Cinco vezes por dia, os olhos de Rosângela Tadeu França procuram a direção de Meca, no seu pequeno apartamento de Vila Ferreira, na periferia de São Bernardo do Campo, na Grande São Paulo. Aparentemente, a pobreza não é mais um problema para esta mulher de 45 anos, que recebe os visitantes com sorriso aberto e olhar sereno.
“Não me considero pobre. Tenho uma excelente saúde e tenho a sorte de fazer um trabalho que me satisfaz totalmente”, explica. Há dez anos, Rosângela trabalha como recepcionista no Centro Latino-Americano de Divulgação do Islã, localizado em uma pequena casa de um bairro de classe média alta da cidade. “Aqui, converso com todas as pessoas que procuram informações sobre nossa religião, dou aulas sobre o Alcorão e tenho a alegria de ver cada vez mais pessoas escolhendo o islamismo”, conta.
Conversar com Rosângela não é fácil. A cada minuto, ela é interrompida pelo telefone e por visitantes do centro, que pedem uma cópia traduzida de textos sagrados muçulmanos ou perguntam sobre o horário das próximas palestras do Sheikh Jihad Hassan Hammadeh, que dirige o centro de divulgação. Ele é o mais procurado das autoridades muçulmanas de São Paulo, já que fala um português perfeito e sem sotaque. De origem síria, Jihad chegou ao Brasil com apenas sete anos.
“Nestes últimos anos, há tantas pessoas que nem sempre consigo dar conta”, explica, mostrando a prateleira destinada aos exemplares do Alcorão em português, vazia. “Esgotou! Agora, tenho de dar para os visitantes as versões em espanhol, esperando que me tragam outras”, diz.
Rosângela dá aulas sobre o Alcorão e vê “cada vez mais pessoas escolhendo o islamismo”
Entre os curiosos, a recepcionista reconhece às vezes uma história semelhante à sua: negra, pobre, em busca de identidade e, agora, muçulmana. “Eu nasci em uma família católica muito praticante, mas nunca consegui me interessar. Cada vez que ia à igreja com minha mãe, sentia um sono terrível”, conta. Militante do Movimento Negro Unificado, a jovem ficava revoltada pelas representações do catolicismo. “Jesus Cristo é sempre um branco. Mas de onde se supõe que ele vem, Jerusalém, as pessoas não são todas brancas”, diz, irritada.
Meses de pesquisas permitiram a ela descobrir que sua família foi deportada da atual Tanzânia, antes de ser escravizada para trabalhar numa fazenda no interior de São Paulo. “Fiquei feliz com esta descoberta, mas não era suficiente para encontrar minha identidade”, conta Rosangela. Há cerca de 15 anos, durante uma palestra organizada pelo movimento negro, um dos participantes ofereceu um livro a ela. “Quando abri, vi que tudo estava escrito em árabe, pensei que o presente não fazia sentido. Mas resolvi saber mais e procurar informações. E assim, pouco a pouco, encontrei quem eu realmente era”, resume.
Quando perguntada sobre a data da conversão, Rosangela interrompe com um gesto das mãos, como para corrigir um erro. “Conversão é uma palavra católica. No caso da gente, é uma reversão, porque, segundo o Islã, todo mundo nasce muçulmano. Alguns conseguem descobri-lo e se tornam praticantes; outros não. Mas fundamentalmente, é uma volta às origens”, diz, em tom pedagógico.
Revolta dos Malês
A volta às origens está escrita na história brasileira, apesar de ser pouco conhecida. De fato, se a maioria dos muçulmanos no Brasil é de imigrantes árabes ou descendentes, não são os primeiros que chegaram. “A história do Islã no Brasil é muito vinculada à história da escravidão”, conta o professor Paulo Daniel Farah, da USP (Universidade de São Paulo), autor de O Islã (editora Publifolha, 2001).
Especialistas calculam que 15% dos escravos trazidos da África eram muçulmanos. Conhecidos como malês, mas também “muçulmis” e “muçurimis”, eles foram os que fomentaram a maior resistência, tentando manter suas tradições culturais e religiosas. Entre 1807 e 1835, lideraram dezenas de insurreições. A mais famosa foi a Revolta dos Malês, que eclodiu em Salvador na noite do dia 24 de janeiro de 1835.
De acordo com o plano de ataque, assinado por um escravo de nome Mala Abubaker, centenas de escravos muçulmanos tomaram as ruas e enfrentaram durante horas soldados e civis armados. “Esse é considerado o principal levante de escravos em área urbana em toda a América”, diz Farah. Ele lamenta que o episódio seja pouco presente na história oficial do país. “A educação oficial subestima o significado social dessa revolta”, afirma.
Naquela época, porém, a notícia da rebelião teve uma importante repercussão internacional, incentivando os debates na Assembleia sobre o tráfico de escravos. A repressão também foi difundida: 70 dos insurgentes morreram na batalha enquanto dezenas de outros ficaram feridos, e mais de 500 foram punidos depois com pena de morte, detenção ou deportação.
A revolta teve também outro efeito, acrescenta o professor Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto, da UFF (Universidade Federal Fluminense). “As autoridades brasileiras passaram a vigiar os negros com muito mais rigor, e o Islã foi duramente percebido como um perigo pelas classes sociais dominantes”. O temor provocado pela rebelião foi tamanho que o Império proibiu a transferência de qualquer escravo baiano para outra região do país. A repressão fez desaparecer durante décadas o Islã do país, com algumas exceções: comunidades malês subsistem ainda hoje no Rio de Janeiro e na Bahia.
Rapper muçulmano
É exatamente esta herança que reivindica o rapper Honerê Al Amin Oadq, 32 anos, morador da periferia de São Bernardo. Ele se “reverteu” há dez anos, também por meio da militância negra – ou, mais precisamente, do hip-hop. O músico passou pelas quatro funções principais do movimento: MC, break (dança), grafite e DJ. Procurando inspirações para suas letras, ele descobriu a história da Revolta dos Malês, que ele qualifica de “intifada negra”.
Para Honerê, o hip-hop é uma maneira para os jovens pobres negros encontrarem um espaço na sociedade e trocarem a violência por arte, buscando contar a história do que ele considera o berço da humanidade: o continente africano.
“Entrei no hip-hop para denunciar o genocídio contra os jovens negros no Brasil. Com os malês, descobri na minha própria história as raízes muçulmanas destes escravos que foram forçados a vir para este país”, conta o rapper. No início da década de 1990, “tudo o que era vinculado aos negros era ruim, pejorativo. Então começamos a levantar todas as coisas positivas que os negros trouxeram”, diz.
“Quando descobri a história dos malês, o que me chamou a atenção foi a forma de resistência, e sua ligação com Deus. Foi esta forma de adoração a Deus, que é única, que permitiu enfrentar a repressão”, continua. Esta percepção foi reforçada, poucos anos depois, pelo filme “Malcolm X”, e por personagens como o pugilista norte-americano Mohammed Ali (nascido Cassius Clay).
Honerê: “Entrei no hip-hop para denunciar o genocídio contra os jovens negros no Brasil”
Religião e raça
Após a descoberta, Honerê fundou o grupo “Posse Hausa”, formado por grafiteiros e rappers. “No começo, não era propriamente um grupo muçulmano. Mas, agora, 25% se reverteram. Os outros não, mas eles optaram por um modo de vida semelhante ao nosso, o que é o mais importante”, explica, acariciando sua pequena barba. “Eles procuram não beber, ajudam a comunidade, valorizam a construção da família e a busca do conhecimento”, comenta.
Segundo ele, a inclusão do Islã na periferia mudou profundamente a rotina de muitos jovens. “São pessoas que largaram o álcool e outros vícios, abandonaram o crime para se tornar cidadãos decentes. Muitos sabem que, sem o Islã, já estariam mortos”, diz.
Honerê, que toca agora como DJ, prefere não mencionar a religião nas suas letras, que se concentram nas exigências de reparações para os negros brasileiros. “Mas meu rap é bem diferente de outros grupos que, infelizmente, chamam para o crime e a droga, e falam das mulheres com pouco respeito”, esclarece.
Conhecer o islamismo foi também uma maneira para quebrar uma regra cultural: “As pessoas continuam a vincular Islã com árabe, evangélico com branco e candomblé com negro. Mas, para mim, estas divisões nunca tiveram sentido. A religião está acima de tudo”, enfatiza.
Para Paulo Daniel Farah, “a mensagem de igualdade racial e de justiça social tem um apelo muito grande nas comunidades mais pobres, sobretudo entre os mais jovens, que sofrem abuso policial e preconceito”. Isso provoca uma mudança profunda da população muçulmana brasileira, antigamente constituída por pessoas de classes sociais altas (médicos, comerciantes, políticos) e que começou a se introduzir nas camadas mais baixas da população.
Islamofobia e a mídia
Esta nova identidade não basta, porém, para livrar Honerê e seus amigos do preconceito. Por ser minoritário e apresentado de maneira negativa pelas igrejas e a mídia, o Islã é ainda percebido como uma religião estranha ou até terrorista. Rosângela costuma levar na bolsa um segundo véu, já que muitas vezes, as pessoas o arrancam na rua. “Eles não entendem que, para mim, tirar meu véu é como tirar minha calça em público”, acrescenta.
Nas ruas de São Bernardo, ela é frequentemente chamada de “mulher de Bin Laden ou de Saddam Hussein”. “Eu acho que esta discriminação é ainda mais forte porque moro na periferia. Nos centros das grandes cidades, deve ser diferente”, acredita.
O Sheikh Jihad não concorda. Segundo ele, a islamofobia está presente em várias camadas da população e é difundida pelos meios de comunicação. Há dois meses, ele assistiu ao programa do apresentador Jô Soares, na TV Globo, que, criticando a visita do presidente iraniano Mahmoud Ahmadinejad ao Brasil, começou a se perguntar se o profeta Maomé gostava de fumar maconha. “Liguei na mesma hora para o diretor da central de jornalismo da emissora, Ali Kamel, para protestar contra esta ofensa. O programa nunca brincaria assim sobre Moisés ou Jesus! E, nesse caso, eu teria ligado também, já que o Islã os reconhece como profetas”, conta.
Para ele, o episódio – assim como as matérias caricaturais publicadas na imprensa após os atentados do 11 de Setembro – mostra que os muçulmanos devem fazer um esforço maior de divulgação. “Quando a gente pediu a palavra, os canais nos deixaram falar sem problema”, reconhece o Sheikh, enfatizando que esta abertura é cada vez mais rara no resto do mundo.
Sob esse ponto de vista, o Sheikh considera que a novela “O Clone”, transmitida pela Globo entre 2001 e 2002, foi muito positiva. Ele colaborou como consultor na elaboração na trama e conta que recebeu a visita de muitos muçulmanos queixando-se da visão caricatural veiculada pela novela, identificando o Islã com uma festa permanente. “Minha resposta era clara: até hoje, os muçulmanos eram vistos como terroristas, e agora são vistos como dançarinos. Qual você prefere?”, questiona, rindo. “Para mim, não há dúvidas. Isso ajudou a humanizar o Islã no país”.
Leia a primeira parte:
Islã ganha adeptos como aliado em causas sociais
Leia a terceira parte:
Glossário explica termos mais comuns
Sheikh Jihad ligou para a Globo para protestar contra comentário sobre Maomé
Video mostra o DJ Honerê num evento para o 16° aniversario da Posse Hausa :
* Texto e fotos
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