Há dez anos, uma brigada de médicos cubanos presta serviço no Haiti, atendendo às mais variadas necessidades sanitárias de uma população cuja expectativa de vida não ultrapassa os 45 anos. É um trabalho que exige sacrifício e, principalmente, um permanente improviso.
Bom exemplo disso foram as primeiras horas depois do terremoto de 12 de janeiro que destruiu a capital haitiana, quando a maioria dos médicos, oftalmologistas de profissão, tiveram de se converter em clínicos gerais, cirurgiões e ortopedistas.
Também foi chamada a colaborar uma brigada de funcionários que não têm funções médicas, mas sim de apoio, e organizaram um salão de operações em menos de uma hora. O trabalho segue até hoje e é feito em colaboração com a brigada norte-americana, deixando as divergências políticas de lado.
“Foi um desafio, um desafio permanente, mas não havia tempo a perder. Tivemos de correr para os salões de operações, porque o que começou a entrar por essa porta foi muita gente”, conta ao Opera Mundi o coordenador da brigada médica cubana no Hospital de La Paix, Carlos Guillén.
Médicos cubanos Carlos Guillén e Xiomara Alvarez no Hospital de la Paix
A terra começou a tremer pouco antes das cinco da tarde e os primeiros feridos chegaram ao hospital minutos depois. Tinham pernas quebradas, braços com feridas profundas e fraturas expostas, traumatismos cranianos… Toda sorte de possíveis conseqüências sanitárias de um terremoto apareceram, de repente, diante da brigada, que comparte o hospital com outros médicos do continente americano.
“Eles começaram a chegar ao anexo do hospital militar, que está aqui ao lado, mas eles não deram conta e logo vieram para cá. Nós começamos a operar sem perder um minuto. Estabelecemos prioridades, que eram prestar atenção às crianças, aos idosos e realizar esse trabalho terrível que são as amputações. Você imagina o que é um oftalmologista ter de fazer amputações? Não é brincadeira, mas nossos médicos conseguiram”, conta Guillén, orgulhoso e emocionado.
No primeiro dia, a brigada afirma que recebeu e tratou 1.500 pessoas. Três dias depois, já tinham visto 4.000 pacientes. “Os médicos não descansam. A gente descansa quando pode e dorme onde pode”, afirma.
Desde então, Havana já enviou a Porto Príncipe outra brigada de médicos, desta vez composta por cirurgiões, médicos especialistas e enfermeiras, que foram distribuídos entre dois hospitais ainda de pé na cidade – La Paix e Renaissance – e pelos hospitais de campanha.
“Tudo bem, eles nos atendem bem, estão tratando minha mulher e meu filho. Nossa casa caiu, meu filho tratou de salvar minha mulher, mas ficou ferido num braço”, contou Marcelin Octeux, que chegou ao hospital de La Paix uma hora depois do terremoto, com a mulher e o filho. Ela passou meia hora debaixo dos escombros, mas com a ajuda do filho e do vizinho, conseguiu sair.
Um dos problema do centro assistencial é a comida para os pacientes. Por ora, eles vivem do que chega das ajudas internacionais, mas esse alimento é destinado apenas aos pacientes. Os médicos dispõem de seus próprios mantimentos, explicou uma médica mexicana.
Família Octeux chegou ao hospital uma hora após o terremoto
Cuba e EUA
Menos de 24 horas depois do terremoto, Cuba abriu seu espaço aéreo aos aviões norte-americanos para facilitar o acesso ao Haiti, o que permitiu uma economia de 90 minutos na viagem. Em terra, os dois países mantém uma discreta mas eficiente colaboração, da qual nenhuma das partes quer falar muito.
Ao contrário do que afirmou esta semana uma porta-voz do Departamento de Estado, os médicos dos dois países trabalham ombro a ombro e compartilham os recursos disponíveis. Segundo Guillén, todas as manhãs chega ao aeroporto de Porto Príncipe um avião enviado da ilha com os materiais necessários.
Alguns governos acusaram os Estados Unidos de estarem aproveitando a tragédia no Haiti para voltar a ocupar militarmente o país, ignorando o fato de que uma missão das Nações Unidas, liderada pelo Brasil, está encarregada disso desde 2004. Um capitão da marinha norte-americana, que pediu não ser identificado porque não está autorizado a falar do tema com a imprensa, disse que estes países deveriam se preocupar em ajudar tanto quanto EUA e Cuba.
“Nisso os cubanos têm sido fantástico. Esqueceram a política e reforçaram sua ajuda aos haitianos e nos abriram seu espaço aéreo. Quem pensa que nós não prestamos atenção nem valorizamos isso está completamente enganado. O Chávez [presidente da Venezuela] fala por falar, ele que siga o exemplo dos cubanos”, comentou ao Opera Mundi.
Leogane
Uma das zonas mais afetadas, mas esquecida pela imprensa e pelas brigadas médicas internacionais, é a cidade de Leogane, ao sul da capital haitiana. Ali, segundo refugiados que chegaram a Porto Príncipe, mais de dois terços da população morreu.
“Já mandamos uma brigada para lá, que já começou a operar, já fez umas 20 cirurgias”, acrescentou Guillén. Neste momento, há 3.500 médicos cubanos no Haiti, mas nos últimos 10 anos já passaram pelo país uns 30.000.
“No Haiti, antes do terremoto, o mais impressionante, o mais difícil, era ver uma criança na rua descalça. Mas agora não só estão descalças como olham com um olhar de desespero que você prefere esquecer”, acrescentou.
Num ponto, os médicos cubanos e, consequentemente, o resto da população deu sorte. No bairro onde vivem, todas as casas ruíram, menos a da brigada.
* Texto e fotos.
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