Há 65 anos, em 22 de maio de 1959, a cidade de Niterói servia de palco a um dos levantes populares mais significativos do século XX no Brasil. Indignados com o preço das tarifas e com a péssima qualidade do transporte hidroviário, os passageiros do serviço de barcas depredaram e incendiaram as instalações do Grupo Carreteiro e as mansões da família. Carreteiro, responsável por gerir o serviço. A chamada “Revolta das
Barcas” deixou seis mortos, mais de uma centena de feridos e forçou o governo a estatizar as barcas da Baía de Guanabara.
Até 1974, quando foi inaugurada a Ponte Rio-Niterói, o único serviço de transporte ligando as cidades de Niterói e Rio de Janeiro eram as barcas que faziam a travessia da Baía de Guanabara. O serviço era prestado por empresas privadas desde que fora criado em 1835. A primeira concessionária a explorar serviço de barcas na Guanabara foi a Companhia de Navegação de Nictheroy, sucedida pela Companhia Inhomerim, pela
Companhia de Barcas Ferry e pela Frota Carioca S.A.
Ao longo do século XX, o serviço tornou-se cada vez mais demandado, em função da rápida urbanização do Rio de Janeiro — antiga capital federal e local de trabalho de boa parte dos moradores de Niterói. Em 1953, as duas empresas que controlavam o transporte aquaviário na Baía de Guanabara — a Companhia Cantareira e Viação Fluminense — foram adquiridas pela Frota Barrero S/A, uma subsidiária do Grupo Carreteiro. A empresa pertencia à aristocrática família Carreteiro, então um dos clãs mais poderosos de Niterói. A qualidade do serviço prestado pelo Grupo Carreteiro logo se tornou alvo de reclamações. A empresa costumava reajustar as tarifas de forma abusiva, sem quaisquer critérios ou justificativas plausíveis. Os atrasos e a superlotação eram constantes e as barcas não recebiam manutenção regular, estando sempre sujas, mal conservadas e necessitando de reparos. Apesar da distância curta separando as duas cidades, a viagem chegava a levar mais de quatro horas. E a despeito do péssimo atendimento, o Grupo Carreteiro reiteradamente exigia o aumento dos subsídios estatais, alegando que o serviço era deficitário e que o aporte de verbas públicas era necessário para viabilizá-lo economicamente.
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Quando o governo se negava a aumentar a subvenção, observando que a empresa estava gastando menos da metade dos custos declarados, a concessionária repassava os aumentos para os usuários. Ao mesmo tempo, a família Carreteiro ampliava seu patrimônio em ritmo acelerado, adquirindo mansões e fazendas e ostentando seus luxos e excessos. Enquanto isso, os 4.000 funcionários da empresa eram submetidos a jornadas abusivas, salários baixos, atrasos de pagamento e péssimas condições de trabalho, recorrendo constantemente a paralisações parciais. A empresa, entretanto, não apenas se recusava a negociar como utilizava as paralisações como pretexto para reajustar ainda mais as tarifas das barcas.
O Brasil vivia à época um período de grande agitação política, marcado pela forte atuação de base das organizações da esquerda e pela intensificação das mobilizações sindicais. A unidade de ação da classe trabalhadora se materializou na resposta enérgica dos funcionários do Grupo Carreteiro à recusa da empresa pagar integralmente a quinzena atrasada. Na madrugada do dia 22 de maio de 1959, aderindo ao chamado do Sindicato dos Marítimos e Operários Navais, todos os funcionários do Grupo Carreteiro entraram em greve, deixando a empresa sem mão de obra para operar as barcas. O serviço era utilizado por 100 mil passageiros diariamente e a paralisação criou um problema gigantesco para a concessionária. Assim, o Grupo Carreteiro recorreu às Forças Armadas, que enviaram fuzileiros navais para auxiliar na operação temporária das barcas. Contando com apenas duas embarcações de capacidade reduzida para realizar o transporte, a empresa não conseguia atender a demanda. Uma multidão com mais de 8.000 passageiros começou a se aglomerar na frente da Praça Martim Afonso (atual Praça Arariboia), aguardando o acesso à Estação Cantareira.
Orientados a organizar a fila de passageiros, os fuzileiros navais tratavam a população com truculência, empurrões e abusos verbais, causando irritação e bate-boca. Quando um soldado agrediu um passageiro com uma coronhada, os populares responderam atirando pedras contra os militares e as embarcações. Iniciou-se um violento tumulto e um protesto que se arrastaria por 16 horas.
Os fuzileiros navais tentaram intimidar os populares disparando rajadas de metralhadora para o alto. Mas, ao invés de fazer com que os passageiros recuassem, apenas conseguiram inflamar ainda mais a fúria popular. Os civis invadiram a Estação Cantareira e iniciaram uma quebradeira generalizada, depredando e incendiando a edificação. A frota de barcas também foi destruída e os militares, após intenso confronto, foram forçados a recuar. Antes disso, porém, abriram fogo contra a população. Ao menos seis pessoas morreram durante a revolta e outras 126 ficaram feridas.
Indignados, os manifestantes deixaram a estação das barcas e se dirigiram até a Rua São João, onde ficava a sede do Grupo Carreteiro. Os populares invadiram as instalações e destruíram o escritório, rasgando documentos e papeis, arremessando os móveis pela janela e ateando fogo ao edifício. Não satisfeitos, os manifestantes seguiram em passeata até o bairro Fonseca, localizado a três quilômetros dali. Era nesse bairro, na Alameda São Boaventura, que ficavam duas mansões da família Carreteiro. Os manifestantes invadiram, saquearam e depredaram as residências. Na parede de uma das casas, picharam os dizeres "aqui jazem as fortunas do Grupo Carreteiro, acumuladas com o sacrifício do povo." Por fim, incendiaram os imóveis. Horrorizado com o ocorrido, o patriarca da família, José Carreteiro, faleceu no mesmo dia, vitimado por um infarto fulminante.
O episódio causou indignação na grande imprensa, que exigia punição exemplar aos “vândalos”, sem mencionar que a ação ocorrera em consequência da repressão brutal dos fuzileiros navais. Já os periódicos vinculados à esquerda elogiaram a ação popular, traçando paralelos com a Revolução Francesa e chamando Niterói de “a pequena Bastilha”. O presidente Juscelino Kubitschek achou prudente não embarcar na sede de sangue da imprensa e correr o risco de irritar ainda mais o povo. No dia seguinte, o governo emitiu decreto estatizando do serviço de barcas da Baía de Guanabara, que passou a ser gerido pela Companhia de Navegação do Estado do Rio de Janeiro (Conerj), posteriormente transformada em Superintendência Estadual de Navegação (Senav). Com a estatização, o serviço melhorou consideravelmente, eliminando os atrasos e mantendo uma tarifa baixa. O transporte aquaviário permaneceria sob administração do Estado por 44 anos, até ser novamente privatizado em 1998.