Ao meio-dia de 12 de setembro de 1919, o poeta-soldado Gabrielle D´Annunzio, figura que evocava os brilhantes avatares de uma civilização antiga, no comando de um pequeno exército de voluntários composto por militares insurretos de baixa graduação e espontâneos civis que se uniram à marcha desde Trieste, entra em Fiume. A cidade, povoada majoritariamente por italianos desde a Antiguidade, pertencia formalmente ao desintegrado Império Austro-Húngaro e se achava ocupada por tropas norte-americanas, francesas e inglesas, no momento que antecedeu a previsível entrega da localidade e sua população à nascente Iugoslávia.
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As massas o recebem com entusiasmo e, já na tarde daquele dia, D´Annunzio é nomeado governador da cidade. As tropas estrangeiras ocupantes a abandonam. O governo italiano se nega a anexá-la tal como exigia a população e, em vez disso, ordena ao exército que sitiasse a cidade. Porém, centenas de voluntários italianos, ex-combatentes, futuristas, sindicalistas revolucionários, vanguardistas começam a chegar a fim de participar da defesa da cidade.
[Atualmente na Croácia, local onde ficava a cidade-estado hoje tem uma praça com o nome do poeta-soldado]
Muitos soldados italianos destacados para o lugar desertaram e se uniram ao exécito patriótico de D´Annunzio. O movimento de Fiume recebe igualmente outros apoios, entre eles o do pintor Marinetti, líder da escola futurista, que visitou a cidade, de Guglielmo Marconi, o inventor do rádio que ofereceu a D´Annunzio a possibilidade de retransmissão de um discurso, o de Mussolini, à época líder dos socialistas heterodoxos e ainda não do Partido Fascista. Teve também outra série de adesões: o capitão Giuletti, presidente da organização Gente do Mar, do sindicato socialista dos marinheiros que desviou o navio mercante Pérsia, abarrotado de armas, até o Fiume; de Alceste De Ambris, secretário geral da União Italiana do Trabalho e líder do sindicalismo revolucionário.
D’Annunzio se afastava das amarras burguesas sem cair na ortodoxia marxista, podendo desse modo mostrar sua cara à nova ordem mundial nascida no pós-Primeira Guerra Mundial, representada por Woodrow Wilson, o presidente dos Estados Unidos, e pelos tratados firmados em Versalhes e outros.
Nos dezesseis meses em que a cidade resistiu, houve tempo de elaborar uma Constituição conhecida como ‘Carta del Carnaro’. Nele se garantiam os direitos individuais e sociais, integrando o indivíduo no trabalho e em suas povoações e cidades. A cultura era colocada em primeiro plano pelo poeta-soldado, vista como instrumento de elevação das massas já em processo de transformação e degradação final por parte da ideologia e da práxis burguesa.
A ‘Carta del Carnaro’ prestava especial atenção à música e, de fato, um dos últimos acontecimentos que tiveram lugar em Fiume livre foi um concerto de Toscanini e sua orquestra, que compareceu a convite de D´Annunzio. Neste documento legal se reconhece, outrossim, a importância que as corporações, os coletivos de trabalhadores agrupados por ofícios têm. Dez foram as corporações registradas. A décima estava reservada para o conceito dannunziano de homem superior, para o super-homem definitivamente, possivelmente numa versão estética do mesmo, cuja chegada era esperada. É, talvez, a única Constituição da História que tenha legislado na esperança da existência do super-homem.
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