Eles são fonte de esperança para quem busca milagres ou de conforto para quem se vê em situações-limite. São personagens históricos e até mesmo cantores de sucesso: os santos populares na Argentina, país do primeiro papa latino-americano, mobilizam milhares de fieis a diferentes pontos de peregrinação todos os anos.
Apesar de estar fora da relação oficial de santos católicos, muitas dessas entidades são toleradas e até mesmo incorporadas de maneira informal pela Igreja. Entre elas está o Gauchito Gil, espécie de Robin Hood que teria morrido entre mediados e fim do século XIX durante as guerras civis que marcaram os tempos posteriores à independência da Argentina (1810) e duraram cerca de 70 anos.
Wikimedia Commons
Gauchito e San La Muerte: figuras pagãs convivem com catolicismo no país de origem do papa Francisco
Antonio Mamerto Gil Núñez foi um “gaúcho” (espécie de vaqueiro das pampas argentinas), que é parte da construção da identidade nacional no país. É também um dos santos populares de maior devoção. Reza a lenda que morreu em um 8 de janeiro, mas não há consenso sobre o ano de seu falecimento. Seu santuário mais importante fica na província (estado) argentino de Corrientes, próximo à cidade de Mercedes, região onde o Gauchito teria vivido.
É possível encontrar altares em sua homenagem em estradas que cortam a Argentina e até mesmo em regiões centrais da cidade de Buenos Aires. O primeiro milagre atribuído a ele é o de haver curado o filho doente de seu assassino pouco depois de morrer.
Segundo a crença popular, Antonio Mamerto foi preso por haver desertado do Exército e, no momento em que um policial iria executá-lo, avisou que seria indultado pelos crimes dos quais era acusado e que o filho de seu verdugo estava muito doente – e que seria salvo caso o executor rezasse para ele, já que estava derramando sangue inocente. O Gauchito Gil virou santo popular pouco depois de morrer, quando o policial voltou à casa e confirmou as previsões de sua vítima.
Leia também: Apostasia coletiva marca ativismo por Estado laico na Argentina
As guerras civis do século XIX não legaram somente um santo popular aos argentinos. A história da Defunta Correa, muito cultuada na zona da cordilheira dos Andes, também está vinculada às batalhas daquela época. Deolinda Correa teria saído de casa para acompanhar seu marido, recrutado para participar dos enfrentamentos, junto ao filho do casal, ainda um bebê.
A mulher, caminhando sem provisões em busca do marido, teve que enfrentar temperaturas elevadas em uma região onde há escassez de água. Terminou morrendo enquanto amamentava o filho, que foi encontrado vivo nos braços da mãe morta dias depois.
Enquanto o Gauchito recebe como oferendas cigarros, bebidas e velas vermelhas, nos altares da Defunta os devotos depositam água para saciar sua sede.
Wikimedia Commons
Representação de Defunta Correa: figura é muito popular na zona da cordilheira dos Andes
Catolicismo
Ambos são “figuras pouco conflituosas” para a Igreja Católica, explica a Opera Mundi a socióloga Verónica Giménez Béliveau, pesquisadora do programa Sociedade, Cultura e Religião do Conicet (equivalente ao CNPq brasileiro). “De fato, muitas vezes as missas de 8 de janeiro [dia do Gauchito Gil] são celebradas por sacerdotes da Igreja sem que o bispo se pronuncie contra isso”, aponta.
Béliveau lembra que o Gauchito e a Defunta reúnem algumas das características tomadas pelo catolicismo para seus santos, como “a morte jovem, o sacrifício e o milagre posterior à morte”. “Em termos de relato da santidade, quase não há diferenças entre um santo aceito pela Igreja e um santo popular”, destaca.
Leia também: Influência do peronismo em ações do papa Francisco intriga estudiosos na Argentina
O processo de santificação dentro da Igreja Católica não é simples. É preciso, primeiro, apresentar à diocese do candidato a santo uma série de documentos e testemunhos de seus feitos. Em seguida, a diocese precisa enviar a uma comissão do Vaticano à candidatura, que vai avaliar se esta merece ser considerada, e enviá-la ao papa, que deve dar status de “venerável” ao potencial santo. Também é preciso que dois milagres sejam comprovados – um para ser declarado beato e o seguinte, para chegar a santo.
NULL
NULL
Béliveau reconhece que essa complicada aprovação não tem importância para a religiosidade popular e que a Igreja tem pouco controle sobre as crenças que surgem por fora do amparo institucional. Entretanto, ela explica que o culto a Santo Expedito ou a São Jorge – padroeiro das travestis na Argentina – tem pontos de encontro com o culto ao Gauchito ou à Defunta.
“A instituição eclesial sempre se preocupou em se manter aberta a esse tipo de fenômeno em suas margens. Você pode encontrar fiéis do Gauchito mais fundamentalistas, mas muitos outros vão de Santo Expedito ao Gauchito de acordo com o que queiram pedir. Muitos são católicos ou cresceram em um ambiente marcado por esse tipo de religiosidade”, aponta a socióloga.
O caso de San La Muerte é diferente. Segundo a lenda, o próprio Gauchito era devoto dessa entidade que, para os sacerdotes católicos, está vinculado ao culto ao diabo e por isso gera conflito dentro da Igreja.
Divulgação
A origem da fé nesse santo controverso é a Tríplice Fronteira entre Argentina, Brasil e Paraguai, mas devotos de toda a Argentina fazem suas oferendas nas sextas-feiras santas e no dia dos mortos, 2 de novembro. Curiosamente, sua imagem – um esqueleto vestido com uma capa – só funciona como amuleto se for abençoado pela Igreja Católica, o que faz com que seus devotos procurem a benção de forma clandestina.
Famosos
Pessoas famosas que morreram de forma trágica também são objeto de culto na Argentina. A cantora de cumbia Gilda é uma delas. Em 1996, a artista, que na verdade se chamava Miriam Alejandra Bianchi, morreu após o ônibus em que viajava bater em um caminhão na província de Entre Ríos. O acidente também matou sua mãe e sua filha, além de outras quatro pessoas.
O túmulo de Miriam Bianchi, no cemitério da Chacarita, em Buenos Aires, é um dos lugares de peregrinação para homenagear a cantora, que passou a ser conhecida como Gilda, a milagrosa. Ali também repousa o corpo de um dos maiores expoentes do tango, Carlos Gardel, morto em um acidente de avião em 1935, que também é venerado como uma espécie de santo entre os argentinos. Gilda vai ser tema de um filme com lançamento previsto para 2016, quando sua morte completa 20 anos.
Leia também: Em troca de cartas com movimentos sociais, papa Francisco reafirma luta por terra, teto e trabalho
Paganismo e religiosidade popular
Béliveau rejeita a categoria de “santos pagãos” para descrever essas entidades que povoam a religiosidade popular na Argentina. Apesar de reconhecer que a definição de paganismo foi utilizada pela própria Igreja para, em diferentes momentos da história, desmerecer as crenças que estavam por fora da instituição eclesial, a pesquisadora aponta que sequer há consenso dentro do catolicismo sobre essa classificação.
“Há padres que vão te dizer que esses cultos são paganismo, outros que não gostam dessa definição porque acham que todas as crenças devem ser respeitadas. Pode até ser que a palavra apareça em algum escrito oficial da Igreja, mas não acredito que a instituição tenha como tema hoje em dia a luta contra o que é pagão. Há outros temas mais importantes”, conclui Béliveau.