“Tirem a terra e façam tudo possível para tirar a gente daqui, não importa se vivos ou mortos”, pediu o operário de minas Yonny Barrios Rojas, soterrado há quase dois meses na mina de San José, no Chile, na primeira carta que enviou à superfície. Apesar da alegria trazida com a confirmação de que o mineiro estava vivo, sua família chorou angustiada ao perceber o desespero de quem estava há 17 dias preso a mais de 700 metros de profundidade.
Yonny é uma das 33 vítimas do desmoronamento de uma mina localizada a cerca de 45 quilômetros da cidade de Copiapó, deserto do Atacama, no norte do Chile, no dia 5 de agosto. Quando o teto do local de extração dos minérios cedeu, eles ficaram confinados em uma galeria subterrânea de 25 metros quadrados. Depois de dias sem comunicação, equipes de resgate divulgaram que os 33 trabalhadores estavam vivos, mas presos. Após os primeiros estudos de viabilidade, as autoridades anunciaram que o resgate poderia levar até quatro meses, e que a estratégia seria abrir um duto de 66 centímetros para retirar os mineiros, um de cada vez. Dois planos já foram tentados, inclusive com ajuda da NASA (agência espacial dos EUA), e a segunda máquina usada para perfuração só atingiu a galeria onde os trabalhadores estão na semana passada.
No próprio dia do desmoronamento, os parentes de cada um dos trabalhadores presos foram se instalando na entrada da mina e montaram um acampamento, batizado de “Esperança”, onde passam dias e noites. Zulemy lembra que, sem nenhum sinal de vida ou da localização em que os mineiros se encontravam, as pessoas sentavam nas pedras e nos morros da região, esperando alguma movimentação: “Este lugar era bem diferente, todos ficavam sentados, com cara de tristeza, pensando, preocupados”.
Luciana Taddeo/Opera Mundi
Família de Claudio e Mario Gómez almoça em uma das tendas fora da mina, no feriado de independência
Missas e orações com velas eram rotina diária. “Todas as noites rezávamos por todos, desejando que estivessem vivos os 33. Este lugar ficava lindo, porque as chamas eram nossa única iluminação. Ainda não tinham colocado estes postes de luz”, relata. Após o ato, os familiares subiam no morro que fecha o acampamento e colocavam as velas nas 33 bandeiras chilenas colocadas no morro. Cada uma delas representa um dos mineiros.
Taça de ouro
Em quéchua, o nome Copiapó significa “taça de ouro”, devido à riqueza das jazidas da região. No caminho até a mina de San José ou San Esteban, como é conhecida, é possível ver caminhões em várias das montanhas de onde se extraem cobre, ouro e ferro. A região que abriga a mina é rica em metais e amplamente explorada por empresas chilenas e estrangeiras.
A carta foi recebida após 17 dias de tensão de seus parentes, que ficaram em vigília, esperando notícias de onde estavam as vítimas soterradas. Zulemy Barrios Rojas, irmã de Yonny, é uma entre muitas pessoas instaladas no local que afirmam ter sido a primeira a saber da tragédia. Quando a rádio local anunciou o acidente, ela se encarregou de ligar para os seus outros sete irmãos, que moram em diferentes regiões do país, mesmo sem a confirmação de quem eram os mineiros presos. Ela sabia que Yonny era um deles.
Não era dia de serviço, mas Yonny tinha ido a San José para compensar dois dias não trabalhados. Ele faria parte da equipe que trabalha na superfície da mina. Mas, como um dos companheiros que participaria da extração no interior da mina faltou, pediram a Yonny que o substituísse. “Seriam dois dias”, relata ele à família em uma das últimas cartas, “mas acabaram se transformando em dois meses”.
Falta de esperança
Na tarde daquela quinta-feira (5/8), Claudio Gómez Heredia dirigia um caminhão, e planejava procurar uma mina para trabalhar no fim de semana, como costumava fazer com os irmãos. Filho de mineiro e pertencente a uma família de mesma tradição, Claudio sempre pensa no ofício, mesmo nos períodos em que trabalha com outras atividades. De fato, no fim de semana Claudio estava em uma mina, mas não da maneira que esperava.
Luciana Taddeo/Opera Mundi
Parente de um dos mineiros presos escreve mensagem para ser enviada para galeria subterrânea
Pelo rádio do caminhão, ele soube do acidente. Ligou para a esposa do irmão para confirmar se era turno dele, e a resposta foi a pior: “O Mario está preso na mina”. Ao lado da cunhada e outros parentes, Claudio foi para a entrada da mina de San José e chegou a propor às autoridades que lideravam a busca que ele e outros mineiros se encarregassem das escavações, montando escadas de madeira para que os companheiros saíssem pela chaminé.
Diante da negativa, preparou uma barraca junto a outras famílias de mineiros e, por duas semanas, continuou sem notícias do irmão. “Depois de alguns dias, esperávamos o pior. Este foi o resgate mais demorado após um acidente assim. Eles tentaram subir pelas chaminés, mas não tinham escada. Sete dias após o desabamento, essas saídas ficaram bloqueadas. Não deixaram nem ver como estava o lugar, dizendo que não queriam mais acidentes”, conta.
Prova de vida
A manhã do dia 22 de agosto, no entanto, começou diferente. Logo cedo, o movimento do acampamento chamou a atenção da filha de Zulemy. “As pessoas saíam das barracas, cochichavam e não deixavam os conhecidos ficarem deitados. “Minha filha me disse que alguma coisa estranha estava acontecendo, porque ninguém acorda tão cedo aqui e já tinha muita gente nas ruas, conversando, ansiosas”, lembra. “Sabíamos que viria uma notícia, mas não se seria boa ou ruim, estávamos muito nervosos”.
A novidade não demorou a chegar. Segundo Zulemy, os perfuradores tinham recebido um bilhete dos mineiros, mas, como o presidente chileno visitaria o acampamento na tarde daquele dia, preferiram esperar que ele chegasse, trazendo as boas novas. No entanto, um dos perfuradores, amigo do mineiro Carlos Barrios, não aguentou e desceu ao acampamento para contar o ocorrido a Griselda Godoy, madrasta dele. “Estávamos almoçando, quando ele nos disse que escutaram batidas na barra de perfuração e que depois os mineiros tinham mandado um bilhete amarrado”, lembra ela.
Naquela tarde, o presidente Sebastián Piñera reuniu os familiares dizendo que trazia uma boa notícia. Tirou do bolso um bilhete que anunciava “Estamos bem no refúgio, os 33”. “Foi uma emoção, todos começaram a chacoalhar as garrafas de água, como se fosse champanhe, e ficamos todos molhados. Não sentíamos nada, era muita felicidade”, conta Zulemy.
Experiência
A mensagem em letras vermelhas foi escrita por Mario Gómez, irmão de Claudio e veterano do grupo, que começou a trabalhar nas minas aos 12 anos e já tem 51 de profissão. Claudio sabe que o irmão aguenta jejuar por alguns dias, como já fez em outra ocasião. Em 1985, os dois foram juntos ao Brasil, com o objetivo de trabalhar como marinheiros. Alguns meses depois, perceberam de que não conseguiriam o emprego, e decidiram embarcar em um petroleiro grego.
Luciana Taddeo/Opera Mundi
A paloma, meio usado para enviar recados para baixo
Os dois irmãos conseguiram entrar clandestinamente na casa de máquinas, onde ficaram escondidos durante dez dias. “Encontramos uma torneira de água quente e usamos o sapato para beber. Não era água pura, mas conseguimos aguentar 11 dias sem comer nada. Quando já estávamos cambaleando, decidimos nos apresentar ao capitão, que ficou furioso”, relata, com uma risada. Os irmãos desembarcaram um mês depois na Índia e passaram mais um mês no Brasil, antes de voltar para a mineração chilena.
Desta vez, quando encontrados na mina, os operários ainda estavam em boas condições de saúde, apesar de enfraquecidos e com feridas na pele e nas unhas, devido aos fungos que se proliferam com a umidade. Yonny Barrios tinha conhecimentos de primeiros socorros e virou o médico do grupo. Os especialistas que acompanharam o resgate pediram que ele aplicasse injeções de vitaminas, vacinas e remédios em cada um dos companheiros e também que tirasse amostras de sangue dos sentiam dores.
Inferno
Os primeiros vídeos enviados à superfície, com os mineiros barbudos e sujos, chocaram os familiares. Nas primeiras cartas para a família, Yonny dizia que se sentiam como se estivesse “no inferno” e que “viu a morte de perto” durante os três primeiros dias, quando escutava fortes explosões de terra e pedras caindo. “Com 12 ou 13 dias, ele já deixava a garrafa d’água barrenta que bebia perto da cabeça, porque não tinha forças para levantar. Ficava tonto, via tudo embaçado. Ele diz que prefere não contar o que tiveram que fazer e o comer para sobreviver”, conta a irmã.
O psicólogo, que se reúne frequentemente com os familiares dos mineiros, orienta que, nas cartas, os parentes insistam nas afirmações positivas, “sem perguntar essas coisas ou pressioná-los, por que eles ainda não estão bem”, diz Zulemy.
A preocupação deu lugar à tranquilidade quando foram enviados os primeiros remédios, comida e oxigênio para o refúgio. A cada dia, as mães dos mineiros enrolam roupas limpas em um jornal, na forma de um fino cilindro, para enviar aos filhos. As cartas são enviadas em recipientes de plásticos apelidados de “palomas” (“pombas”, em espanhol), dobradas ao máximo. Nas maiores, enviam lápis, canetas e livros em miniatura para o fundo da mina.
Ruído das máquinas
“Meu irmão sempre escreve às mulheres da família para que elas fiquem tranquilas, que em 15 dias eles sairão da mina. Eles escutam o barulho das máquinas e criam expectativas. Nosso medo é que eles entrem em desespero lá embaixo, porque aqui de fora nos dizem que o resgate demorará mais e nos proibiram de contar para eles esta previsão”, diz Claudio.
Apesar das últimas estimativas oficiais, de que os mineiros devem sair da mina no início de novembro (com a chegada de uma nova máquina que perfura a um diâmetro maior), a maioria dos familiares acredita que a data mais provável seja a segunda semana de outubro.
Muitos parentes dos mineiros não conseguem dormir nas noites em que não escutam uma máquina trabalhando. “Esta é nossa tranquilidade, saber que todos os esforços estão sendo feitos 24 horas para tirá-los de lá”, afirma Griselda.
Amantes
A preocupação também promoveu encontros indesejados. Mulheres, ex-mulheres e amantes de mineiros se cruzam no acampamento e disputam o papel de cônjuge oficial e de mães. Houve um caso de escândalo, envolvendo o mineiro Yonny, porque não queriam que uma das mulheres que apareceu no acampamento, reivindicando ser casada com o mineiro, recebesse a credencial para permanecer no local. As duas esposas de Yonny não se conheciam até então.
“Graças a Deus, não a conheci. Se ela não tem papéis que provem que é casada, não pode estar aqui”, afirma a irmã do mineiro. Segundo a piada interna entre os familiares e jornalistas presentes no local, só resgatarão 32 dos trabalhadores soterrados, porque um, ao saber de toda a confusão, provavelmente preferirá ficar na mina.
O mesmo aconteceu com Griselda, madastra de Carlos Barrios: “Ele sempre manda roupas para que eu lave, mas uma vez a mãe dele pegou o pacote que estava no meu nome, dizendo que ela tinha direito como mãe. Algumas conhecidas minhas brigaram com ela e pegaram as roupas, porque ela não pode retirar algo que está no nome de outra pessoa”, conta.
Perigo iminente
As famílias presentes relatam também outros acidentes na mina de San José, anteriores a este que deixou soterrados os 33 trabalhadores. Segundo Claudio Gomez, os mineiros sabiam que trabalhavam em um lugar perigoso, em que não se seguiam as normas de segurança relativas ao limite permitido de escavação: “Todos sabiam, mas com a necessidade de alimentar uma família, acabamos não pensando no que pode acontecer”.
Griselda conta que Carlos Barrios há muito tempo mostrava preocupação com as condições do seu trabalho e manifestava o desejo de mudar de atividade: “Ele me contava que a mina estava perigosa, que via as pedras caindo aos poucos, como se avisassem que algo passaria”. Segundo Zulemy, Yonny também mencionava a iminência de um novo acidente: “Menos de um mês antes deste desmoronamento, um trabalhador perdeu a perna, pela queda de uma rocha. Esta mina estava caindo aos poucos, às vezes eles se salvavam de desmoronamentos, mas estes menores nunca são noticiados”.
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