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Templo no topo do monte Emei, a mais alta das montanhas sagradas budistas, onde foi construído o primeiro templo da religião na China, no século 1
Em outubro de 2014, Nyima Dorjee Rinpoche, abade do mosteiro budista de Palden Nigye, começou uma jornada ao que os tibetanos chamam de “Handi”, que pode ser traduzido como “terra do povo Han”. Sua missão sagrada era visitar o monte Wutai, na província de Shanxi, na China.
O país tem quatro montanhas sagradas para o budismo, mas o monte Wutai é a mais reverenciada. Este era um destino especial para Nyima por se tratar da “sede da iluminação” de Manjusri, um bodisatva [ser iluminado] que ele acredita ter reencarnado na forma de seu mentor. Para este monge de 38 anos, o local faz parte de uma das muitas peregrinações em busca da sabedoria absoluta. Seus sentimentos foram de realização e felicidade ao encontrar o vale cheio de mosteiros.
A partir dali, as coisas começaram a desandar. Diante de um templo particularmente imponente, ele encontrou dois monges sentados com os pés sobre as cadeiras. Ele perguntou qual era o mosteiro mais antigo; eles não sabiam. Perguntou sobre a diferença entre o budismo tibetano e o budismo han; também não sabiam. Nyima perguntou se eles eram convertidos; eles mostraram a Nyima seus certificados de conversão, que mantinham no bolso das vestes budistas.
“Eles não sabiam de nada!”, espanta-se Nyima. “A conversão não é uma questão de papelada, ela acontece aqui”, disse, apontando para o coração. “Aqueles templos são magníficos, mas não havia Buda ou o Caminho do Buda neles. Estão vazios”.
Nyima deixou o monte Wutai desiludido e entristecido. “É isso o que acontece na Era da Decadência do Budismo”.
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Antes de atingir o nirvana, Buda previu a evolução da religião em três fases: a primeira marcada por mil anos de prosperidade; a segunda, por mil anos de reflexão a respeito dos tempos prósperos; e, a terceira, por um milênio de queda.
Para muitos chineses, a tradicional imagem do monge budista é algo semelhante à de um santo: um guia honrado e confiável no que tange às questões espirituais – talvez até mesmo um médium com poderes sobrenaturais. Mas, acima de tudo, sempre desprovido e indiferente ao dinheiro. Esta imagem romantizada causa grande antipatia dos chineses para com muitos dos monges budistas modernos no país.
Um peregrino precisa estar bem de vida para conseguir visitar os templos dessa região. A maioria deles cobra pela entrada, que pode ser alta a ponto de não permitir a visita da maior parte das pessoas em peregrinação. Há caixas de doações espalhadas pelos recintos, e quando você entra em um mosteiro pode ser coagido a comprar uma vela ou incluir a menção de seu sobrenome em uma cerimônia, com as garantias, por parte dos monges, de boa sorte e fortuna.
À medida que a China enriquece, os mecenas do budismo fazem oferendas cada vez mais generosas. Em alguns mosteiros mais abastados, é possível ver abades dirigindo BMWs, Audis e Porsches – presentes de benfeitores ricos que provavelmente contam agora com um carma espetacularmente favorável. Shi Yongxin, abade do Monastério Shaolin e talvez o mais conhecido monge chinês, é frequentemente chamado de “CEO da Shaolin”, já que fundou mais de dez empresas com esse nome. Para alguns, a morte do ideal romântico do budismo causou a perda da fé e, para muitos outros, a percepção da religião passou a ser de monges gananciosos, incensos caros e atrações turísticas.
Se este é o milênio da decadência do budismo, como isso veio a ocorrer? Gao Xiang, membro da Associação Budista de Pequim e celebridade do Weibo, rede social chinesa, por sua defesa do budismo, acredita ser este o custo da vida moderna. “Não é que os templos queiram se entregar ao comércio – eles são obrigados a fazê-lo”.
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Chi King / Flickr CC
Grande Buda de Leshan, também no monte Emei, declarada Patrimônio Mundial da Unesco em 1996
A história chinesa é perpassada por tentativas de banir definitivamente o budismo, e a Revolução Cultural foi a mais bem sucedida delas. Com exceção de alguns mosteiros de grande valor histórico, a maioria dos templos passou a ser utilizada para outras funções ou foi demolida. Antes de 1949, Pequim tinha mais de 700 mosteiros em seu anel viário secundário; hoje, são apenas 20. Com a chegada dos anos 1990, os problemas acabaram. Foi a década em que Deng Xiaoping defendeu seu famoso slogan: “Tudo deve estar centrado no desenvolvimento econômico”. Um novo interesse em dinheiro tomou conta da China, e tudo o que pudesse gerá-lo foi considerado bom. No momento em que o budismo começava a se recuperar, o dinheiro se tornou um novo obstáculo.
O turismo, que quase não existia antes, ganhou enorme destaque. O budismo Han, especialmente sua ramificação Chan (conhecida como Zen, no Japão), tem uma forte tradição de reclusão, mantendo sua prática o mais distante o possível do burburinho leigo, com monastérios escondidos em regiões montanhosas remotas. No entanto, como essas montanhas foram transformadas em “jingqu” (áreas cênicas comerciais), os mosteiros ficaram cercados, com ônibus turísticos se aglomerando ao redor de seus portões em estradas recém-construídas. Após a Revolução Cultural, os monastérios nunca foram efetivamente devolvidos aos monges. Os templos caíram sob a jurisdição de três departamentos governamentais: os Departamentos de Turismo, de Paisagem e Silvicultura e do Patrimônio Cultural. A primeira coisa que estes órgãos fizeram foi começar a cobrar entradas.
O abade Haixin, vice-presidente da Associação Budista da província de Shanxi, era um jovem monge quando, nos anos 1980, surgiu a notícia de que o monastério do monte Wutai começaria a cobrar uma taxa de visita. “Ficamos incrédulos e irados. Fazer dinheiro com o Buda! Que tipo de carma isso traria? Era impensável. Nós protestamos ferozmente, mas não obtivemos resultados”.
As coisas pioraram depois disso. Hoje, as entradas para alguns dos templos e monastérios chineses podem ser impeditivamente altas para algumas pessoas, o que frustra os peregrinos. A entrada para o mosteiro no monte Wutai é de 238 yuan (cerca de 125 reais); o monastério Shaolin, na província de Henan, cobra 100 yuan (53 reais); e o templo Nanshan, na província de Hainan, cobra 170 yuan (90 reais), para citar apenas alguns.
A maioria das pessoas culpa a ganância dos monastérios, mas poucos sabem que a maioria dos monges e monjas desaprova a prática e ao longo dos anos tem solicitado a retirada das taxas nas Convenções Budistas Nacionais. Shi Yongxin, do templo Shaolin, tem pedido ao governo central que suspenda a taxa há mais de dez anos, alegando que ela “bloqueia um caminho de peregrinação de mais de mil anos e impede a entrada dos peregrinos”. Yongxin ainda não teve sucesso. Cerca de 70% do valor arrecadado por seu templo com a cobrança de entrada vão para o governo local. A cidade que abriga o monastério passa por dificuldades financeiras e os 10 milhões de yuan anuais [cerca de R$ 5 milhões] recebidos do monastério de Shaolin são uma quantia da qual o governo não quer abrir mão.
Em 2014, sete templos na montanha de Jizushan, na província de Yunnan, fecharam coletivamente seus portões aos visitantes, protestando contra as intenções do Departamento de Turismo de cobrar taxas de entrada. Graças à atenção midiática, tiveram sucesso.
“Se a cobrança de ingressos for suspensa, quem sofrerá mais?”, indaga Gao Xiang, da Associação Budista de Pequim. “Não serão os mosteiros, que só se beneficiariam da suspensão das taxas. São os três setores do governo que se beneficiam da cobrança atual”.
“Não é uma questão de dinheiro, são os corações das pessoas que estão envolvidos”, diz o abade Haixin. “A mensagem que a taxa transmite é: se você é pobre, não tem permissão para prestar sua homenagem ao Buda. Trata-se de um insulto aos que não podem pagar. Não diz respeito mais ao dinheiro, mas sim à discriminação e ao desrespeito”.
O abade continua: “O governo construiu a montanha? Ele construiu o templo? Se não construíram, ninguém tem o direito de cobrar entradas. Nós nos focamos tanto no desenvolvimento econômico que estamos ignorando tudo o que é espiritual e religioso. O budismo deveria transformar os corações das pessoas, mas veja só o que ele tem se tornado”.
Tradução: Henrique Mendes
Matéria original publicada no site da The World of Chinese, revista bimestral em língua inglesa sobre questões contemporâneas na China.