Os médicos também merrem; mas conhecem os limites da medicina e abrem mão dos tratamentos
Saiba o que mais foi publicado no Dossiê #03: Alternativas verdes
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Há alguns anos, Charlie, um ortopedista altamente respeitado e meu mentor pessoal, encontrou um nódulo em seu abdômen. Um cirurgião explorou a área e seu diagnóstico foi o de câncer pancreático. O cirurgião era um dos melhores do país, tendo inclusive inventado um novo procedimento médico, adequado a esse tipo de câncer, que poderia triplicar o tempo de vida do paciente, normalmente estimado em cinco anos, embora com uma significativa queda da qualidade de vida. Charlie não se interessou pelo procedimento em questão. Ele foi para casa no dia seguinte, demitiu-se e nunca mais pisou em um hospital. Sua preocupação agora era passar mais tempo com a família e tentar se sentir bem durante o maior tempo possível. Alguns meses depois, Charlie morreu, em sua casa. Ele não fez quimioterapia, radioterapia ou qualquer tipo de tratamento cirúrgico. O Medicare (sistema de seguros de saúde gerido pelo governo dos EUA) certamente não gastou muito com ele.
Embora esse não seja um tópico frequentemente discutido, os médicos também morrem. E eles não o fazem da mesma forma que todos nós. O que é pouco usual é que não é grande a quantidade de tratamento que eles optam por receber: ao contrário, é muito pequena. Tendo em vista o tempo que passam tentando evitar a morte de outras pessoas, os médicos tendem a ser bastante serenos quando encaram a iminência de sua própria morte. Eles sabem exatamente o que vai ocorrer, sabem das opções que têm e, geralmente, têm acesso a qualquer tipo de cuidados médicos que possam querer. Mas escolhem ir suavemente.
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Fim doloroso
É claro que os médicos não querem morrer; querem viver. Mas eles sabem o suficiente sobre a medicina contemporânea para conhecer suas limitações. E eles sabem o suficiente sobre a morte para identifi car o medo que todos têm: o de encarar um fim doloroso e solitário. Eles já falaram sobre o assunto com suas famílias. Querem ter certeza de que, quando chegar a hora, não haverá espaço para atitudes heroicas: não querem ter de encarar, durante seus últimos momentos na Terra, ninguém quebrando suas costelas para tentar uma reanimação cardiorrespiratória (é isso o que ocorre quando ela é feita corretamente).
Quase todos os profissionais da medicina já viram o que chamamos de “cuidados fúteis” sendo realizados com os pacientes. Isso ocorre quando os médicos ultrapassam os limites da tecnologia disponível para tentar dar esperanças a uma pessoa irremediavelmente doente, no fim da vida. O paciente será aberto, perfurado por tubos, amarrado a máquinas e dopado com medicamentos. Tudo isso ocorre nas Unidades de Terapia Intensiva a um custo de dezenas de milhares de dólares por dia. E o que se consegue é produzir um tipo de sofrimento que não se gostaria de infligir sequer a um terrorista. Eu já perdi a conta do número de vezes que algum amigo médico me disse, em palavras que variam muito pouco: “Prometa-me que, se você me vir nessa situação, vai me matar”. E eles não estão brincando. Alguns membros de equipes médicas usam pingentes que dizem “NO CODE” (Sem Código), a fim de garantir que nenhum médico vá tentar realizar reanimação cardiorrespiratória com eles. Já vi até mesmo tatuagens do tipo.
Administrar qualquer tipo de cuidado médico que faz com que as pessoas sofram é angustiante. Os médicos são treinados para coletar e divulgar informações sem nunca demonstrar seus próprios sentimentos. No entanto, entre os colegas, acabam desabafando. “Como alguém pode querer fazer isso com um membro da família?”, perguntam-se. Eu suspeito de que essa é uma das razões pelas quais os médicos apresentam as mais altas taxas de alcoolismo e depressão entre profissionais de todas as áreas. Poderia dizer que essa é uma das razões pelas quais parei de atuar em hospitais já há dez anos.
Labirinto de escolhas
Como a situação pode ter chegado a esse ponto, em que os médicos administrem cuidados que não gostariam de ter para si mesmos? A resposta, que não é tão simples, é encontrada na dinâmica do relacionamento entre pacientes, médicos e o sistema de saúde.
Para entender como os pacientes reagem, imagine uma situação em que alguém tenha perdido a consciência e sido encaminhado para a sala de emergências. Como frequentemente ocorre, ninguém tem um plano exato para a situação, e os membros da família, chocados e assustados, encontram-se diante de um labirinto de escolhas. Estão sobrecarregados. Quando o médico lhes pergunta se querem que seja feito “tudo”, a resposta é sim. E o pesadelo começa. Às vezes, a família realmente deseja que “tudo seja feito”, mas muitas vezes quer apenas dizer: “Faça tudo o que for razoável”. O problema é que eles, talvez, não saibam exatamente o que é razoável e o que não é.
A situação descrita é muito comum. Há expectativas pouco realistas a respeito do que os médicos podem fazer. Muitas pessoas acreditam que a RCP é uma forma confiável de se salvar uma vida quando, na verdade, os resultados costumam ser pouco satisfatórios. Já vi centenas de pessoas serem trazidas até mim, na sala de emergências, após uma tentativa de RCP. Apenas um dos pacientes, um homem saudável que sequer sofria de problemas cardíacos (para os que querem detalhes específicos, ele teve um pneumotórax), conseguiu deixar o hospital. Se um paciente sofre de alguma doença grave, de velhice ou está em estado terminal, as chances de um bom resultado para a RCP são infinitesimais, enquanto que as de maior sofrimento são enormes. A falta de conhecimento e as expectativas mal direcionadas levam as pessoas a tomar uma série de decisões equivocadas.
Alternativas sugeridas
Alguns médicos são melhores comunicadores do que outros, alguns são mais intransigentes, mas as pressões enfrentadas são sempre as mesmas. Quando tive de encarar circunstâncias envolvendo a tomada de decisões de caráter de vida ou morte, tentei apresentar apenas as opções que eu considerava razoáveis (como faria em qualquer outra situação), e o quanto antes possível. Quando os pacientes ou as famílias sugeriam opções absurdas, eu tentava discutir a questão em termos leigos, salientando os problemas das alternativas sugeridas. Se eles insistissem em tratamentos que eu considero injustificados ou perigosos, sugeriria que seus cuidados fossem transferidos para outro médico ou outro hospital.
Será que eu deveria ter sido mais enérgico em algumas dessas situações? Só sei que algumas dessas transferências ainda me assombram. Um dos pacientes dos quais eu mais gostava era uma advogada de uma família politicamente influente. Ela sofria de um caso grave de diabetes, tendo péssima circulação sanguínea, e, em certo momento, desenvolveu uma ferida extremamente dolorosa em um dos pés. Sabendo dos riscos que os hospitais sempre apresentam, fiz todo o possível para evitar que ela recorresse à cirurgia. Ainda assim, ela buscou o auxílio de outros especialistas que eu não conhecia. Não sabendo tanto sobre o caso da paciente quanto eu sabia, eles decidiram realizar uma cirurgia de bypass nos vasos sanguíneos cronicamente obstruídos de ambas as suas pernas. Isso não restaurou sua circulação e, para piorar, os ferimentos da cirurgia não cicatrizaram. Seus pés adquiriram gangrenas e ela teve ambas as pernas amputadas. Duas semanas mais tarde, a paciente morreu no famoso centro médico ao qual havia recorrido.
É fácil encontrar os erros tanto dos pacientes quanto dos médicos, em ambos os casos que descrevi, mas muitas vezes, ambos são apenas vítimas de um sistema maior que incentiva o tratamento excessivo. Em alguns casos especialmente desafortunados, os médicos utilizam o modelo de cobrança por serviço para fazer simplesmente tudo o que puderem, em busca de dinheiro. Na maior parte das vezes, no entanto, fazem-no por medo de ter de encarar processos jurídicos.
Cuidados paliativos
Mas os médicos nunca se tratam a si mesmos excessivamente. Eles veem diariamente quais são as consequências dessa escolha. Quase qualquer pessoa pode encontrar uma forma de morrer em paz, em casa, e pode-se hoje lidar com a dor melhor do que nunca. Os cuidados paliativos, que se focam em oferecer a pacientes terminais conforto e dignidade, em vez de tratamentos inúteis, podem dar a muita gente um melhor final para a vida. Surpreendentemente, estudos mostraram que as pessoas que optam por cuidados paliativos muitas vezes vivem mais do que aquelas que buscam uma cura ativa. Fiquei impressionado ao ouvir dizer, recentemente, que o famoso repórter Tom Wicker “morreu em paz, em sua casa, cercado pela família”. Esse tipo de história é, felizmente, cada vez mais comum.
Há muitos anos, meu primo mais velho Torch teve uma convulsão, que acabou descobrindo ser sintoma de um câncer originalmente pulmonar que já havia atingido o seu cérebro. Consegui fazer com que ele visitasse vários especialistas, e descobrimos que, com um tratamento bastante agressivo, que incluía de três a cinco sessões de quimioterapia por semana, ele talvez vivesse cerca de quatro meses. Torch acabou por decidir não fazer qualquer tratamento e simplesmente tomou pílulas para aliviar a dor. Ele se mudou para minha casa.
Passamos os oito meses seguintes fazendo várias das coisas que mais lhe agradavam, divertindo-nos juntos como não fazíamos há décadas.Torch visitou a Disneylândia pela primeira vez. Ficávamos em casa, conversando. Torch era um grande fã de esportes e se divertia muito assistindo aos jogos na televisão enquanto comíamos. Ele chegou até mesmo a ganhar algum peso, comendo a comida que lhe agradava, em vez daquela que servem nos hospitais. Não teve dores intensas e esteve alegre a maior parte do tempo. Certo dia, ele não acordou. Passou os três dias seguintes em um sono semelhante ao coma e, em seguida, faleceu. Os custos de seu cuidado médico, ao longo de oito meses, foram de mais ou menos US$ 20, referentes apenas aos medicamentos que estava tomando.
Torch não era um médico, mas sabia que o que queria era uma vida de qualidade, e não apenas quantidade. Não é o que maior parte de nós quer? Se há algo que sintetize a arte dos cuidados médicos ao fim da vida, é a seguinte: morra com dignidade. Meu médico já sabe das minhas escolhas. Não foi difícil fazê-las, como não costuma ser para a maior parte dos profissionais de saúde. Não haverá heroísmo, eu adentrarei suavemente a noite. Como meu mentor, Charlie. Como meu primo, Torch. Como meus colegas de profissão.
Tradução por Henrique Mendes
* Texto publicado originalmente na revista online Zócalo Public Square
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