Em 1969, o mecânico mineiro Nilton Rocha chegou ao Rio de Janeiro e foi trabalhar na manutenção do maquinário de uma grande fábrica de discos. “Lembro da euforia na fábrica, a gente de plantão esperando o Brasil ganhar a Copa do Mundo de 1970 pra prensar mais cópias do compacto com Pra Frente, Brasil, recorda ele, na oficina em que trabalha hoje, em Belfort Roxo, cidade periférica da Baixada Fluminense. Ao seu redor, erguem-se antigas máquinas que em décadas passadas pertenceram à então onipotente indústria fonográfica.
Em 1999, Nilton estava para se aposentar. Os bolachões com lado A e lado B haviam sido substituídos em larga escala por discos laser, ou CDs, e a indústria só fazia se desvencilhar das antigas geringonças de fabricar vinil. Em sociedade com o caldeireiro José Rocha, Nilton adquiriu uma série de máquinas obsoletas, de que multinacionais como PolyGram, EMI e Warner queriam se livrar a preços de ferro velho. “Resolvi fazer um apanhado. As fábricas foram fechando, nós fomos comprando as máquinas. Mais por paixão, por gostar e não querer que aquilo acabasse.”
Naquele ano, Nilton e José abriram as portas da Polysom. Ali em Belfort Roxo, montaram artesanalmente uma quixotesca fábrica de LPs, quando quase ninguém se interessava mais por LPs. “No início, fizeram muito dinheiro fazendo vinis de música gospel. Mas começaram a lutar com muita dificuldade, porque não tinham mais clientes”, conta João Augusto, um personagem que entrará nesta história logo a seguir.
Em 2007, a Polysom de Nilton e José foi à falência e fechou as portas para sempre, ou quase. “O finalzinho foi bem difícil. Aí apareceu outro maluco”, relata Nilton. Refere-se a João Augusto, ex-homem forte de gravadoras como a PolyGram (atual Universal), a EMI e a extinta Abril Music, que entre os anos 1980 e 2000 produziu sucessos populares de artistas como Emílio Santiago, Marina Lima, Eduardo Dussek, Legião Urbana, Marisa Monte, Mamonas Assassinas, Los Hermanos, Falamansa, Bruno & Marrone.
Dissidente da grande indústria (hoje nada grande), João é desde 1998 proprietário da gravadora independente Deckdisc, que providenciou o advento de artistas como a roqueira Pitty, a sambista Teresa Cristina, os pagodeiros Revelação, Boka Loka e Sorriso Maroto, os sertanejos Edson & Hudson. “Como a gente está sobrevivendo? Não sei. A gente não faz grana como fazia antigamente”, é sua não resposta à pergunta inevitável sobre como se vendem CDs “de verdade” em tempos nos quais o público se esparrama entre CDs piratas, downloads em MP3 e audição de música on-line.
Pois não bastava ser quixotesco produzindo e vendendo CDs. Em 2010, João pôs em funcionamento (“ainda claudicando”) aquela que é hoje a única fábrica ativa de vinis na América Latina, uma das 41 ainda resistentes no planeta. “Como a nossa, são só 11. A maioria só prensa os discos, a gente faz o serviço completo”, orgulha-se. Um dos equipamentos pré-cambrianos que integram o aparato é a máquina que faz o material plástico onde serão impressos os sons, o vinil, composto por policloreto de vinila (o popular PVC), estearato de cálcio, cera, corante carbon black (o vinil, em si, é branco, e não preto) e rebarba (ou seja, fragmentos reaproveitados de antigos vinis moídos ali mesmo).
Mas por que abrir uma fábrica de vinis quando nem CDs o público quer consumir mais? “Como sempre, fui pressionado pelo Rafael para fazer mais essa maluquice na minha vida”, brinca João, referindo-se ao filho, o músico e produtor Rafael Ramos, que 15 anos atrás o azucrinou até que lançasse os Mamonas Assassinas, que virariam um dos maiores fenômenos populares dos anos 1990. “Já fiz muita merda, uma a mais não vai fazer diferença. Quando comprei a Polysom, Rafael disse: ‘Agora, sim, você provou que tem culhão’.”
Assumiu as dívidas da Polysom, manteve o nome e contratou Nilton e José como funcionários (o último se desligou há pouco, mas seu filho, William Carvalho, é operador de áudio da fábrica). “O risco é alto, mas acho que a advogada que avaliou o caso se apaixonou por mim e falou: ‘Vai lá’”, João, segue brincando, sem bem saber explicar por que ter uma fábrica de discões em 2011. “Era uma construção em ruínas. O cara da manutenção disse: ‘Sou seu amigo, não entra nessa’.” João entrou, reformou as instalações, inteirou-se da mecânica braçal do ofício. “Produção de CD é muito mais veloz, depende menos de erros e acertos”, avalia.
Artigo de luxo e objeto de culto
Dirigindo seu carro a caminho da Polysom, ele conta que a fábrica fica no bairro pobre de Água Branca, onde viveu Wilson Simonal – diz que pensa em colocar uma placa em homenagem ao cantor à entrada. No pátio do terreno, além da caldeira (para as etapas que demandam calor) e do bujão de óleo que a alimenta, há pés de manga e cajá. “Minha esposa veio aqui no início, falou que sou maluco e nunca mais voltou”, ri. “Cada árvore que derrubei tive que explicar pra ela primeiro.”
Explica que a região é suscetível a alagamentos, mas o processo de licenciamento ambiental é complicado, e foi mais simples mantê-la ali mesmo. “A fábrica é potencialmente poluidora, tem que ver quanto de fumaça a caldeira a vapor joga no ar, o material de descarte dura séculos. A gente teve que criar todos os protocolos necessários. Antigamente nem havia esse tipo de preocupação na indústria. A fábrica da antiga PolyGram matou um rio, no Alto da Boa Vista. Hoje não faço nenhuma poluição, reprocesso os encalhes, tudo é misturado de novo na composição.”
É provável que quem canta ou escuta nunca pense nisso, mas, sim, música é poluente. “CD também polui, mas menos. Não depende de caldeira, é à base de laser”, aprende-e-ensina João. “Marisa Monte queria fazer vinil, quando viu como é falou: ‘É muito plástico!’. Eu disse: ‘Tem razão, vou fechar a fábrica’. ‘Não, não, não fecha. Mas é muito plástico.’”, ilustra.
No ponto de partida, o conteúdo de um disco chega ao estúdio em Belfort Roxo num CD (antigamente era em fitas de rolo) e passa pelo processo de corte: é gravado por uma agulha de safira num disco de alma de alumínio revestida com laca, conhecido como acetato. Hoje, já há participação de softwares de computador nessa etapa, mas o equipamento mecânico de corte é alemão, datado dos anos 1960 ou 1970, segundo João. Um microscópio acoplado permite verificar os sulcos onde os sons vão sendo gravados – a transcrição dura o tempo exato de audição, e uma vez iniciado o processo não pode ser pausado. Pronto, o acetato não deve ser ouvido, para impedir perdas sonoras.
A etapa mais delicada é a da galvanoplastia, quando, a partir do acetato, é produzida uma matriz de níquel e prata que servirá de molde na fabricação das cópias em vinil (com cada matriz, é possível produzir de 300 a 500 cópias de um disco). “Em muitos momentos quase desisti, porque não conseguia fazer a galvanoplastia funcionar direito. É a hora mais bonita, mas também a que dá mais trabalho. William cortava os acetatos e eu estragava. Teve que fazer 23 vezes o lado B de um disco”, lembra João.
Pronta a matriz, ela vai para a prensa (a fábrica tem três: duas, para LPs e uma, para compactos), onde servirá como negativo a ser transferido para bolachas incandescentes de vinil, nas quais são grudados, ao mesmo tempo, os rótulos centrais de papelão. Na mesma sala, os discos recém-fabricados são acondicionados nas capas impressas em gráfica, fora dali, e embalados em filmes de plástico. O processo é todo manual, cópia por cópia.
A linha de produção na Polysom é inconstante, oscilando numa média de cinco a dez títulos por mês. No dia da visita da reportagem, estava em fabricação um disco da banda carioca Os Azuis.
Morto e enterrado, o disco de vinil revive como artigo de luxo e objeto de culto. Chico Buarque encomendou à Polysom uma tiragem de LPs de seu novo álbum. Até hoje a microindústria só produziu um produto de exportação, de um disco da banda argentina Babasónicos. DJs profissionais que preferem trabalhar com discos de vinil não são clientes potenciais, segundo João. “O mínimo de cópias que a fábrica produz é 300, uma quantidade que não interessa para eles. A lei brasileira proíbe a cópia privada, e eu, como fábrica, tenho compromisso com direitos autorais. Se o cara não é proprietário dos direitos, sou impedido de produzir”, conta, referindo-se sutilmente a um dos pontos de caduquice da lei de direito autoral vigente no Brasil.
Os discos circulam em prateleiras de livrarias como as da Cultura e da Saraiva, em lojas históricas de vinil como a Baratos Afins, ou em ocasiões especiais – a Polysom terá uma loja na nova edição do Rock in Rio, por exemplo. O catálogo da Deckdisc é todo editado em CD e vinil. Parte substancial do movimento da fábrica vem da reprensagem de material histórico das “grandes” gravadoras, licenciados pela Polysom e reeditados na série “Clássicos em Vinil”, mediante pagamento de royalties.
Nas salas de estoque, há discos de Jorge Ben (A Tábua de Esmeralda, África Brasil), Tom Zé (Todos os Olhos, Estudando o Samba), Novos Baianos (Acabou Chorare), Djavan (O Som, a Voz, o Violão de Djavan), Secos & Molhados, Titãs e outros. Saem dali ao preço médio de R$ 50 por cópia, e são revendidos por valores não raro exorbitantes.
“Estive várias vezes dentro e fora da indústria. Muito dentro, você tende a se amesquinhar e a vedar sua visão. Se torna patronal, tem que defender interesses da empresa. Hoje, nas grandes gravadoras, só vejo todo mundo querendo segurar o emprego”, João avalia, hoje meio dentro, meio fora, e sempre sem muito saber explicar que impulsos o movem. No ritmo atual, sete funcionários dão conta de todo o processo de fabricação da Polysom. Na gravadora Deckdisc, são 20 ao todo, e esse é o tamanho básico das “João Augusto enterprises”.
Na ponta mecânica da grande fábrica de ilusões, o resistente Nilton Rocha é um dos sete funcionários da Polysom. Trabalha numa oficina-depósito ao fundo, onde reforma máquinas velhas e cria novas engenhocas. Com material que, para a “grande” indústria, era sucata, ele inventou, por exemplo, uma máquina para furar o centro dos discos de vinil, outra para eliminar os rótulos de papelão antes da moagem dos descartes, outra para embalar numa capa de plástico os lindos bolachões de vinil que as velhas máquinas ainda não desistiram de cuspir.
Publicado originalmente na Revista Fórum
NULL
NULL