A República Centro-Africana pode se transformar em “uma nova Bósnia” com comunidades inteiras massacradas por outras de religiões diferentes diante dos olhos impotentes da comunidade internacional, advertiu nesta sexta-feira (28/03) o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur).
“O caso da República Centro-Africana me lembra o livro 'Crônica de uma morte anunciada' [do colombiano Gabriel García Márquez], onde sabemos o que vai acontecer antes que se suceda”, afirmou hoje em entrevista coletiva o diretor de proteção internacional do Acnur, Volker Turk, que acaba de voltar de Bangui, a capital do país.
Leia também: Um ano após golpe de Estado, República Centro-Africana apresenta 'raízes de genocídio'
“Há 23 anos trabalho no Acnur e poucas vezes vi situações tão complicadas e urgentes como na República Centro-Africana. Infelizmente, me lembrou muito o que aconteceu na Bósnia”, acrescentou Turk.
Ele explicou que os muçulmanos centro-africanos estão constantemente ameaçados e, na maioria dos casos, as comunidades muçulmanas “estão recuadas, em estado de sítio, e se alguém se atreve a sair são baleados pelos 'Anti-Balaka'”, explicou.
Mariane Roccelo/Opera Mundi
Mapa apresenta localização da República Centro-Africana, a capital (Bangui) e seus limites fronteiriços no continente africano
As milícias cristãs “Anti-Balaka” se enfrentam desde dezembro com os partidários dos grupos opositores Seleka (muçulmanos), que chegaram ao poder do país com um golpe de Estado em março do ano passado.
Desde sábado (22/03) os grupos “Anti-Balaka” e outros milicianos vestidos com o uniforme do exército nacional mataram pelo menos oito muçulmanos e feriram outros em Bangui.
“Os muçulmanos temem ser massacrados, o medo impera e os 'Anti-Balaka' o usam para atemorizar mais as comunidades e para se impor diante da falta de outra autoridade”.
Turk explicou que os rumores e a desinformação são moeda corrente no país, o que é usado pelos grupos armados em seu próprio interesse ao inventar histórias que incitam ao ódio inter-religioso. “O que é preciso destacar é que se a violência aumentar os muçulmanos pagarão, mas toda a população também, incluindo os cristãos”, alertou.
NULL
NULL
As milícias cristãs buscam vingança por causa dos abusos cometidos pelo grupo Seleka enquanto ele governou do país, e estão presentes em quase todas as comunidades porque se organizaram em grupos de autodefesa, explicou hoje Sandra Black, porta-voz da Organização Internacional das Migrações (OIM).
Turk descreveu o governo interino como “totalmente ultrapassado pelos eventos” e lembrou que não há estrutura de estado para além “de três quilômetros ao redor do centro da cidade”.
Neste cenário o funcionário do Acnur pediu mais uma vez que a comunidade internacional “desperte e entenda que há uma crise enorme acontecendo diante de nossos olhos”. “A situação é absolutamente desesperadora. E é preciso atuar antes que aconteça uma tragédia”, alertou.
Leia também: Brasil deve estar “mais presente” em conflito na RCA, diz funcionário da ONU
No terreno, há seis mil militares das forças proporcionadas pela União Africana e pelo exército francês, e embora o secretário-geral da ONU tenha pedido o envio de 12 mil boinas azuis, estes ainda devem ser designados (os países têm que apresentar contingentes) e o diretor não acredita que possam estar no terreno antes de setembro.
A impotência de Turk diante da indiferença internacional pode ser constatada nos fundos prometidos ao pedido humanitário solicitado pela ONU, que só recebeu 22% dos US$ 550 milhões solicitados.
Desde dezembro de 2013 a violência sectária e religiosa forçou a fuga de quase um milhão de pessoas, das quais mais de 650 mil são deslocados internos e cerca de 300 mil se refugiam em países vizinhos, especialmente no Chade e em Camarões.