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Profissional de saúde realiza teste de malária em criança no Camboja, em setembro de 2011
Poucos cientistas podem se gabar de terem feito uma descoberta capaz de mudar decisivamente, e para melhor, a vida de milhões de pessoas. O químico britânico Simon Campbell é um deles. Foi graças à sua atuação como líder de pesquisas numa grande empresa farmacêutica que surgiu o Viagra, dando início a toda uma nova geração de medicamentos contra a impotência. Além do Viagra, ele contribuiu para outras 120 publicações e patentes, e chegou a presidir a Sociedade Real de Química. Tamanha contribuição lhe valeu até o título de “Sir”, outorgado pela rainha da Inglaterra em janeiro de 2014.
Pois Campbell está usando sua experiência de quase três décadas na indústria de medicamentos para atacar um novo alvo: as chamadas doenças negligenciadas. Entre os objetivos do britânico está a criação de tratamentos para malária que custem até um dólar. “Sintetizar moléculas que sigam esse critério vai demandar um grau excepcional de inovação”, diz o químico, que morou no Brasil e esteve em novembro de 2014 em São Paulo num workshop sobre o assunto organizado pela Fapesp.
Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), as doenças tropicais negligenciadas são um grupo de 17 males que grassam, principalmente, em países pobres, onde as condições de moradia e saneamento básico são ruins. A indústria farmacêutica investe pouco no desenvolvimento de novos tratamentos para elas, devido à baixa expectativa de lucro na comercialização. Quem sofre de problemas como doença de Chagas, leishmaniose, malária ou dengue tem à sua disposição poucos medicamentos, sendo que alguns exercem pouco efeito sobre a doença e apresentam grande chance de causar efeitos colaterais.
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Desde o começo dos anos 2000, no entanto, novidades têm surgido na área. A aparição de casos de Chagas nos EUA, na Europa, na Austrália e no Japão, por exemplo, chamou a atenção dos órgãos de saúde. Além disso, uma maior pressão internacional está fazendo com que governos, indústria e universidades direcionem esforços para combater essas doenças. A OMS estima que as doenças tropicais negligenciadas afetem 1 bilhão de pessoas e constituam uma importante causa de mortalidade. Ainda segundo o órgão da ONU, essas doenças representam 10,5% da carga global de doenças.
As leishmanioses, na forma cutânea e visceral, por exemplo, contam com 1,3 milhão de novos casos anualmente, dos quais entre 20 mil e 30 mil acabam em morte. O parasito é transmitido pelo mosquito-palha, que pode transmitir a doença de animais como o cachorro para o homem e vice-versa. Além da produção de medicamentos capazes de combater ou amenizar os efeitos da doença, existe o problema da confiabilidade dos métodos diagnósticos existentes. Os testes disponíveis não garantem diagnósticos precisos e é necessário desenvolver outros mais acurados para a identificação da doença. Por isso, proteínas que possam ser utilizadas para a detecção acurada da presença do parasito no organismo de cachorros são o alvo da pesquisadora Márcia Graminha, professora da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Unesp em Araraquara.
Márcia explica que os testes diagnósticos atuais têm muitas chances de dar o chamado falso-positivo, acusando a doença mesmo em animais saudáveis. “Isso acontece porque os testes são baseados em proteínas que existem também em outros parasitos”, explica. Uma das doenças que podem ocasionar um falso positivo é a babesiose, que demanda um tratamento diferente daquele empregado nos casos das leishmanioses. Aliás, no Brasil, os animais infectados com leishmania nem chegam a ser tratados, sendo obrigatoriamente sacrificados.
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Para chegar à atual fase do projeto, Márcia começou o trabalho na frente do computador, em 2007. A leishmania, parasito que transmite a doença, teve seu DNA completamente sequenciado por um projeto internacional concluído em 2005. Disponível em bancos de dados gratuitos, a sequência permite que pesquisadores do mundo inteiro procurem, por meio de programas de computador, combinações genéticas que possam ser úteis em tratamentos e diagnósticos.
“Com os softwares de bioinformática podemos fazer várias ‘perguntas’ à sequência gênica”, explica Márcia. Em especial, a pesquisadora queria identificar proteínas existentes na leishmania que não são encontradas em outros micro-organismos, como o causador da babesiose. Depois de comparar o DNA da leishmania com o de vários outros parasitos, ela identificou certas proteínas específicas com potencial para serem aproveitadas em testes diagnósticos. Essa primeira parte do projeto permitiu que ela solicitasse junto à Fapesp recursos para a fase de bancada da pesquisa.
Na fase atual do projeto, juntamente com a mestranda Mayara Del Cistia e a ex-orientanda e recém-doutora Camila Tita Nogueira, a equipe está testando essas proteínas isoladas em cães que tiveram contato com o agente causador da doença e em cães sadios (grupo de controle), a fim de verificar a eficácia do diagnóstico. As amostras biológicas utilizadas nesse estudo são fornecidas pela Faculdade de Ciências Agrárias e Veterinárias da Unesp em Jaboticabal e pela Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Unesp em Botucatu.
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Marizilda Cruppe / Sanofi Pasteur via Flickr
Profissional de saúde dá instruções a paciente com dengue no Rio de Janeiro, em fevereiro de 2012
“O reconhecimento da proteína pelos anticorpos do cachorro só é possível porque tais anticorpos foram produzidos em um contato anterior com o parasito”, diz Mayara. “Quando tivermos resultados mais refinados, poderemos criar uma fita com essas proteínas que, ao contato com uma gota de sangue, vão dar positivo ou negativo para as leishmanioses.” Esta tecnologia, simples e barata, pode ser usada em campanhas realizadas em locais isolados dos grandes centros, facilitando o diagnóstico e permitindo um controle adequado da doença.
Uma das proteínas já teve seu pedido de patente aceito pelo Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI). Este processo, que a pesquisadora julga fundamental para a proteção da descoberta, foi assessorado pela Agência Unesp de Inovação (Auin), cuja ação foi essencial para mostrar as vantagens e desvantagens da patente. “Demorou um tempo até a gente compreender que há algumas diferenças entre esse tipo de pesquisa e a que não visa a patente”, conta. “As defesas de dissertação e tese dos meus alunos, por exemplo, foram todas fechadas. Nem pai e mãe puderam assistir. Também não pudemos publicar artigos científicos ou participar de congressos da área enquanto o pedido de patente não tivesse sido oficializado”, conta.
A pesquisa realizada pelo grupo da Unesp soma-se a um esforço global para controlar e eliminar as doenças tropicais negligenciadas até 2020, meta estipulada pela OMS em 2012. Duas das frentes mais ativas nesse sentido são a DNDi, sigla em inglês para Iniciativa Drogas para Doenças Negligenciadas, que tem entre os membros-fundadores o Instituto Oswaldo Cruz, e a MMV (Busca por Medicamentos para a Malária, numa tradução livre). Ambas são organizações sem fins lucrativos com braços no mundo todo e que unem esforços de ONGs, governos, institutos de pesquisa e indústria.
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“Quando se trata de criar novos medicamentos e diagnósticos para doenças negligenciadas, inovação é essencial, pois é preciso identificar novos alvos biológicos e testar centenas de moléculas a fim de identificar uma nova droga em potencial”, diz Simon Campbell, que é membro da MMV e da DNDi.
Iniciativas como DNDi e MMV são essenciais para unir esforços no combate a essas doenças. Para Lucio Freitas-Junior, do Laboratório Nacional de Biociências (LNBio), os principais obstáculos vão desde o pouco interesse da indústria até o relativamente baixo investimento em pesquisa aplicada à descoberta de fármacos. “Outros fatores que contribuem são a falta de integração e a redundância de atividades entre diferentes grupos envolvidos com pesquisas na área”, explica o pesquisador, cujo laboratório faz parte do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), em Campinas. Além disso, conta o fato de as doenças ainda serem pouco entendidas, “e por isso não sabemos ao certo quais propriedades um bom fármaco deve ter de forma a levar à cura”, diz o biólogo, que até 2013 trabalhou no Instituto Pasteur na Coreia do Sul na busca por novos fármacos por meio de ferramentas de bioinformática.
Campbell acredita que o Brasil tem grande potencial para a descoberta de novos diagnósticos e medicamentos. “Há profissionais com considerável experiência no país, grandes investimentos para o estudo da biologia dessas enfermidades, financiamento da Fapesp e do CNPq, além da colaboração com organizações como MMV e DNDi”, analisa. Muitas barreiras estão sendo ultrapassadas. O argumento de que esse tipo de medicamento não é rentável para a indústria, por exemplo, vem sendo questionado por uma série de estudos assinados pela equipe do americano Bruce Y. Lee, da Johns Hopkins Bloomberg School of Public Health, nos EUA.
Ao usar simulações computacionais que levam em conta desde os custos financeiros de se criar os medicamentos até os de hospitalização dos enfermos, Lee já mostrou a viabilidade de um medicamento para leishmaniose cutânea e de vacinas contra a doença de Chagas e a dengue. Os laboratórios estão de olho. “A maioria das empresas farmacêuticas vão focar em doenças em que há retorno comercial, mas laboratórios como a GSK e a Novartis já possuem centros para doenças negligenciadas na Espanha e em Cingapura”, diz Campbell. “Muitas ainda colaboram com a MMV e a DNDi e oferecem suporte em pesquisas, além de ajudar a treinar jovens descobridores de medicamentos.”
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O treinamento de mão de obra especializada é um dos frutos que já estão sendo colhidos. Além de biólogos e farmacêuticos, outras áreas começam a ser envolvidas nas pesquisas. Márcia, da Unesp, está prestes a começar uma nova fase do projeto junto com um químico especializado em físico-química. A ideia é usar as moléculas com potencial para o teste rápido e de baixo custo da leishmaniose num biossensor. Já usados no diagnóstico de outras doenças e mesmo na detecção de poluentes, os biossensores, apesar de mais caros, podem trazer resultados ainda mais precisos. “A ideia é que o teste seja usado em campo, em locais distantes, e em uma eventual dúvida a amostra seria submetida ao biossensor”, explica Márcia.
Em janeiro de 2014 ela coordenou, juntamente com a pesquisadora Aline Paternostro Martins, pós-doutoranda do Instituto de Química da USP, um grupo de pesquisadores a bordo do navio Almirante Maximiano. A missão era coletar e identificar algas das Ilhas Shetland do Sul, na península Antártica, como parte de um projeto coordenado pelo bioquímico Pio Colepicolo, também do IQ-USP, junto ao Programa Antártico Brasileiro. A ideia é verificar o potencial de macroalgas da região para a produção de novos medicamentos. Até o momento, o grupo já identificou um composto químico com atividade leishmanicida extraído de uma espécie de alga antártica. Quem sabe não virá do gelo o tratamento para as doenças tropicais (até hoje) negligenciadas.
Matéria original publicada na Unesp Ciência, revista mensal de divulgação científica.