A produtora do filme A Queda tomou uma decisão difícil de entender: pediu que o YouTube – e, por consequência, outros portais de armazenamento de vídeos – retirasse do seu acervo as paródias do filme que mostra os últimos dias de Hitler, ao fim da Segunda Guerra Mundial.
Dirigido por Oliver Hirschbiegel, A Queda, falado originalmente em alemão, deu origem a uma série de releituras críticas, que, por sua vez, deram, por meio de legendas, novos sentidos a uma cena específica, em que o isolamento do Hitler e da Alemanha nazista ganha uma forma icônica. A cena tem ainda o mérito de mostrar como, mesmo sob circunstâncias limítrofes, quando a consciência da ruína já é maior que a ilusão da possibilidade de vitória, o tirano arquetípico é capaz de manter o poder sobre aqueles que embarcaram no seu projeto.
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O próprio Hirschbiegel disse já ter assistido a mais de 140 versões da cena. “Muitas vezes o trecho é tão engraçado que rio alto. Não poderia haver melhor elogio a um diretor”, afirmou em janeiro à New York Magazine.
As versões de A Queda ilustram muito bem o que alguns teóricos das artes e das comunicações chamam de “comunismo da forma”: o imenso repertório de imagens, dados, construções, produções etc. disponíveis na internet permite uma nova relação com as obras de arte – um processo de interação contínua, em que artistas e público trocam leituras, conhecimento e análises que ressignificam a abundante e excessiva produção da indústria cultural.
Veja (se ela não for excluída) mais uma releitura de A Queda, sobre a retirada dos trechos do ar:
A produção alemã, assim, rompeu fronteiras não só porque foi lançada mundialmente, dentro do esquema tradicional da indústria de entretenimento capitalista, mas porque foi relida e reconstituída por todos que viram naquelas imagens e naqueles sons especialmente encadeados pelos atores e pelo diretor Hirschbiegel a possibilidade de encaixar novos diálogos, frequentemente críticos em relação à política e à própria indústria da notícia e da cultura.
Essa nova forma de conceber a arte esbarra numa velha fórmula que sustenta o processo capitalista de acumulação da indústria cultural: aquilo que ideologicamente chamamos de “direito de autor”. O “direito de autor”, no caso, não pertence Hirschbiegel, o diretor, a quem a tradição da crítica cinematográfica costuma atribuir a “autoria”. Pertence à produtora do filme, a Constantin Films AG. A empresa parece ter tido problema com os detentores de outro direito, o “direito de imagem” de familiares de Michael Jackson, por conta de uma paródia. A reclamação quanto aos direitos de imagem fez com que a Constantin, dona dos direitos autorais, pedisse a retirada dos vídeos – e o YouTube obedecesse obsequiosamente.
Esse direito de autor em jogo, ou direitos autorais, responde a uma necessidade da indústria cultural capitalista, um limite evidente à interpretação e à ressignificação das obras de arte, enquanto o processo coletivo de produção de paródias de A Queda se encontra no polo oposto – apropria-se do que há de “comunista” na forma do filme, na sua possibilidade de releitura.
Quando, hoje, alguém faz uma parodia do filme A Queda, coloca-se em diálogo não apenas com a equipe de Hirschbiegel, que lançou seu filme há seis anos. Responde também aos estímulos de outras releituras, numa espécie de competição cooperativa que envolveu todos os outros que a parodiaram. E a parodiaram nas mais diversas línguas, rompendo barreiras geográficas por meio do grande acesso público que a internet proporciona.
Assim, um direito menos regulado parece ter sido atropelado pelo YouTube: o respeito à criação de quem fez paródias de A Queda. Ela também não deveria ser levada em conta? Está certo jogar na fogueira (ei, isto é uma metáfora!) tudo o que se pôde pensar, e por tanta gente, a partir deste pequeno trecho de filme só porque havia direitos autorais (da Constantin) e de imagem (de Jackson) já explorados à exaustão por seus proprietários?
O conflito do comunismo da forma e do capitalismo do conteúdo por trás das paródias de A Queda é extremamente simbólico de alguns outros conflitos do nosso tempo. Porque hoje o comunismo da forma, em construção cotidiana por todos os usuários de internet, esbarra de fato em algumas barreiras legais ainda garantidas aos detentores dos direitos capitalistas de reprodução dos produtos culturais. Para os “donos da cultura”, no entanto, a tolerância com essa novidade é não apenas um tormento, mas uma necessidade – basta pensar quantos DVDs a mais de A Queda foram vendidos no mundo todo porque milhões de pessoas assistiram às paródias na internet.
PS: Em 2007, a exposição Comunismo da Forma, na Galeria Vermelho, em São Paulo, teve como um dos seus frutos o livro Comunismo da Forma, organizado por Fernando Oliva e Marcelo Rezende, que ajudei a publicar pela editora Alameda.
*Haroldo Ceravolo Sereza é jornalista e diretor de redação do site Opera Mundi
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