No programa 20 MINUTOS ENTREVISTAS desta quarta-feira (15/09), o jornalista Breno Altman entrevistou a historiadora Janaína Teles, filha de Amelinha Teles e presa política da ditadura militar brasileira, sobre o legado do período autoritário no país.
Para ela, as apurações e reparações às vítimas até hoje são insuficientes, e a leniência com os crimes da ditadura, inclusive por parte de setores importantes da esquerda, fabricaram o neofascismo e o bolsonarismo.
“A gente tem uma política de justiça de transição muito ambígua, ora promovendo algum tipo de reparação, ora combatendo investigações. Essa ambiguidade foi fundamental para assistir ao crescimento do bolsonarismo. Subestimamos o legado da ditadura”, afirmou.
Segundo ela, inclusive governos democráticos foram lenientes, principalmente depois dos governos de Fernando Henrique Cardoso, “que acabaram apoiando ou corroborando o pacto da Lei de Anistia, apesar da lei ter sido uma imposição”.
Resultado desse endosso, na visão de Teles, foi a falta de investimento na disseminação de uma cultura de direitos humanos, de defesa das vítimas da repressão ditatorial e em mudar a correlação de forças para implementar essa nova cultura necessária. Essa atitude permitiu que o negacionismo histórico ganhasse força, defendeu.
“Ao negar e fingir que não existiu, você alimenta o pensamento negacionista. Bolsonaro, como um negacionista explícito, só consegue expandir seu discurso na medida em que boa parte de nós dissemos que a ditadura é passado e que a democracia está consolidada. A vitória de Bolsonaro pôs em cheque a capacidade da esquerda de interpretar a ditadura e seu legado”, discorreu.
Como exemplo do desconhecimento sobre o passado ditatorial, a historiadora citou seu próprio caso. Aos cinco anos ela foi presa junto com o irmão, viu sua mãe sendo torturada, foi sequestrada e “quando eu conto isso as pessoas ficam chocadas, não sabem que uma série de crianças, filhas de guerrilheiros assassinados, foram adotadas por policiais. Acham que isso aconteceu na Argentina ou no Chile, mas nunca no Brasil”.
Comissão Nacional da Verdade
Teles avaliou o trabalho da Comissão Nacional da Verdade (CNV), quando, pela primeira vez, se colocou sobre o Estado a obrigação de investigar os crimes cometidos durante a ditadura. Outras comissões criadas até o momento, como a Comissão de Anistia e a de Mortos e Desaparecidos, impunham sobre a vítima o ônus da prova.
Para a historiadora, a criação e certos aspectos da CNV foram positivos, mas ela teve limites muito claros impedindo que o país superasse finalmente o legado da ditadura.
“Foi positivo porque tirou o ônus da prova das vítimas. Outro aspecto positivo foi que a Comissão mostrou como o aparto repressivo foi centralizado e respeitou a hierarquia. Eram crimes de ordem, não eram obras de militares radicais ou acidentes de trabalho. A Comissão da Verdade também colocou o debate da ditadura para a sociedade como um todo, para bem ou para mal”, ponderou a historiadora.
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Historiadora afirma que impunidade de militares incentivou o ressurgimento da extrema-direita e seu discurso político
Com relação às limitações, ela lamentou o fato de a Comissão da Verdade não ter abordado a torturada nem ter dado voz às vítimas de tortura, com poucas pessoas sendo ouvidas, por falta de vontade política, “porque se você dá visibilidade para as vítimas, você dá visibilidade para o testemunho dos algozes, que iam revelar o que tinha acontecido, e isso não se queria”.
Criada durante o governo de Dilma Rousseff, Teles ressaltou que poderia ter sido feito mais durante os governos petistas, mesmo com a correlação de forças da época, por exemplo, obrigando que nos cursos das escolas da polícia e das Forças Armadas se ensinassem direitos humanos.
“Até hoje é ensinada a doutrina da segurança nacional e ideias que fortalecem a noção de inimigo interno. Se o Ministério da Educação interfere no conteúdo que é ensinado nas escolas e universidades, por que não interferir também no ensino militar?”, questionou.
Outra falha foi ter mantido a Polícia Militar, “que é talvez a pior herança da ditadura”, entendida como uma força auxiliar às Forças Armadas e, por tanto, também formada na lógica do inimigo interno.
A historiadora reforçou que a PM é uma das principais fontes de permanência da ditadura e da ampliação da tortura institucionalizada praticada contra populações negras e periféricas, sobretudo.
Novo governo de esquerda
“Numa democracia, o poder civil limita o poder militar, mas até agora não conseguimos desmontar o aparato repressivo ditatorial. Eles continuam impondo limites ao controle civil do poder deles e agora temos uma política militarizada e um poder militarizado”, refletiu Teles.
Nesse sentido, um novo governo de esquerda teria que lutar para reverter essa lógica, retomando as propostas do Encontro Nacional de Direitos Humanos de 2008. Propostas como a criação de várias comissões da verdade, como para o genocídio indígena e para a violência no campo, além de uma segunda comissão para os crimes cometidos na ditadura, principalmente a tortura, são defendidas pela historiadora
“Temos que criar memoriais e promover atividades de memória envolvendo a sociedade, abrindo diálogos, para criar uma consciência mais profunda, construir pontes entre o presente e o passado para evitar alimentar o negacionismo”, enfatizou.