Cartaz da Federação Italiana de Trabalhadores da Construção e Afins sobre o drama dos empreendedores suicidas
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O olhar de Laura Tamiozzo está vidrado no monitor de um laptop e a sua voz, leve mas decidida, ecoa na sala do centro paroquial São Sebastião, à sombra da torre da igreja de Vigonza, comuna pertencente à província de Pádua. Atrás dela, um cartaz da Filca-Cisl (Federação Italiana de Trabalhadores da Construção e Afins – Confederação Italiana dos Sindicatos dos Trabalhadores) do Vêneto, região no nordeste da Itália, exibe algumas fileiras de túmulos e os nomes de 25 empresas históricas que tiveram de fechar as portas em meio à indiferença generalizada. “Querida Flavia, admito que não é fácil escrever esta carta, mas o drama que atinge a sua família é o mesmo que atingiu a minha”. A jovem de 29 anos está lendo uma carta enviada a Flavia Schiavon, 32, que está sentada ao seu lado.
A “Grande Crise” levou embora os pais das duas mulheres: ambos empreendedores do setor de construção, ambos suicidas. Giovanni Schiavon era o titular da pequena empresa Eurostrade 90, e no último dia 12 de dezembro matou-se com um tiro na cabeça em seu escritório. O caso despertou interesse porque, além das dívidas, Schiavon gabava-se de ter mais de 250 mil euros em créditos do Estado. Já Antonio Tamiozzo enforcou-se no galpão da sua Construções Tamiozzo, que contava com mais de 30 funcionários. “Meu pai morreu por amor, por amor à sua empresa e principalmente aos seus dependentes”, escreve Tamiozzo. “Vivia com o terror de podê-los trair, de não conseguir pagar os salários. Este pensamento o consumia, até que ele não aguentou mais.”
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Relação delicada
São histórias que às vezes apresentam algumas semelhanças, mas que permanecem profundamente diversas e únicas. Dramas nos quais razões pessoais se entrelaçam a situações de instabilidade econômica,endividamento, cobranças da parte dos bancos e impotência das instituições nacionais e locais. Daniele Marini, diretor da Fundação Nordeste, explica que “é difícil fazer uma média destes empreendedores”. Há, porém, algumas características comuns, como a pequena dimensão das empresas, em geral de setores como construção civil ou artesanato. Em um sistema no qual a média empresa trabalha com mais de 250 fornecedores, responsáveis por 80% da produção, uma série de problemas inevitavelmente massacra as pequenas e médias empresas.
Laura Tamiozzo descreve em sua carta: “Desde que esta crise ‘mundial’ começou, papai não foi mais o mesmo. A maneira de trabalhar mudou e cada vez mais nos deparávamos com clientes que, após terem contratado o trabalho, não podiam mais pagar as contas.”
Segundo os dados da Cgia (Associação de Artesãos e Pequenas Empresas) de Mestre, localidade pertencente ao município de Veneza, desde o início da crise pelo menos 50 pequenos empreendedores e artesãos se suicidaram no Vêneto. O último deles foi Giampietro Benvegnù, um empresário da construção civil na província de Belluno. Nos últimos cinco meses, foram registrados pelo menos sete suicídios na região. Segundo o escritor Ferdinando Camon, “o progresso do nordeste da Itália é aquele que percorreu a maior distância — não porque chegou a uma riqueza maior, mas porque o ponto de partida estava bem mais atrás”. De “pobretões” a donos do próprio negócio no arco de poucas e vertiginosas décadas, foi difícil renunciar ao que se conquistou com o sacrifício de uma vida.
“A ruína no trabalho torna-se ruína também na vida pessoal”, continua o escritor. “Quando a empresa entra em crise, o patrão sofre por não poder pagar seus funcionários e por vê-los em dificuldade. Boa parte dos suicídios se deu também por isso. Não é uma questão marxista, relacionada à economia. É uma questão freudiana, relacionada ao sentimento, em uma delicada relação na qual o patrão sente que a vida do funcionário é uma continuação da própria vida, e que a família dele é uma extensão da sua. Esta é uma particularidade vêneta.” Portanto, como escreveu Dario Do Vico no jornal Corriere della Sera, “por trás das escolhas dramáticas desses homens e mulheres não há uma antropologia negativa, mas talvez um excesso de ética. Ser obrigado a demitir os próprios colaboradores, fechar as portas ou falir é considerado uma vergonha na cultura das laboriosas comunidades do Nordeste”.
Depois do Tangentopoli, (escândalo de corrupção envolvendo partidos políticos italianos), em 1992, a economia e a sociedade vênetas passaram a acreditar que podiam se desenvolver melhor sem o “freio” das instituições. Alguns sustentaram que uma abordagem parecida teria funcionado perfeitamente. Outros, como Pietro Marzotto, nunca estiveram de acordo e já há muitos anos denunciavam o risco de acabarem pagando “um preço muito caro”. A crise atual, escreve Daniele Marini, “ressaltou a dificuldade dessa visão. Após anos de espera por respostas, o Nordeste lamenta fortes atrasos.” Ferdinando Camon afirma que esta desconfiança com relação ao Estado é recíproca: “O progresso do Nordeste não é reconhecido pelo resto do país, é um fenômeno desconhecido. A região é uma selva misteriosa. O olhar de Roma não chega até aqui. Ou, se chega, não entende o que vê”.
Tradução por Carolina de Assis
* Texto publicado originalmente no site independente Linkiesta
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