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Opera Mundi passou nove dias em Atenas, capital grega, para verificar os efeitos da crise sem precedentes que assola o país. De acordo com números oficiais, um quarto da população do país está desempregada. Entre os jovens, o número supera os 50%. Nas ruas, são claros os indícios de que uma convulsão social está prestes a acontecer.
Sábado, 3 de Novembro
Chegada, pessimismo e neonazismo
O voo de Londres a Atenas pela Aegean Airlines, companhia grega, vai com menos de um terço da ocupação, apesar das promoções e do tempo bom na Grécia. Atenas seria um destino comum para aposentados europeus nessa época do ano, em busca de praia e calor. Ao que tudo indica, o noticiário da crise espantou os turistas.
Depois de três horas desembarco no elegante Aeroporto Eleftherios Venizelos, construído para a Olimpíada de 2004. Ele, resplandecente, está às moscas. Vou comprar o bilhete para o metrô e apenas um caixa está funcionando – atrás de um aviso de greve.
Roberto Almeida/Opera Mundi
O transporte em Atenas vai parar dias 6 e 7 de novembro, quando o Parlamento vota mais um pacote de austeridade proposto pela Troika (Comissão Europeia, Banco Central Europeu, Fundo Monetário Internacional). Ao lado da parada do trem vejo um anúncio (irônico?) do uísque Johnnie Walker: “Keep Walking Greece.”
São oito euros (cerca de R$ 20) pelo bilhete até o centro. Desço na estação Syntagma, no centro, e troco para Metaxourgio, no noroeste da cidade. As estações são bastante amplas e lembram muito as de São Paulo. A cidade, não demoro a perceber, também lembra São Paulo no jeito despachado das pessoas em meio ao caos.
Já é noite, deixo minha mochila no quarto que aluguei, na casa de uma romena e um grego. Ele trabalha na Força Aérea da Grécia. Sorridente mas desgostoso, resumiu a crise assim, com um ditado grego: Κάθε πέρσυ και καλύτερα. (Algo como: “Cada ano que passou foi melhor que o seguinte”. Para simplificar, seria a versão grega para “Nada está tão ruim que não possa piorar”.)
Saio para caminhar pelas ruas escuras. Pichos, muitos pichos nas paredes e trânsito pesado. Atenas grita nos olhos. Em redutos de relativo silêncio com cheiro de kebab, aposentados assistem ao futebol na TV, jogo do Olimpiacos.
A Acrópole que brilha no alto, imponente, indica o caminho para Plaka, centro turístico abarrotado de vida pulsante. Ao pé do Partenon, imigrantes africanos vendem bolsas, cigarros e helicópteros fluorescentes. Os gregos dizem não enquanto desfilam em família, driblando o cachorro de rua, branco e gordo, que espera um resto de comida. Mais embaixo, o trem suburbano rasga a paisagem todo colorido, grafitado.
Em 10 minutos de passos lentos chego à Praça Syntagma, estranhamente calma para quem já assistiu aos confrontos entre manifestantes e polícia. E em outros cinco estou na Estação Panepistimiou (Universidade) do metrô, que desemboca na Academia de Atenas, bastante pichada com dizeres antifascistas.
Em uma barraquinha fumegante de comida árabe, Nermeen, uma garota síria que escapou da guerra civil, e que agora teme os neonazistas gregos do partido Aurora Dourada, doava falafels para dizer que os imigrantes são, sim, pessoas de bom coração. Seu amigo, Ahmed, com filho no carrinho de bebê, é só sorrisos. Eles me oferecem, empolgados, mostrar Atenas pelo ponto de vista de um imigrante.
Na volta para casa vejo, pela primeira vez, um grande picho do meandros, o símbolo do partido neonazista Aurora Dourada.
Domingo, 4 de novembro
Discriminação e barbárie
Nermeen já me esperava, animada, na porta da Estação Kato Patissia, no norte de Atenas. A área é de imigrantes e de forte presença do Aurora Dourada. Ahmed deixara a porta do carro aberta para entrarmos. Sol forte no pára-brisas, ele nos levou em 40 minutos a Piraeus, sul de Atenas, na beira do mar. Um pouco de calmaria para rebater a cidade caótica.
Roberto Almeida/Opera Mundi
Entre frapês, os cafés gregos batidos e gelados, Nermeen e Ahmed desabafam. Ela não entende por que a olham atravessado na rua, não entende por que o preconceito com muçulmanos. Ele lamenta que os negócios estejam tão ruins, que existam neonazistas (“são uns bárbaros!”) e que a vida não vá melhorar.
O objetivo é um só: escapar da Grécia a qualquer custo. Ambos se movimentam para fazer isso acontecer o quanto antes.
Decidimos passar pela feira livre de Piraeus, sob um calor de 30 graus, coberta por um tapete de produtos de segunda mão. Os gregos estão vendendo seus bens pessoais a preço de banana para ter alguma renda. Ahmed checa os bolsos por sua carteira de dinheiro e brinca que eu deveria fazer o mesmo. A rua está lotada e, depois de meia hora, insuportável no empurra-empurra sem fim.
Depois de outros 30 minutos de carro, Ahmed nos deixa na Estação Monastiraki, no centro de Atenas. Nermeen, antes muito falante, agora está mais calada. Recebeu uma mensagem do noivo avisando que um amigo sírio havia sido espancado por não ter documentos – sintoma dos tempos de intolerância na Grécia. Desanimada, ela prefere se despedir.
Leia mais sobre Nermeen e Ahmed aqui.
Segunda-feira, 5 de novembro
Estudantes e a greve
Na véspera da greve geral visito a Politécnica de Atenas, epicentro da revolta estudantil no país na década de 1970 e agora. O prédio simboliza a resistência à ditadura militar do coronel Georgios Papadopoulos, que durou sete anos (1967-1974), e hoje abriga movimentos da esquerda antiausteridade. A área é considerada “livre de polícia”, uma bolha anárquica no meio da cidade caótica, mas ainda assim bastante vigiada.
Na entrada, pela Avenida Patission, o queixo cai. Basta olhar para as paredes. A Politécnica também grita. Não há um canto dos prédios que não esteja pichado, com mensagens exaltando a anarquia, o antifascismo e, as mais recentes, detonando a Troika. O descuido fica por conta do mato crescido, do portão quebrado.
Três vendedores de plano de celular, com camisas laranjas, tentam parar os poucos estudantes que passam de lá para cá. Um deles, feliz da vida de encontrar um brasileiro, mostra orgulhoso no celular a foto que tirou com o meio-campista Giovanni, ex-Santos e ex-Olimpiacos, seu time do coração. “É meu ídolo”, diz.
Os prédios da Politécnica abrigam hoje apenas o celebrado curso de arquitetura. Quatro pessoas fazem um cartaz da PAME (Frente Militante de Todos os Trabalhadores), sindicato ligado ao Partido Comunista Grego (KKE). A desconfiança não deixa nem que eu me apresente. Só dizem que a greve começa amanhã e dão de ombros.
Sem que eu veja, Giorgos, um estudante de arquitetura, é parado pelos vendedores de celular, que me chamam. “Esse aqui fala com você”, dizem, sorridentes.
Roberto Almeida/Opera Mundi
Em uma hora, Giorgos declama seu carinho pela Grécia, conta o que acha, o que pensa, a história de seus pais e seu plano para o futuro. “Ir embora do país”. Mais um que não quer ficar. O mercado está péssimo, para arquitetos, então, nem se fala.
Conheça mais sobre Giorgos aqui.
Em Exarchia, bairro dos estudantes, as paredes não param de falar. São dezenas de graffiti de pessoas com máscaras de gás, sinais de uma cidade cansada de chorar pelo efeito do lacrimogêneo. O clima, no entanto, é descontraído na pracinha que leva o nome do bairro. Cachorros para lá e para cá. Cheiro de café, kebab e cachorro-quente.
Tudo muito mais tranquilo, por exemplo, do que na sede do Sindicato dos Jornalistas de Atenas, na Avenida Akadimias, ao lado da Praça Syntagma. Chego por volta das 18h, em meio a uma reunião tensa sobre o direito de greve. Eles querem parar pelas próximas 48 horas para protestar contra cortes em seus planos de saúde.
“Cruzar os braços ou reportar a crise?”, pergunta Seva Kammer, uma jornalista aposentada da TV Mega, a maior do país. “Essa é a dúvida que temos”. Já Sotiris Domatopoulos, da rede estatal ERT, não tem dúvidas e defende que a greve precisa ser mantida. “É nossa única saída”, afirma.
Após duas horas de discussões, jornalistas gregos decidiram cruzar os braços em redações esvaziadas. No dia seguinte, eles caminhariam junto com os sindicatos de todas as categorias para protestar contra a Troika.
Terça-feira, 6 de novembro
200 mil nas ruas e a “cracolândia” de Atenas
Hoje é o primeiro dia de greve geral. Sol forte e ninguém nas ruas, em plena terça-feira. Não há transporte público, nem táxis. Vou a pé para a Praça Omonia, ponto de encontro da PAME. Em poucos minutos, sem que eu esperasse, vejo que as ruas de Atenas que levam à praça estão absolutamente tomadas por três grupos de manifestantes carregando a mesma bandeira.
Aleka Papariga, secretária-geral do KKE, deu uma rápida entrevista à imprensa local pedindo “desobediência organizada” à Troika. Em seguida, os manifestantes caminharam em direção à Praça Syntagma para protestar em frente ao Parlamento grego. Crianças, imigrantes de Bangladesh, idosos.
Roberto Almeida/Opera Mundi
Na linha de frente, jovens com bastões enrolados em panos vermelhos e capacetes de motociclista. São os “defensores” da multidão, em caso de confronto com a polícia.
O protesto é pacífico. Logo, me avisam que é (relativamente) pequeno. Nem dá para comparar com o que está por vir amanhã, quando se unem os sindicatos do setor público e privado. Na Rua Mitropoleos, centro comercial da cidade, os restaurantes funcionam normalmente. Os gregos compram seus frapês e eu também peço o meu.
Na volta para casa, pela Avenida Athina já escurecendo, vejo mendigos com as pernas apodrecidas dormindo nas calçadas. A poucos metros dali, um homem tira a bota e injeta heroína no pé. Homens conversam em praças sem iluminação, pichadas com símbolos do Aurora Dourada.
O caminho que fiz, descubro mais tarde, é terra de ninguém no centro de Atenas. Uma espécie de cracolândia, onde em vez do crack reinam outras drogas. Cenário sombrio da crise que corrói o país. A decadência do sistema de saúde é explícita.
Quarta-feira, 7 de novembro
Gás lacrimogêneo e temporal
Não sei se a tensão é minha, ou se ela está no ar. O Parlamento grego vota hoje o pacote de austeridade da Troika e, pelo que o passado mostra, o confronto entre manifestantes e polícia é inevitável. Mesmo assim, indeciso, acabo não comprando a máscara de gás.
Os preços de uma variam entre 18 e 150 euros. E só a de 150 euros protege de verdade contra a enorme quantidade de gás lacrimogêneo que será lançada, encobrindo a cidade toda como um nevoeiro.
As expectativas para o dia são óbvias. A primeira é em relação à votação do pacote. Ele deve ser aprovado por volta da meia-noite, apesar da dissidência de deputados da Esquerda Democrática, que fazem parte da coalizão governista. A segunda é pelo tempo, que vai virar. Um temporal vai cair no auge dos protestos e encharcar os 200 mil que estiverem nas ruas.
Não há movimentação alguma em Exarchia, por onde passo rapidamente para registrar os graffitis, nem no Sindicato dos Jornalistas, onde uma reunião deve acontecer somente às 19h para dar início ao protesto.
Enquanto isso, a polícia se posiciona estrategicamente em cada esquina do centro de Atenas. A presença massiva já dá mostras que qualquer passo fora da linha, se houver, será reprimido e, em efeito cascata, desmobilizará a manifestação.
São 17h e a Praça Syntagma está lotada. A massa é composta por membros da Syriza, a coalizão de esquerda antiausteridade, da Antarsya, grupo à esquerda da Syriza, grupos anarquistas e antifascistas, blocos do PAME e sindicatos do setor público e privado. Há pelo menos 200 mil pessoas. Pelo menos.
Pouco antes das 19h, a chuva cai forte na Syntagma e explosões são ouvidas do lado direito do Parlamento grego. Os clarões dos coquetéis Molotov pintam de amarelo o prédio cinco estrelas do Hotel Grand Bretagne. O gás lacrimogêneo encobre a praça. Mais do que isso, ele encobre a cidade toda. É preciso bater em retirada para não ser pisoteado.
Estou a 500 metros da Syntagma em um café, esperando o temporal passar. Pelas informações de ativistas e jornalistas no Twitter, não há mais ninguém em frente ao Parlamento. Apenas uma linha de policiais, que dispersou totalmente a área. Famílias inteiras caminham encobrindo o rosto contra o gás, que mesmo tão longe ataca os olhos e as narinas.
Não há o que fazer a não ser voltar para casa e acompanhar o final da votação. Na TV, o líder da Syriza, Alexis Tsipras, discursa. No café, ninguém presta atenção. Logo, mudam o canal para que passe o jogo do Barcelona. Domingo votam o orçamento do país para 2013 e devem ratificar os cortes.
Quinta-feira, 8 de novembro
Pacote aprovado
A roupa ainda cheira a gás lacrimogêneo. A greve termina, melancólica, e o comércio reabre sem alarde. Tiro o dia para analisar a aprovação do pacote da Troika e colher repercussões. Marco uma entrevista para o dia seguinte com Hala, do centro de acolhimento de imigrantes da prefeitura de Atenas.
Sexta-feira, 9 de novembro
O jeito é ir embora
Encontro Hala na praça em frente à Estação Keramikos do metrô, ao lado dos bares descolados (e vazios) de Gazi. Ela, sorridente de início, conta tudo o que viu e ouviu nesses últimos 22 anos em Atenas. A narrativa descreve um povo feliz que caiu no pessimismo e desaguou no destempero.
Roberto Almeida/Opera Mundi
De origem síria, falando grego, árabe e inglês fluente, Hala só pensa em ir embora da Grécia. Não sem antes deixar registrada a indignação com o crescimento do neonazismo e os recentes casos de violência contra imigrantes.
Veja a entrevista completa aqui.
Ainda em Gazi encontro B, artista de rua, para me explicar melhor a cena do graffiti na cidade. Damos uma volta por Metaxourgio e vejo obras enormes da dupla paulistana osgemeos. São poucos os espaços sem graffiti em Atenas. Valeu cada segundo.
Conheça mais a cena do graffiti em Atenas aqui.
Sábado, 10 de novembro
Anarquia e resistência
Amanhã o Parlamento grego vota o orçamento do país para 2013. A maioria pró-austeridade deve dar as cartas e incluir na proposta os cortes impostos pela Troika.
O dia é pincelado por pequenas manifestações. Funcionários da prefeitura de Atenas fazem uma demonstração na Praça Metaxourgio. O transporte público funciona, mas é imprevisível. A cidade caminha aos solavancos.
Só me chama a atenção agora a quantidade de apartamentos e escritórios para alugar no centro de Atenas, com dezenas de plaquinhas em vermelho e amarelo dizendo ενοικιαζεται (aluga-se). Sinal de que os prédios comerciais estão, em suma, vazios.
Roberto Almeida/Opera Mundi
Outro sintoma importante: a enorme quantidade de casas de penhor (ενεχυρα). Um dos poucos negócios que vão pra frente em Atenas – quem sabe ao lado da venda de máscaras de gás.
Vou caminhando para Exarchia. O Bar Nosotros, na Rua Temistocleos, é uma ocupação e um reduto anarquista. Converso longamente com Olga, estudante de Tessalônica, enquanto seus amigos cuidam de campanhas antifascistas. Alguns já apanharam muito da polícia, mas também já jogaram muitos coquetéis Molotov.
Conheça mais sobre o Nosotros e a imprensa alternativa grega aqui.
Domingo, 11 de novembro
Despedida
Vejo Ormina chegando cedo para trabalhar, feliz de ainda ter um emprego. Ela, imigrante da Armênia, atende na lanchonete Kassinas, em Metaxourgio, com um sorriso que contrasta com a tristeza dos fregueses. Sentamos para conversar por uma hora e ela, contando detalhes de sua vida, melhorou meu dia.
A poucas quadras dali, perto da Estação Larissa, as agências de viagem já notam o aumento na demanda. Albaneses e armênios estão indo embora do país, sem esperanças e com medo do Aurora Dourada. Aliás, um dos escritórios do partido é logo na frente da Estação, envelopado em bandeiras gregas e em símbolos da “pureza” do país.
Quando chego à Acrópole para uma visita de última hora, descubro que ela já vai fechar. E são apenas 15h de um domingo ensolarado. “Falta de pessoal”, avisa um funcionário. Turistas desanimados descem as escadarias. Pergunto o porquê e ele desconversa.
Roberto Almeida/Opera Mundi
No belíssimo Museu da Acrópole, ainda aberto, o vídeo de abertura da exposição conta que as frisas do Partenon foram “violentamente” retiradas pelo britânico Lord Elgin, no início do século 19. Tratam o assunto como o roubo de um patrimônio grego.
À noite, o novo orçamento grego é aprovado. Em frente ao Parlamento, um grupo pequeno de manifestantes derruba a grade que separa a rua do prédio do governo. A polícia arma uma barricada e permanece imóvel.
Às 20h os manifestantes começam a ir embora. Eu me despeço da Praça Syntagma, olho para trás e vejo frustração na cara dos manifestantes. Nas ruazinhas do centro a vida segue como sempre. O menino toca acordeon e poucas famílias jantam nos restaurantes de comida simples.
Mas o pior ainda está por vir. É o que os gregos sempre dizem.
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