martinez Montoya foi denunciada em 17 de janeiro de 2004, após a médica de plantão no hospital central afirmar que ela havia provocado um aborto. Sem surpresas, Motoya recebeu a mesma advogada de defesa que as colegas. “Quando finalmente a conheci, ela me disse: 'Reze muito para Deus, pois você será condenada a muitos anos. A partir do momento em que tiram seus filhos, vocês são culpadas e merecem muitos anos de prisão’”. Sentença: 25 anos de prisão.
Destino diferente teve Alma Yareli Salazar Saldaña, libertada em 9 de junho após apelar à Justiça. Segundo o juiz, não foi possível comprovar que a criança havia nascido viva nem que Salazar a havia matado. A absolvição veio após condenação em primeira instância a 27 anos e seis meses de prisão.
Federico Mastrogiovanni
Alma e Veronica: a libertação da jovem contou com o apoio da entidade de direitos humanos mexicana
“Pude sair da prisão graças ao trabalho das advogadas do Centro Las Libres e à intervenção do advogado Javier Cruz Angulo Novara, da Clínica de Interesse Público do CIDE”, contou ao Opera Mundi. “Tive um bom grupo de advogados, que se interessou pelo caso devido à série de irregularidades. Por exemplo, um dos agravos denunciados foi o abuso sexual que sofri do médico do Ministério Público, cometido na frente de outras pessoas e até mesmo documentado, e que não foi levado em consideração no primeiro julgamento.”
Gênese do problema
Os casos têm como similaridade a origem pobre das mulheres. “As estatísticas se repetem com todas aquelas envolvidas em julgamentos por aborto. Além disso, a maioria vive em comunidades pobres, extremamente religiosas”, explica Verónica Cruz Sánchez, diretora do Centro Las Libres, de Guanajuato. No local, mulheres vítimas de violência de gênero recebem, sem qualquer custo, apoio legal e psicológico. “Pergunto-me porque essas coisas não acontecem entre as famílias ricas. Na verdade, todos sabem que existem médicos que, de manhã, denunciam as mulheres pobres por aborto e, à tarde, fazem abortos nas mulheres ricas em suas clínicas. É tudo uma questão de dinheiro e também, de dupla moral.”
“É justamente nos hospitais que começa essa verdadeira caça às bruxas”, afirmou Cruz. “Todos os atores dessa rede se vestem de juiz e julgam as mulheres como se tivessem a autoridade moral e institucional para fazê-lo. Um médico não é obrigado a denunciar ninguém. Ele deveria amparar seus pacientes com o segredo profissional, mas em Guanajuato ele é o primeiro a julgar.”
Conforme explicou, “há uma cadeia de condenação que começa nas ruas, chega aos hospitais, em seguida aos tribunais e permite que se repitam violações de direitos fundamentais”. Segundo ela, em Guanajuato, ocorre a ação de setores fundamentalistas da Igreja Católica, como os Legionários de Cristo ou o Opus Dei, e “das instituições supostamente leigas do Estado. As instituições públicas absorveram uma moral de ultra-direita que ameaça os direitos de todos”, afirmou Cruz.
Federico Mastrogiovanni
Manifestação na Cidade do México denuncia a prisão das seis mulheres de Guanajuato
“O que é importante sublinhar”, continuou Cruz, “é que em Guanajuato não está garantida a igualdade perante a lei. Ser mulher e pobre limita o acesso a bons advogados. Além disso, mulheres que sofrem um aborto espontâneo são castigadas como se fossem assassinas, ao considerar o ato como um homicídio.”
No Distrito Federal a realidade é diferente: o aborto não é penalizado se feito nas primeiras 12 semanas de gravidez.
Nações Unidas
Em visita ao México no começo do mês, a alta comissária adjunta de Direitos Humanos das Nações Unidas, Kyung-wha Kang foi impedida de se encontrar com as jovens detidas em Guanajuato. “O México terá de se submeter a uma revisão da Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher [documento adotado em 1979 pela Assembléia Geral da ONU] em algum momento do ano que vem. Sei que isso gerará debates”, disse à agência Efe Kyung-wha Kang.
A funcionária afirmou que as autoridades mexicanas devem trabalhar mais com as mulheres para “outorgar-lhes educação, conhecimento e os meios necessários para que possam decidir com liberdade e de forma responsável quantos filhos terá e quando.”
O governo de Guanajuato nega que as seis mulheres tenham sido condenadas injustamente.
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